O homicídio culposo na direção de veículo automotor e a embriaguez ao volante

goo.gl/Wo2nnr | Uma das maiores polêmicas referentes aos crimes de trânsito está no homicídio culposo na direção de veículo automotor e a embriaguez ao volante, isto é, quando o motorista, dirigindo sob a influência de álcool ou de outra substância psicoativa que cause dependência, atropela e mata alguém.

Em regra, o crime de homicídio na direção de veículo é culposo e está estabelecido no artigo 302 da Lei 9.503/97, o qual possui a seguinte redação:
Art. 302. Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor:
Penas - detenção, de dois a quatro anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
§1º No homicídio culposo cometido na direção de veículo automotor, a pena é aumentada de 1/3 (um terço) à metade, se o agente:
I - não possuir Permissão para Dirigir ou Carteira de Habilitação;
II - praticá-lo em faixa de pedestres ou na calçada;
III - deixar de prestar socorro, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à vítima do acidente;
IV - no exercício de sua profissão ou atividade, estiver conduzindo veículo de transporte de passageiros.
Por se tratar de crime culposo, não é cabível, em tese, a prisão preventiva e a definitiva (recomendo a leitura de outro texto que fiz sobre a impossibilidade de prisão preventiva em crimes culposos).

Desse modo, para buscar dar uma “resposta” à sociedade, prendendo aqueles que praticam homicídios culposos na direção de veículo, parte da doutrina e da jurisprudência passou a interpretar que homicídios causados no trânsito seriam hipótese de dolo eventual e não de culpa.

Ou seja, surgiu a corrente de que o motorista, ao dirigir sob efeito de álcool ou outra substância que cause dependência, assumiu o risco de causar o resultado, agindo, portanto, com dolo eventual.

Necessário destacar que, em resumo, o dolo eventual ocorre quando a intenção do agente se dirige a um resultado, aceitando, porém, outro também previsto e consequente possível da sua conduta, isto é, embora o resultado danoso esteja dentro do plano de percepção do agente, ele não deseja, como no dolo direito, aquele resultado, no entanto, assume o risco de produzi-lo em razão de sua conduta.

Assim, entendendo ter agido com dolo eventual, o condutor deixaria de responder pelo homicídio culposo (artigo 302 da Lei 9.503/97) e passaria a ser responsabilizado pelo crime de homicídio doloso (artigo 121 do Código Penal).

Consequentemente, caberia a prisão preventiva, condenação em regime semiaberto ou fechado, além de responder pelo crime no Tribunal do Júri.

Todo esse esforço interpretativo tinha apenas um objetivo, dar um tratamento penal mais severo do que aquele estabelecido na legislação especial (Código de Trânsito) para o caso.

Há quem realmente acredite se tratar de dolo eventual, assim como há quem pense se tratar de culpa consciente (como eu). Nesse ponto, destaco um texto que fiz sobre a diferença entre dolo eventual e culpa consciente, sendo importante a sua leitura para melhor compreensão do tema.

Na minha opinião, se trata de culpa consciente, tendo em vista que ela é aquela em que o agente prevê o resultado, mas espera, sinceramente, que ele não aconteça, ou seja, o agente prevê a probabilidade do resultado, entretanto, ele espera que o resultado negativo não ocorra, em razão das suas habilidades pessoais ou destreza serem suficientes para enfrentar a situação de risco e impedir o resultado.

Portanto, para mim, quem, sob efeito de álcool, conduz um veículo, não assume o risco de nada, pelo contrário, ele, via de regra, acredita fielmente que não acontecerá nada e que ele conseguirá chegar a salvo no seu destino.

Mas esse não é o ponto do texto, até mesmo pelo fato de que ambas as correntes possuem fortes argumentos jurídicos.

O cerne deste artigo é a mudança legislativa realizada com a Lei 13.546/17 (e que entra em vigor nessa semana), a qual passou a estabelecer a conduta de causar um homicídio culposo na direção de veículo automotor quando o agente está sob efeito de álcool.

Essa Lei trouxe o §3º ao artigo 302, estabelecendo que:
§3º Se o agente conduz veículo automotor sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:

Penas - reclusão, de cinco a oito anos, e suspensão ou proibição do direito de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
Em uma rápida análise, parece que o legislador penalizou de forma mais severa quem, sob efeito de álcool, atropela e mata alguém, visto que a pena que era de detenção, de dois a quatro anos, passou para reclusão, de cinco a oito anos.

Só que não é bem assim.

Lembra que eu disse que nos crimes culposos não cabe prisão (preventiva e definitiva)?

Pois bem, os fundamentos que impossibilitam a prisão nos casos de crimes culposos estão nos artigos 313, inciso I, do Código de Processo Penal e no artigo 44, inciso I, do Código Penal.

De acordo com o artigo 313, inciso I, do Código de Processo Penal:
Art. 313. Nos termos do art. 312 deste Código, será admitida a decretação da prisão preventiva:

I – nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos;
Portanto um dos requisitos para a decretação de uma prisão preventiva é a prática de um crime doloso. No caso em análise, trata-se de um crime culposo e, portanto, fora do rol dos requisitos para a prisão preventiva.

Além do mais, importante destacar que a lógica desse raciocínio está no fato de que os crimes culposos em hipótese alguma geram uma pena de prisão.

De acordo com o artigo 44 do Código Penal:
As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade, quando: 
I – aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo;
Logo, se a pena definitiva do crime não é de prisão, impossível admitir uma medida cautelar mais gravosa (privativa de liberdade) que a definitiva (restritiva de direitos).

E é nesse ponto que entra a mudança trazida com a nova Lei, pois, agora, o legislador tipificou uma conduta que antes não existia (e por isso se fazia a interpretação de que era dolo eventual), qual seja causar homicídio culposo na direção de veículo, por agente que conduz o automóvel sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que cause dependência.

Assim, caiu por terra a tese do dolo eventual, pois não há mais que se falar ter o motorista, ao dirigir sob efeito de álcool, assumido o risco do resultado (morte), pois essa conduta (dirigir sob efeito de álcool e matar alguém) passou a ser uma conduta tipificada em lei como sendo culposa.

Por não ser possível dizer que agiu com dolo eventual, impossível decretar prisão preventiva ou condenar a uma pena de prisão, visto que, como dito, em sendo um crime culposo, não é passível de prisão preventiva e definitiva.

Dessa feita, a mudança legislativa nada mais é do que um “estelionato legislativo”, um engodo para ludibriar a sociedade, fazendo com que ela acredite que o crime efetivamente será tratado de forma mais severa.

Mas, na verdade, não muda praticamente nada.

Há quem diga que a partir de agora a Autoridade Policial não poderá arbitrar fiança, pois a pena máxima da figura qualificada do homicídio culposo é superior a 04 (quatro) anos. Só que antes também não podia, pois a pessoa responderia pelo artigo 302 c/c artigo 306, ambos da Lei 9.503/97, os quais, somados, possuem pena máxima de 07 (sete) anos, a qual é claramente superior aos 04 (quatro) anos estabelecidos no artigo 322 do CPP.

Por fim, surge uma dúvida: aqueles que foram condenados por homicídio doloso (dolo eventual) poderão ingressar com uma revisão criminal e buscar a absolvição, diante da nova tipificação da conduta e por ela ser mais benéfica ao réu?

Um grande abraço e até a próxima semana!

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Por Pedro Magalhães Ganem
Especialista em Ciências Criminais. Pesquisador.
Fonte: Canal Ciências Criminais
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