goo.gl/GvUa6o | Atual posicionamento do STJ, agora sumulado, colocará um ponto final na discussão da matéria?
1. Introdução
Derivado do latim sui (próprio) e caedere (matar), o suicídio sempre esteve presente nos mais distantes tempos e sociedades. Curiosamente, o ato de ceifar a própria vida já foi considerado sob diferentes óticas, de ato egoístico e condenável à medida corajosamente heroica, o que leva pessoas a ignorar o mais primitivo dos instintos – autopreservação –, todavia escapa, ainda hoje, à compreensão.1
Questão diversa, embora intrinsecamente relacionada, é a que se refere aos efeitos oriundos dessa conduta no âmbito do seguro de vida. Afinal, a morte da pessoa segura, quando resultante de suicídio, afasta o direito por parte do beneficiário ao capital segurado?
Tal resposta parece estar no difícil sopesamento entre a proteção do beneficiário – quase sempre um ente familiar que, diante da situação, se supõe particularmente vulnerável – e a manutenção do equilíbrio contratual – em especial, a não eliminação da álea, viabilizadora, por meio do mutualismo, da cobrança de prêmio consideravelmente menor do que o valor do capital estipulado no contrato. Um périplo pela evolução da matéria, com efeito, pode ajudar.
2. Panorama da evolução no tratamento da matéria no direito brasileiro
No Brasil, o primeiro dispositivo legal que regulou o tema foi o artigo 1440 do Código Civil de 1916. Em seu caput, foi permitida a cobertura da morte involuntária pelo seguro, afastando-se, a contrario sensu, a cobertura da morte voluntária. No intuito de auxiliar o intérprete, o CC foi além: estipulou, no parágrafo único do referido artigo, que considera morte voluntária “a recebida em duelo, bem como o suicídio premeditado por pessoa em seu juízo”.
A leitura do art. 1440 do CC de 1916 demonstra que não podia se configurar como “objeto segurável” a morte causada pelo suicídio premeditado por pessoa em seu juízo. O suicídio não premeditado, portanto, poderia ser segurado. O suicídio premeditado, mas – para manter na expressão da lei – “por pessoa fora de seu juízo”, também.
Restava, à época, todavia, a seguinte dúvida: poderia o segurador, mediante a estipulação de uma cláusula contratual, afastar a cobertura de qualquer modalidade de suicídio (inclusive não premeditado) durante um determinado período?
Após alguma hesitação, a jurisprudência brasileira manteve longa estabilidade na interpretação da matéria – conforme se nota nas súmulas, distantes por pouco menos de três décadas do STF e STJ. Enquanto a súmula 105 do STF (1963) estipula que, “Salvo se tiver havido premeditação, o suicídio do segurado no período contratual da carência não exime o pagamento do seguro”, consta na súmula 61 do STJ (1992): “O seguro de vida cobre o suicídio não premeditado”.
Destarte, havia clara diferenciação na solução da contenda caso houvesse “suicídio voluntário” (que seria marcado pela presença da intenção por parte do segurado, já no momento da contratação) ou “suicídio involuntário” (que incorreria por uma “força irresistível”, caracterizada pela ausência de livre arbítrio).
Ainda de acordo com a jurisprudência prevalecente, cabia ao segurador a hercúlea tarefa de provar o animus premeditado, sublinhe-se, no momento da contratação, por parte do segurado. Posição de tudo questionável, sobremaneira pelo necessário respeito aos direitos da personalidade (e.g., privacidade, intimidade e honra) da pessoa segura – que, como se sabe, projetam-se após a morte – e de seus familiares.
Desejando afastar a vetusta celeuma em tela, o legislador brasileiro inovou tanto ao estipular claramente a possibilidade do estabelecimento de um prazo de carência no seguro de vida para o caso de morte (art. 797 do CC) quanto, no que refere especificamente ao suicídio, ao consagrar (art. 798): “O beneficiário não tem direito ao capital estipulado quando o segurado se suicida nos primeiros dois anos de vigência inicial do contrato, ou da sua recondução depois de suspenso”.2
Nesse pano de fundo, de grande interesse histórico se revela o estudo de Fábio Konder Comparato, que sugeriu uma alteração – posteriormente acatada de forma substancial – no dispositivo do projeto de Código das Obrigações de 1965 referente ao tema. Após criticar a escolha do projeto em tela, que seguia orientação do Código Civil de 1916 ao estipular a premeditação como critério de análise do suicídio, o autor propôs, inspirado no Código Civil italiano (art. 1927), a estipulação de um critério objetivo: prazo de carência legal de dois anos, alheio à análise das condições ensejadoras do sinistro (é dizer, indiferente aos meandros subjetivos ensejadores da morte por suicídio da pessoa segura).3
Após a entrada em vigor do novo CC, que, repita-se, seguiu de perto a proposta do Substitutivo Comparato, surgiram algumas teses a propor a escorreita interpretação ao art. 798; didaticamente, pode-se agrupá-las em três.
