goo.gl/mSWvmc | O projeto de lei do novo Código de Processo Penal (PL 8.045/2010), em oposição à atual legislação (que não consagra formalmente o sistema acusatório), estabelece, em seu artigo quarto, a ideia de que o sistema processual penal brasileiro é de matriz acusatória.
É certo que a doutrina brasileira, em sua grande maioria, classifica o sistema processual penal brasileiro como misto, em virtude da duplicidade de fases (fase preliminar de investigação e fase processual propriamente dita).
Os doutrinadores consideram que a existência de uma fase de investigação com traços inquisitoriais, e a existência de um processo penal com respeito ao contraditório e a ampla defesa, faz com que o sistema processual penal seja classificado como misto.
Por sua vez, LOPES JR. (2016) diz que o que caracteriza um sistema como acusatório ou inquisitório é o princípio informador; o núcleo fundante de cada sistema. Se o princípio informador for o dispositivo (gestão da prova nas mãos das partes), o sistema processual penal será acusatório. Por outro lado, se o princípio informador for o inquisitivo (gestão da prova nas mãos do julgador), o sistema processual penal será o inquisitório.
O autor ressalta que não existem mais, na atualidade, sistemas processuais penais puros. Assim sendo, é reducionismo classificar um sistema processual penal como misto. O autor classifica o sistema processual penal brasileiro como (neo)inquisitório, em razão dos poderes instrutórios/investigatórios que são conferidos ao juiz durante toda a persecução penal.
Percebe-se que o problema na definição dos sistemas processuais penais reside na questão da separação das funções de acusar e julgar. Quanto mais poderes instrutórios/investigatórios forem conferidos ao julgador, maior será o distanciamento em relação ao sistema acusatório.
LOPES JR. (2016) afirma que não basta uma mera separação inicial de funções para que um sistema processual penal seja classificado como acusatório ou inquisitório.
Assim, no escopo de garantir uma efetiva separação de funções entre o parquet e o juiz, o PL 8.045/2010 apresentou a figura do juiz de garantias, impedindo, com isso, que o juiz que atua na investigação também atue na fase processual. O artigo 16 do referido projeto de lei aduz, de forma clara, que a intervenção do julgador na investigação impede a atuação do mesmo na fase processual.
A situação fica ainda mais delicada quando a intervenção do julgador se dá na fase processual. Em outros dizeres: quando o julgador produz prova de ofício no curso do processo, a separação de funções fica ainda mais comprometida.
Ante o exposto, impõe-se o seguinte questionamento: os poderes instrutórios/investigatórios durante a fase processual podem ser justificados em nome da busca da verdade real ou configuram uma violação a estrutura acusatória do processo penal?
Sabe-se que a verdade, apesar de ser algo inalcançável, intangível, serve de norte para a atuação jurisdicional. Contudo, vale ressaltar que essa verdade não pode ser buscada a qualquer título e sob qualquer pretexto. Deve-se buscar, portanto, a verdade formal, ou seja, aquela que seja adquirida com a observância de todas as regras e garantias constitucionais e processuais.
Mais vale a verdade formalmente construída do que a verdade obtida de qualquer maneira. A história já nos mostrou que a incessante busca pela verdade é prejudicial tanto para o processo penal como para o acusado enquanto sujeito processual. Assim sendo, cumpre refletir acerca da possibilidade de uma atuação ativa do juiz na fase processual.
SCHÜNEMANN (2012), em seu experimento empírico realizado no intuito de descobrir a possível influência na formação convicção do julgador quando esta tem prévio contato com os elementos colhidos no inquérito, percebeu, dentre as várias hipóteses levantadas, que impedir o juiz de formular suas próprias perguntas para as testemunhas durante a audiência de instrução e julgamento faz com que o mesmo não memorize aquilo que está sendo perguntado diretamente pelas partes.
Percebeu ainda que a quantidade de perguntas formuladas pelo juiz nada tem a ver com a qualidade no processamento das informações, uma vez que as perguntas formuladas são primordialmente no sentido de autoconfirmar uma hipótese que já havia sido levantada anteriormente. Assim, o aumento no número de perguntas indicam que a finalidade do juiz é apenas a de ratificar uma ideia pré-existente.
Assim, apesar da realidade alemã ser diferente da brasileira, o estudo de SCHÜNEMANN pode ser muito bem aproveitado. No que tange à questão da possibilidade do juiz inquirir diretamente as testemunhas, pensamos que é possível que isso ocorra sem que isso cause prejuízos para a estrutura acusatória do processo penal.
