A carreira acadêmica no Direito: uma vocação infinita e necessária - Por Felipe Rodolfo

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Há algumas semanas atrás, fui convidado para falar sobre “carreira acadêmica” aos ingressantes na Faculdade de Direito de uma universidade em Mato Grosso.

A situação me pareceu inusitada. Já não mais me recordava se, quando calouro, numa semelhante ocasião, teria ouvido alguém abordar um tal assunto.

Esforcei-me para lembrar se, depois, na condição de integrante do centro acadêmico, responsável pela semana de recepção dos neófitos, teria assistido ao testemunho de algum acadêmico.

Inutilmente.

Nem de uma coisa nem de outra guardo certeza ou memória.

Reminiscências sobrevêm-me, porém, de autoridades locais a discorrer sobre a magistratura, o parquet, a defensoria, a advocacia pública, a advocacia privada… sem que sobre mim invistam imagens passadas de alguma figura a tratar do magistério no ensino universitário, do desafio de se ingressar num mestrado, ou mesmo dos proveitos oriundos da conclusão de um doutorado etc.

O fato é curioso. Dá indícios, creio, do estatuto que a opção pela academia conserva atualmente no rol de carreiras jurídicas.

Carreira Acadêmica: Hoje?

A impressão de que tenho é a de que, com raras exceções, a academia não costuma ser objeto de uma opção deliberada. Em geral, as pessoas querem (querem?) fazer Faculdade de Direito. Mas e depois? Depois almejam exercer as costumeiras profissões jurídicas, sendo diminuto, contudo, o número daqueles que anseiam pela condição de professores de Direito… ou de pesquisadores de Direito.

Daí, aliás, a emergência da questão: Será que as carreiras de professor de Direito e de pesquisador de Direito podem, de fato, ser denominadas de carreiras jurídicas? A questão é legítima, porque a resposta nem sempre se revela tão óbvia, mesmo para aqueles prestes a obter o bacharelado.

Com frequência, o que se pretende é ser advogado, é ser delegado, é ser promotor, é ser juiz, é ser qualquer coisa… que, envolvendo conhecimentos jurídicos, possa também oferecer um bom retorno financeiro… Muito menos habitualmente se quer, não obstante, ao menos quando se adentra as fileiras universitárias, ser professor.

Aqueles que lecionam nos primeiros semestres da graduação em Direito talvez possam comprová-lo. A pergunta “Quem aqui quer ser professor?” costuma receber pouca ou nenhuma resposta positiva…

Certa feita, notei uma pequena audiência receber com deboche e descaso um colega que dizia sonhar um dia galgar o posto de doutrinador do Direito.

Como cediço, doutrinador é o nome que se dá, no mundo jurídico, para a pessoa que pensa e escreve sobre alguma área do Direito… O doutrinador é um cientista do Direito, é quem faz Ciência do Direito, ou pelo menos deveria fazê-lo… É quem descreve cientificamente o Direito vigente, racionaliza-o e oferece condições para a sua aplicação nos casos concretos.

Ora, é preciso insistir: os futuros profissionais estão dispostos a fazer quase tudo… menos a se transformar em autênticos doutrinadores. Desde logo, os livros jurídicos, de tamanho e envergadura consideráveis, assustam. Feitos meros objetos de uso cambiável, quando não descartados nem erigido sem fetiches de prateleira, sucumbem, paradoxalmente, em vista da sua estatura, à sub-condição de suporte para as telas de computador… Como passar a vida estudando para se tornar autor de obras como estas?

Tornar-se um reconhecido doutrinador, tornar-se um bom professor de Direito, tornar-se um pesquisador jurídico competente, exige um certo comprometimento… uma certa diligência… Exige gostar também de aprender e de ensinar… Atividades que uma cultura da impaciência senão despreza as tem em pouquíssima estima.

Teoria e prática no Direito

O Direito é uma disciplina prática. Para que serve o Direito? Os fins sociais do Direito são certamente variados. Pode-se reconhecer, em todo caso, que o Direito tem como finalidade a resolução de conflitos, o apaziguamento de problemas humanos, a dissolução de controvérsias que surgem em meio à sociedade.
O Direito é eminentemente prático. Mas o Direito não é só prática. É uma prática orientada teoricamente. A cisão entre teoria e prática jurídicas é indubitavelmente perigosa. O Direito não se perfaz sem o trabalho teórico desempenhado pela Ciência do Direito. O juiz, por exemplo, quando vai apreciar um caso, não pode agir arbitrariamente. Ele tem de seguir a lei. Mas a lei tem de ser interpretada. Como se deve interpretar a lei? A Ciência Jurídica oferece, então, parâmetros, referências, balizas para a interpretação legal adequada. É forçoso admitir que não há, pois, prática do Direito sem teoria do Direito. Disto dá prova o trabalho dos jurisconsultos romanos, responsáveis por elaborar um conhecimento do Direito a partir dos problemas práticos que lhe eram apresentados e para os quais eram chamados a oferecer algum tipo de solução teoricamente abalizada.
As Faculdades de Direito costumam formar juristas práticos. O problema, contudo, é quando a própria prática jurídica começa a se esvaziar pela perda progressiva de um apoio teórico necessário. Se, por um lado, a teoria sem a prática corre o risco de se submergir numa abstração total, a prática sem a teoria corre o risco de descambar para a desorientação…