A primeira tese defendia que o artigo deveria ser lido conjuntamente com as súmulas do STJ (61) e STF (105), mantendo, assim, a necessidade de premeditação do suicídio pela pessoa segura, bem como a prova desse fato por parte do segurador para a perda do direito ao capital estipulado pelo beneficiário. A inovação na matéria se restringiria ao parágrafo único do art. 798, que teria agasalhado uma presunção absoluta de cobertura após o prazo de dois anos disposto no caput.4
Uma segunda posição se firmou no meio do caminho; segundo ela, o código teria consagrado uma presunção relativa de premeditação do suicídio, quando ocorrido dentro do prazo de carência legal. Essa presunção poderia ser afastada se o beneficiário tivesse êxito em provar que o suicídio não foi premeditado, o que lhe conferiria o direito de receber o capital segurado.5
A terceira corrente, por sua vez, defendia que deveria ser respeitado o prazo de carência legal, sendo de todo irrelevante a causa do suicídio do segurado. Ora, o legislador teria tomado uma posição clara ao optar por não fazer qualquer menção à voluntariedade do ato. O novel dispositivo teria sido motivado por várias razões de ordem e, em última instância, protegeria a própria coletividade.6
Traçado breve panorama da evolução no tratamento legislativo e doutrinário, é de se ressaltar que a interpretação majoritária nos tribunais, até abril de 2015, foi a da primeira corrente exposta, ou seja, o suicídio premeditado afasta o direito do beneficiário a receber o capital segurado, cabendo ao segurador provar a intenção ardilosa da pessoa segura. A partir do REsp nº 1.334.005/GO, julgado pela 2ª Seção do STJ no dia 08/04/2015, a situação se inverteu por completo, tendo sido consagrado um rigoroso respeito ao prazo objetivo de carência previsto no art. 798 do CC.
Nas palavras da Min. Rel. para o acórdão do referido leading case, Maria Isabel Galloti: “Após a entrada em vigor do novo Código, portanto, quando se celebra um contrato de seguro de vida, não é risco coberto o suicídio nos primeiros dois anos de vigência […]. Após esses dois anos, por outro lado, diante do suicídio, a seguradora terá de pagar o prêmio (sic), mesmo diante da prova mais cabal de premeditação. Não penso que essa reforma tenha beneficiado nem a seguradora e nem ao segurado, em tese, mas conferido objetividade à disciplina legal do contrato de seguro de vida”.
Sem embargo de alguma relutância sentida em tribunais estaduais, o entendimento versado manteve-se incólume na mais alta corte infraconstitucional, a ponto de dias atrás, em 07 de maio de 2018, ter sido noticiada a aprovação, pela 2ª Seção, de um novo enunciado sumular sobre a matéria. Nesse sentido, para além do cancelamento da súmula 62, foi estabelecida a súmula 610: “O suicídio não é coberto nos dois primeiros anos de vigência do contrato de seguro de vida, ressalvado o direito do beneficiário à devolução do montante da reserva técnica formada”.
Conforme o art. 123 do Regimento Interno do STJ, a nova súmula será, em datas próximas, publicada três vezes no Diário da Justiça. Desde logo, porém, impõem-se algumas breves notas.
3. Súmula 610 do STJ
“Um ponto e vírgula é usado quando um autor pode terminar uma frase, mas escolhe continuar”. Com essa inspiração, Amy Bleuel criou, em 2013, o Project Semicolon nos EUA.7 O movimento ganhou escala global, contando, atualmente, com a participação de vários jovens que, por meio de tatuagens do símbolo ponto e vírgula (;), combatem o suicídio e prestam solidariedade aos envolvidos em casos pretéritos.