A atual redação do artigo 212 do CPP disciplina muito bem a referida situação, ao possibilitar que o juiz formule perguntas as testemunhas, desde que de forma complementar, após a prévia inquirição pelas partes.
O artigo 156, II, do CPP, por sua vez, ao permitir que o juiz realize, de ofício, diligências no curso do processo para sanar eventuais dúvidas relevantes, também permite uma participação mais efetiva do juiz do processo sem que isso cause o rompimento com a estrutura acusatória do processo penal.
Autores mais garantistas como o já mencionado Aury LOPES JR. defendem que a participação ativa do juiz no curso do processo penal fere a imparcialidade do mesmo e, consequentemente, a estrutura acusatória do processo penal.
Pensamos que a situação deve ser tratada com mais bom senso. Afinal de contas, a pesquisa de SCHÜNEMANN nos mostrou que o alheamento completo do julgador na fase processual pode não ser benéfica.
Ademais, a possibilidade do juiz de inquirir as testemunhas, de forma complementar, não prejudica a separação de funções, e a estrutura acusatória do processo penal. O que se pretende impedir é uma atuação proativa do julgador na produção da prova. Ou seja, visa-se impedir que o juiz assuma as vestes de parte e atue como um segundo acusador.
Assim, se a produção da prova de ofício, ocorrer de forma excepcional, em situações específicas, não haverá que se falar em rompimento com a estrutura acusatória do processo penal.
A aproximação do modelo brasileiro com o modelo norte- americano do adversarial system, é algo que deve ser tratado com cautela. A ruptura não pode ser imediata, e a ideia de busca da verdade não pode ser dissociada das finalidades do processo penal.
Por fim, apesar de compreendermos que, na prática, a possibilidade de atuação ex officio do julgador na fase processual faz com que o juiz assuma as vestes de parte acusadora (até já defendemos, em nome da paridade de armas, a exclusão desse dispositivo que permite a atuação de ofício do julgador na fase processual), pensamos que a situação deve ser tratada com mais cautela e reflexão, pois conforme já dito, a atuação eventual e esporádica como diz a letra fria da lei pode ser até benéfica para o processo penal.
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REFERÊNCIAS
LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
SCHÜNEMANN, Bernd. O juiz um terceiro manipulado no processo penal? Uma confirmação empírica do efeito perseverança e correspondência comportamental. Revista Liberdades. n°11 (set- dez 2012). Disponível aqui.
Por Daniel Lima - Mestrando em Direito Penal e Ciências Criminais. Advogado.
Fonte: Canal Ciências Criminais
É certo que a doutrina brasileira, em sua grande maioria, classifica o sistema processual penal brasileiro como misto, em virtude da duplicidade de fases (fase preliminar de investigação e fase processual propriamente dita).
Os doutrinadores consideram que a existência de uma fase de investigação com traços inquisitoriais, e a existência de um processo penal com respeito ao contraditório e a ampla defesa, faz com que o sistema processual penal seja classificado como misto.
Por sua vez, LOPES JR. (2016) diz que o que caracteriza um sistema como acusatório ou inquisitório é o princípio informador; o núcleo fundante de cada sistema. Se o princípio informador for o dispositivo (gestão da prova nas mãos das partes), o sistema processual penal será acusatório. Por outro lado, se o princípio informador for o inquisitivo (gestão da prova nas mãos do julgador), o sistema processual penal será o inquisitório.
O autor ressalta que não existem mais, na atualidade, sistemas processuais penais puros. Assim sendo, é reducionismo classificar um sistema processual penal como misto. O autor classifica o sistema processual penal brasileiro como (neo)inquisitório, em razão dos poderes instrutórios/investigatórios que são conferidos ao juiz durante toda a persecução penal.
Percebe-se que o problema na definição dos sistemas processuais penais reside na questão da separação das funções de acusar e julgar. Quanto mais poderes instrutórios/investigatórios forem conferidos ao julgador, maior será o distanciamento em relação ao sistema acusatório.
LOPES JR. (2016) afirma que não basta uma mera separação inicial de funções para que um sistema processual penal seja classificado como acusatório ou inquisitório.
Assim, no escopo de garantir uma efetiva separação de funções entre o parquet e o juiz, o PL 8.045/2010 apresentou a figura do juiz de garantias, impedindo, com isso, que o juiz que atua na investigação também atue na fase processual. O artigo 16 do referido projeto de lei aduz, de forma clara, que a intervenção do julgador na investigação impede a atuação do mesmo na fase processual.
A situação fica ainda mais delicada quando a intervenção do julgador se dá na fase processual. Em outros dizeres: quando o julgador produz prova de ofício no curso do processo, a separação de funções fica ainda mais comprometida.