Por isso, interessante, sim,é que não se perca de vista a importância das profissões jurídicas ligadas também ao plano teórico, donde a centralidade da carreira acadêmica… Naturalmente, não é que todo mundo tenha de ser professor ou pesquisador de Direito… tampouco ter mestrado e/ou doutorado… Mesmo o Direito dos professores [Professorenrecht], na esteira da Escola Histórica do Direito, embora implicasse precedência da doutrina sobre a prática jurídica, desta não se apartava, antes nela encontrava forte ressonância[1].

O certo, em suma, é que teoria e prática do Direito hão de andar conjugadas, dada a sua interdependência e complementaridade. Isto, porém, não afasta a constatação de que há estudantes com maior predisposição e desenvoltura para lidar com a faceta teórica do que com a faceta prática do Direito… Neste caso, é inadmissível que sua vocação acadêmica seja sufocada por motivos de toda ordem, como imperativos econômicos, pressões familiares, desestímulos ambientais etc.

A vocação acadêmica

Como dizia, poucos são aqueles que fincam os pés na Faculdade de Direito pensando, nalgum dia, em se tornar professor ou pesquisador de Direito…O fato, não obstante, é que algumas pessoas têm vocação para a docência e para a pesquisa jurídicas. Como, então, se pode dizer que alguém, normalmente, ingressa na carreira acadêmica?

Posso, neste caso, apenas oferecer um testemunho próprio, embora convicto da sua correspondência com a realidade.

Tenho a impressão de que dificilmente alguém escolhe entrar na carreira acadêmica… Tenho a impressão de que se é, de algum modo, escolhido pela própria carreira acadêmica… Não se a escolhe… mas se é por ela escolhido.Entra-se na carreira acadêmica como que de gaiato. Quase sem saber… Como quando se diz: “Não sei bem como que vim parar aqui! Mas estou aqui!”

A carreira acadêmica guarda um aspecto sedutor… Ela seduz… Há, sim, quem a procure pelo status que talvez proporcione, pela autoridade que confere, pela vitrine que representa… Não é disso, entretanto, que se cuida. Há beleza na palavra, num bom argumento, num raciocínio bem conduzido. A academia oferece, pois, este encontro raro, no seio do labor, entre o belo e verdadeiro. O encontro com a verdade, ou a saída ao seu encontro, se perfaz não sem uma alta dose de esforço, mas também com fulgurantes momentos de regozijo. Pode-se, assim, falar de um certo caráter “formal”do pensamento, no sentido de que contém sempre uma forma que o estrutura e que lhe confere uma roupagem sedutora. O pensamento, inevitavelmente formal, contém uma formosura que atrai. Não se poderia acompanhar um pensamento se nele já não estivesse encrustrado esta sua forma que seduz. Na busca da verdade, insinua-se, pois, também, uma busca pelo belo que a verdade representa.

 A academia jurídica é, desse modo, um local extraordinário de produção e descoberta de conhecimento altamente sedutor. Porque seduz, é que se pode dizer que para a carreira acadêmica se é convidado, chamado, vocacionado. Trata-se de algo que vem de fora… que não parte de mim… mas que me atinge… A carreira acadêmica seduz para a sua via…

O estado da arte acadêmica no Direito

Infelizmente, embora experiências existam no sentido contrário, não se tem, no Brasil, uma cultura jurídica e universitária arraigada que estimule os alunos a seguirem o ramo da docência e da pesquisa.

Comum é que muitos se graduem sem ter escrito um artigo sequer, sem ter participado de algum projeto de pesquisa etc. Mesmo os trabalhos de conclusão de curso têm apresentado pouco caráter científico…

Na verdade, o ensino jurídico do País está em crise. De um lado, tem-se um ensino jurídico operatório, mercadorizado, manufaturado, que dispensa reflexão e pesquisa. As Faculdades não formam juristas, mas “operadores do Direito”, que enxergam nas obras jurídicas apenas manuais de instrução… Os livros jurídicos se tornam meros itens descartáveis, e os seus leitores, meros consumidores de informação… Neste contexto, o Professor de direito ou é um ídolo a quem não se faz perguntas, ou um mero contratado que não ensina, apenas repassa conhecimentos privilegiados. De outro, a Ciência Jurídica, cada vez mais especializada, se deteriora e progressivamente dá conta da sua incapacidade de racionalizar suficientemente o Direito.