Trazendo tais considerações para o objeto específico do estudo, mostra-se relevante refletir se o atual posicionamento do STJ, alvo de recentíssima súmula, refletiria um ponto final na matéria. Ciente de que aqui não é a sede apropriada para o desenvolvimento de todos os aspectos essenciais, cabe, ao menos, apontar algumas inquietações.
Nesse sentido, a nova súmula teria plena aplicabilidade no âmbito do seguro de vida coletivo, inclusive no que se refere ao direito, algo contrastante com o regime financeiro de repartição simples que geralmente essa modalidade de seguro adota, à devolução da reserva técnica formada? Como ficaria a questão da “recondução depois de suspenso” presente no art. 798 do CC? A suspensão do contrato sempre geraria a recontagem do prazo de carência de dois anos? Qual seria o impacto do suicídio no seguro de acidentes pessoais? E nos seguros de vida atrelados a outros contratos, como, por exemplo, o de financiamento?
Indo além, qual o exato conceito de suicídio na visão do STJ? Pular de prédio que está quase desmoronando configura suicídio? A má-fé do segurado, presente no período da contratação e provada por meio de uma inconteste carta suicida, não arredaria o direito ao capital estipulado após o prazo de dois anos? A controvérsia debatida deve ser resolvida com a mera aplicação subsuntiva da norma (premissa maior) ao fato (premissa menor)?
Se necessário fosse resumir em uma pergunta: ponto final ou ponto e vírgula?
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1 “O suicida se mata por estar perturbado ou por ser demasiadamente lúcido?”. MARTINS-COSTA, Judith. Contrato de seguro. Suicídio do segurado. Art. 798, Código Civil. Interpretação. Diretrizes e princípios do Código Civil. Proteção ao consumidor. Revista Brasileira de Direito Civil. Rio de Janeiro, v. I, p. 233, jul./set. 2014. Diga-se de passagem: atualmente, o suicídio costuma ser associado a transtornos mentais, como, por exemplo, a depressão, o alcoolismo e a esquizofrenia.
2 A parte final do caput do artigo 798 aduz ainda que deve ser observado o disposto no parágrafo único do art. 797, o que significa dizer que o segurador, caso se alforrie do dever de prestar com o capital segurado em virtude do suicídio da pessoa segura, é de toda forma obrigado a restituir o montante da reserva técnica já formada ao beneficiário.
3 “A orientação do Projeto de 1965, copiada do Código Civil, não parece a melhor. Ao falar em suicídio premeditado, o legislador abre ensejo a sutis distinções entre premeditação e simples voluntariedade do ato, tornando na prática sempre certo o direito ao capital segurado, pela impossibilidade material de prova do fato extintivo, o que não deixa de propiciar a fraude. Preferimos seguir neste passo o Código Civil Italiano (art. 1.927), excluindo em qualquer hipótese o direito ao capital estipulado se o segurado se suicida nos primeiros dois anos de vigência inicial do contrato ou da sua recondução depois de suspenso, e proibindo em contrapartida a estipulação de não pagamento para o caso de suicídio ocorrer após esse lapso de tempo”. COMPARATO, Fábio Konder. Substituto ao capítulo referente ao contrato de seguro no anteprojeto de Código Civil. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo, a. XI (Nova série), n. 5, p. 151, 1972.
4 Por todos, CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2014. pp. 524-527.
5 Para a sua defesa, vide: TZIRULNIK, Ernesto; CAVALCANTI, Flávio de Queiroz; PIMENTEL, Ayrton. O contrato de seguro de acordo com o código civil brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Roncarati, 2016. p. 285, e o Enunciado 187 da III Jornada de Direito Civil.
6 Cfr. o voto vencido do Min. Sidnei Beneti no AgRg no Ag. 1.244.022/RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 2ª Seção, julgado em 13/04/2011: “embora possa parecer, a princípio, que a interpretação estrita do Código Civil, na redação atual, seja uma diretriz, insensível, nociva, do ponto de vista do sentimento social, porque deixaria uma indenização sem ser paga, pareceu-me, e está consignado no voto ‒ que é exatamente o contrário. Tendo o contratante de seguro a certeza de que não vai haver indenização, no caso de suicídio em um ano, ante o caráter objetivo da aplicação do dispositivo legal, certamente não terá, ele, em momento de grande desespero emocional, a estímulo indireto ao suicídio, reforçado pelo sentimento altruístico de deixar uma indenização para os seus entes queridos”. Confiram-se: MARTINS-COSTA, Judith. Contrato de seguro, cit. pp. 252 e ss.; CAMPOY, Adilson José. Contrato de seguro de vida. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. pp. 137 e ss.; PETRAROLI, Ana Rita R.; CARLINI, Angélica L. O suicídio e sua interpretação no Direito Brasileiro. Revista Brasileira de Risco e Seguro. Rio de Janeiro, v. 6, n. 12, pp. 1 e ss., out. 2010/mar. 2011.