Ante o exposto, impõe-se o seguinte questionamento: os poderes instrutórios/investigatórios durante a fase processual podem ser justificados em nome da busca da verdade real ou configuram uma violação a estrutura acusatória do processo penal?
Sabe-se que a verdade, apesar de ser algo inalcançável, intangível, serve de norte para a atuação jurisdicional. Contudo, vale ressaltar que essa verdade não pode ser buscada a qualquer título e sob qualquer pretexto. Deve-se buscar, portanto, a verdade formal, ou seja, aquela que seja adquirida com a observância de todas as regras e garantias constitucionais e processuais.
Mais vale a verdade formalmente construída do que a verdade obtida de qualquer maneira. A história já nos mostrou que a incessante busca pela verdade é prejudicial tanto para o processo penal como para o acusado enquanto sujeito processual. Assim sendo, cumpre refletir acerca da possibilidade de uma atuação ativa do juiz na fase processual.
SCHÜNEMANN (2012), em seu experimento empírico realizado no intuito de descobrir a possível influência na formação convicção do julgador quando esta tem prévio contato com os elementos colhidos no inquérito, percebeu, dentre as várias hipóteses levantadas, que impedir o juiz de formular suas próprias perguntas para as testemunhas durante a audiência de instrução e julgamento faz com que o mesmo não memorize aquilo que está sendo perguntado diretamente pelas partes.
Percebeu ainda que a quantidade de perguntas formuladas pelo juiz nada tem a ver com a qualidade no processamento das informações, uma vez que as perguntas formuladas são primordialmente no sentido de autoconfirmar uma hipótese que já havia sido levantada anteriormente. Assim, o aumento no número de perguntas indicam que a finalidade do juiz é apenas a de ratificar uma ideia pré-existente.
Assim, apesar da realidade alemã ser diferente da brasileira, o estudo de SCHÜNEMANN pode ser muito bem aproveitado. No que tange à questão da possibilidade do juiz inquirir diretamente as testemunhas, pensamos que é possível que isso ocorra sem que isso cause prejuízos para a estrutura acusatória do processo penal.
A atual redação do artigo 212 do CPP disciplina muito bem a referida situação, ao possibilitar que o juiz formule perguntas as testemunhas, desde que de forma complementar, após a prévia inquirição pelas partes.
O artigo 156, II, do CPP, por sua vez, ao permitir que o juiz realize, de ofício, diligências no curso do processo para sanar eventuais dúvidas relevantes, também permite uma participação mais efetiva do juiz do processo sem que isso cause o rompimento com a estrutura acusatória do processo penal.
Autores mais garantistas como o já mencionado Aury LOPES JR. defendem que a participação ativa do juiz no curso do processo penal fere a imparcialidade do mesmo e, consequentemente, a estrutura acusatória do processo penal.
Pensamos que a situação deve ser tratada com mais bom senso. Afinal de contas, a pesquisa de SCHÜNEMANN nos mostrou que o alheamento completo do julgador na fase processual pode não ser benéfica.
Ademais, a possibilidade do juiz de inquirir as testemunhas, de forma complementar, não prejudica a separação de funções, e a estrutura acusatória do processo penal. O que se pretende impedir é uma atuação proativa do julgador na produção da prova. Ou seja, visa-se impedir que o juiz assuma as vestes de parte e atue como um segundo acusador.
Assim, se a produção da prova de ofício, ocorrer de forma excepcional, em situações específicas, não haverá que se falar em rompimento com a estrutura acusatória do processo penal.
A aproximação do modelo brasileiro com o modelo norte- americano do adversarial system, é algo que deve ser tratado com cautela. A ruptura não pode ser imediata, e a ideia de busca da verdade não pode ser dissociada das finalidades do processo penal.
Por fim, apesar de compreendermos que, na prática, a possibilidade de atuação ex officio do julgador na fase processual faz com que o juiz assuma as vestes de parte acusadora (até já defendemos, em nome da paridade de armas, a exclusão desse dispositivo que permite a atuação de ofício do julgador na fase processual), pensamos que a situação deve ser tratada com mais cautela e reflexão, pois conforme já dito, a atuação eventual e esporádica como diz a letra fria da lei pode ser até benéfica para o processo penal.
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REFERÊNCIAS
LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
SCHÜNEMANN, Bernd. O juiz um terceiro manipulado no processo penal? Uma confirmação empírica do efeito perseverança e correspondência comportamental. Revista Liberdades. n°11 (set- dez 2012). Disponível aqui.
Por Daniel Lima - Mestrando em Direito Penal e Ciências Criminais. Advogado.
Fonte: Canal Ciências Criminais