Além de uma multiplicação de disciplinas jurídicas, o trabalho dos juristas de sistematização do direito cai em qualidade, passando-se de um Direito sistematizado para um “Direito”esquematizado, em que antiga busca de um Direito simples se degenera num “Direito”simplificado; isto, para não falar do ainda reinante insulamento disciplinar, da cegueira perante a totalidade e a realidade…

Diante deste cenário, querer seguir a carreira acadêmica, fazer pesquisa, realizar mestrado e doutorado, tornar-se professor, é encaminhar-se no sentido de uma opção incomum… Até porque, embora nem sempre disto se tenha exata dimensão, a carreira acadêmica não é apenas recheada de louros… Pelo contrário: é talhada com seriedade e empenho incomensuráveis, implicando, por exemplo: a) abdicar de prazeres pessoais e de tempo que poderia ser despendido em outras atividades; b) selecionar boas fontes de estudo e de pesquisa, com leituras pacientes e demoradas, acompanhadas de fichamentos e anotações; c) estar aberto a outros campos do saber, tais como a filosofia, a sociologia, a ciência política, a antropologia etc.; d) ultrapassar o repartimento hermético, sisudo e frio do Direito através de intersecções com domínios como os da arte em geral… da literatura, do cinema, da poesia, entre outros; e) dominar outros idiomas, para ler obras no original, sobretudo quando não traduzidas; f) utilizar adequadamente o vernáculo, a palavra escrita e a palavra oral, sem resvalar para a verborragia, para a retórica jurídica fajuta e para o pretenso e falso rebuscamento; g) ter disponibilidade para participar de grupos de pesquisa e estudo, de programas de monitoria, de congressos, encontros, colóquios etc.; h) transcender as próprias circunstâncias, a ponto de se mudar de cidade com o objetivo de realizar cursos mais demorados, sobretudo no âmbito da pós-graduação stricto sensu, sabendo-se das despesas, da distância, da solidão e das dificuldades de toda espécie.

A carreira infinita

A ideia de “carreira” nos dá a sensação de movimento, de andamento, de algo que não para. Espera-se do acadêmico que “progrida” na carreira. Esta progressão acadêmica apresenta, no entanto, uma feição singular. Daquele que se embrenha na carreira acadêmica não se espera, porém, um atropelamento do tempo necessário à maturação científica. O acadêmico não se confunde com o profissional que está sempre “de carreira”… É preciso parar no caminho. O ambiente móbil da academia, o seu locus nunca suficientemente assentado, mas sempre tendente para um outro lugar, é uma espécie de via de paradas, de interrupções, de suspensões… A academia é, por excelência, o lugar do pouso, da pausa, mas não do repouso… Há que parar para pensar. Para-se para pensar. O pensamento é sempre uma interrupção do agir automático no meio do mundo. Mas o pensamento há de ser movente, ininterrupto, incansável.

A carreira acadêmica não é como uma corrida comum: com ponto de partida e ponto de chegada determinados. Quando é que se entra, de fato, na carreira acadêmica? Na graduação? Na pós-graduação? Difícil é apontar quando alguém se transforma num acadêmico. Onde encontrar o começo desta peregrinação? Sem ponto de partida certo, não se pode igualmente dizer que a carreira acadêmica tenha fim especificado. E quanto à aposentadoria? Esta certamente não estabelece o seu acabamento, no máximo o seu recomeço, o sem-fim do seu começo que nem a morte abala, visto que o pensamento renasce e revive na continuidade dos seus seguidores. Da carreira acadêmica pode-se, então, realçar o seu caráter in-finito. Carreira, por conseguinte, infinita… que não se confunde com esta ou com aquela via… Inevitavelmente: terceira via. Por vezes, via difícil, penosa, tortuosa, mas capaz de conduzir a lugares insuspeitos, a lugares nunca antes navegados, a lugares inéditos de sentido.
Enquanto a prática jurídica nos acelera, nos arremessa na vitalidade enérgica de um Direito que precisa apresentar respostas rápidas às questões concretas que aparecem, o exercício teórico-jurídico, próprio da carreira acadêmica, nos requer uma espécie de pausa para a reflexão. Reflexão que, porém, nunca acaba. Apenas se retoma a cada vez, num processo que nunca termina de recomeçar. Sem a teoria do Direito, a prática do Direito se desorienta: desemboca num caos total, produtor da injustiça.
A realização da Justiça no mundo pelo Direito requer a existência de juristas dispostos a seguir a carreira acadêmica.No mínimo, ela desempenha o importante papel de prevenção contra o descarrilamento práticodo Direito. Daí a esperança de que, ao longo do curso de Direito, alguns sejam, de fato, seduzidos, chamados, escolhidos para a sua via extraordinária, certamente sem início certo nem fim decretado, mas nem por isso menos prometedora de belas e inesquecíveis paisagens.

Felipe Rodolfo de Carvalho é Doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela FD/USP. Atualmente, atua como Professor e Pesquisador na UFMT e no UNIVAG – Centro Universitário. Membro do CEBEL (Centro Brasileiro de Estudos Levinasianos). Advogado.

[1] Cf. FERAZ JR. Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 5. ed. rev. e ampl.  São Paulo: Atlas, p. 76-77.

Fonte: justificando.cartacapital.com.br
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