7 Em tradução livre, “Projeto Ponto e Vírgula”; para consulta a respeito, confira-se o seguinte endereço eletrônico: <https://projectsemicolon.com>, acesso em: 07/05/2018.
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Por Thiago Villela Junqueira – Doutorando em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestre em Direito Civil pela Universidade de Coimbra. Integra o corpo docente do programa de MBA da Escola Nacional de Seguros e do IDS América Latina. Advogado.
Fonte: www.jota.info
1. Introdução
Derivado do latim sui (próprio) e caedere (matar), o suicídio sempre esteve presente nos mais distantes tempos e sociedades. Curiosamente, o ato de ceifar a própria vida já foi considerado sob diferentes óticas, de ato egoístico e condenável à medida corajosamente heroica, o que leva pessoas a ignorar o mais primitivo dos instintos – autopreservação –, todavia escapa, ainda hoje, à compreensão.1
Questão diversa, embora intrinsecamente relacionada, é a que se refere aos efeitos oriundos dessa conduta no âmbito do seguro de vida. Afinal, a morte da pessoa segura, quando resultante de suicídio, afasta o direito por parte do beneficiário ao capital segurado?
Tal resposta parece estar no difícil sopesamento entre a proteção do beneficiário – quase sempre um ente familiar que, diante da situação, se supõe particularmente vulnerável – e a manutenção do equilíbrio contratual – em especial, a não eliminação da álea, viabilizadora, por meio do mutualismo, da cobrança de prêmio consideravelmente menor do que o valor do capital estipulado no contrato. Um périplo pela evolução da matéria, com efeito, pode ajudar.
2. Panorama da evolução no tratamento da matéria no direito brasileiro
No Brasil, o primeiro dispositivo legal que regulou o tema foi o artigo 1440 do Código Civil de 1916. Em seu caput, foi permitida a cobertura da morte involuntária pelo seguro, afastando-se, a contrario sensu, a cobertura da morte voluntária. No intuito de auxiliar o intérprete, o CC foi além: estipulou, no parágrafo único do referido artigo, que considera morte voluntária “a recebida em duelo, bem como o suicídio premeditado por pessoa em seu juízo”.
A leitura do art. 1440 do CC de 1916 demonstra que não podia se configurar como “objeto segurável” a morte causada pelo suicídio premeditado por pessoa em seu juízo. O suicídio não premeditado, portanto, poderia ser segurado. O suicídio premeditado, mas – para manter na expressão da lei – “por pessoa fora de seu juízo”, também.
Restava, à época, todavia, a seguinte dúvida: poderia o segurador, mediante a estipulação de uma cláusula contratual, afastar a cobertura de qualquer modalidade de suicídio (inclusive não premeditado) durante um determinado período?
Após alguma hesitação, a jurisprudência brasileira manteve longa estabilidade na interpretação da matéria – conforme se nota nas súmulas, distantes por pouco menos de três décadas do STF e STJ. Enquanto a súmula 105 do STF (1963) estipula que, “Salvo se tiver havido premeditação, o suicídio do segurado no período contratual da carência não exime o pagamento do seguro”, consta na súmula 61 do STJ (1992): “O seguro de vida cobre o suicídio não premeditado”.
Destarte, havia clara diferenciação na solução da contenda caso houvesse “suicídio voluntário” (que seria marcado pela presença da intenção por parte do segurado, já no momento da contratação) ou “suicídio involuntário” (que incorreria por uma “força irresistível”, caracterizada pela ausência de livre arbítrio).
Ainda de acordo com a jurisprudência prevalecente, cabia ao segurador a hercúlea tarefa de provar o animus premeditado, sublinhe-se, no momento da contratação, por parte do segurado. Posição de tudo questionável, sobremaneira pelo necessário respeito aos direitos da personalidade (e.g., privacidade, intimidade e honra) da pessoa segura – que, como se sabe, projetam-se após a morte – e de seus familiares.
Desejando afastar a vetusta celeuma em tela, o legislador brasileiro inovou tanto ao estipular claramente a possibilidade do estabelecimento de um prazo de carência no seguro de vida para o caso de morte (art. 797 do CC) quanto, no que refere especificamente ao suicídio, ao consagrar (art. 798): “O beneficiário não tem direito ao capital estipulado quando o segurado se suicida nos primeiros dois anos de vigência inicial do contrato, ou da sua recondução depois de suspenso”.2
Nesse pano de fundo, de grande interesse histórico se revela o estudo de Fábio Konder Comparato, que sugeriu uma alteração – posteriormente acatada de forma substancial – no dispositivo do projeto de Código das Obrigações de 1965 referente ao tema. Após criticar a escolha do projeto em tela, que seguia orientação do Código Civil de 1916 ao estipular a premeditação como critério de análise do suicídio, o autor propôs, inspirado no Código Civil italiano (art. 1927), a estipulação de um critério objetivo: prazo de carência legal de dois anos, alheio à análise das condições ensejadoras do sinistro (é dizer, indiferente aos meandros subjetivos ensejadores da morte por suicídio da pessoa segura).3
Após a entrada em vigor do novo CC, que, repita-se, seguiu de perto a proposta do Substitutivo Comparato, surgiram algumas teses a propor a escorreita interpretação ao art. 798; didaticamente, pode-se agrupá-las em três.
A primeira tese defendia que o artigo deveria ser lido conjuntamente com as súmulas do STJ (61) e STF (105), mantendo, assim, a necessidade de premeditação do suicídio pela pessoa segura, bem como a prova desse fato por parte do segurador para a perda do direito ao capital estipulado pelo beneficiário. A inovação na matéria se restringiria ao parágrafo único do art. 798, que teria agasalhado uma presunção absoluta de cobertura após o prazo de dois anos disposto no caput.4
Uma segunda posição se firmou no meio do caminho; segundo ela, o código teria consagrado uma presunção relativa de premeditação do suicídio, quando ocorrido dentro do prazo de carência legal. Essa presunção poderia ser afastada se o beneficiário tivesse êxito em provar que o suicídio não foi premeditado, o que lhe conferiria o direito de receber o capital segurado.5
A terceira corrente, por sua vez, defendia que deveria ser respeitado o prazo de carência legal, sendo de todo irrelevante a causa do suicídio do segurado. Ora, o legislador teria tomado uma posição clara ao optar por não fazer qualquer menção à voluntariedade do ato. O novel dispositivo teria sido motivado por várias razões de ordem e, em última instância, protegeria a própria coletividade.6
Traçado breve panorama da evolução no tratamento legislativo e doutrinário, é de se ressaltar que a interpretação majoritária nos tribunais, até abril de 2015, foi a da primeira corrente exposta, ou seja, o suicídio premeditado afasta o direito do beneficiário a receber o capital segurado, cabendo ao segurador provar a intenção ardilosa da pessoa segura. A partir do REsp nº 1.334.005/GO, julgado pela 2ª Seção do STJ no dia 08/04/2015, a situação se inverteu por completo, tendo sido consagrado um rigoroso respeito ao prazo objetivo de carência previsto no art. 798 do CC.
Nas palavras da Min. Rel. para o acórdão do referido leading case, Maria Isabel Galloti: “Após a entrada em vigor do novo Código, portanto, quando se celebra um contrato de seguro de vida, não é risco coberto o suicídio nos primeiros dois anos de vigência […]. Após esses dois anos, por outro lado, diante do suicídio, a seguradora terá de pagar o prêmio (sic), mesmo diante da prova mais cabal de premeditação. Não penso que essa reforma tenha beneficiado nem a seguradora e nem ao segurado, em tese, mas conferido objetividade à disciplina legal do contrato de seguro de vida”.
Sem embargo de alguma relutância sentida em tribunais estaduais, o entendimento versado manteve-se incólume na mais alta corte infraconstitucional, a ponto de dias atrás, em 07 de maio de 2018, ter sido noticiada a aprovação, pela 2ª Seção, de um novo enunciado sumular sobre a matéria. Nesse sentido, para além do cancelamento da súmula 62, foi estabelecida a súmula 610: “O suicídio não é coberto nos dois primeiros anos de vigência do contrato de seguro de vida, ressalvado o direito do beneficiário à devolução do montante da reserva técnica formada”.
Conforme o art. 123 do Regimento Interno do STJ, a nova súmula será, em datas próximas, publicada três vezes no Diário da Justiça. Desde logo, porém, impõem-se algumas breves notas.
3. Súmula 610 do STJ
“Um ponto e vírgula é usado quando um autor pode terminar uma frase, mas escolhe continuar”. Com essa inspiração, Amy Bleuel criou, em 2013, o Project Semicolon nos EUA.7 O movimento ganhou escala global, contando, atualmente, com a participação de vários jovens que, por meio de tatuagens do símbolo ponto e vírgula (;), combatem o suicídio e prestam solidariedade aos envolvidos em casos pretéritos.
Trazendo tais considerações para o objeto específico do estudo, mostra-se relevante refletir se o atual posicionamento do STJ, alvo de recentíssima súmula, refletiria um ponto final na matéria. Ciente de que aqui não é a sede apropriada para o desenvolvimento de todos os aspectos essenciais, cabe, ao menos, apontar algumas inquietações.
Nesse sentido, a nova súmula teria plena aplicabilidade no âmbito do seguro de vida coletivo, inclusive no que se refere ao direito, algo contrastante com o regime financeiro de repartição simples que geralmente essa modalidade de seguro adota, à devolução da reserva técnica formada? Como ficaria a questão da “recondução depois de suspenso” presente no art. 798 do CC? A suspensão do contrato sempre geraria a recontagem do prazo de carência de dois anos? Qual seria o impacto do suicídio no seguro de acidentes pessoais? E nos seguros de vida atrelados a outros contratos, como, por exemplo, o de financiamento?
Indo além, qual o exato conceito de suicídio na visão do STJ? Pular de prédio que está quase desmoronando configura suicídio? A má-fé do segurado, presente no período da contratação e provada por meio de uma inconteste carta suicida, não arredaria o direito ao capital estipulado após o prazo de dois anos? A controvérsia debatida deve ser resolvida com a mera aplicação subsuntiva da norma (premissa maior) ao fato (premissa menor)?
Se necessário fosse resumir em uma pergunta: ponto final ou ponto e vírgula?
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1 “O suicida se mata por estar perturbado ou por ser demasiadamente lúcido?”. MARTINS-COSTA, Judith. Contrato de seguro. Suicídio do segurado. Art. 798, Código Civil. Interpretação. Diretrizes e princípios do Código Civil. Proteção ao consumidor. Revista Brasileira de Direito Civil. Rio de Janeiro, v. I, p. 233, jul./set. 2014. Diga-se de passagem: atualmente, o suicídio costuma ser associado a transtornos mentais, como, por exemplo, a depressão, o alcoolismo e a esquizofrenia.
2 A parte final do caput do artigo 798 aduz ainda que deve ser observado o disposto no parágrafo único do art. 797, o que significa dizer que o segurador, caso se alforrie do dever de prestar com o capital segurado em virtude do suicídio da pessoa segura, é de toda forma obrigado a restituir o montante da reserva técnica já formada ao beneficiário.
3 “A orientação do Projeto de 1965, copiada do Código Civil, não parece a melhor. Ao falar em suicídio premeditado, o legislador abre ensejo a sutis distinções entre premeditação e simples voluntariedade do ato, tornando na prática sempre certo o direito ao capital segurado, pela impossibilidade material de prova do fato extintivo, o que não deixa de propiciar a fraude. Preferimos seguir neste passo o Código Civil Italiano (art. 1.927), excluindo em qualquer hipótese o direito ao capital estipulado se o segurado se suicida nos primeiros dois anos de vigência inicial do contrato ou da sua recondução depois de suspenso, e proibindo em contrapartida a estipulação de não pagamento para o caso de suicídio ocorrer após esse lapso de tempo”. COMPARATO, Fábio Konder. Substituto ao capítulo referente ao contrato de seguro no anteprojeto de Código Civil. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo, a. XI (Nova série), n. 5, p. 151, 1972.
4 Por todos, CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2014. pp. 524-527.
5 Para a sua defesa, vide: TZIRULNIK, Ernesto; CAVALCANTI, Flávio de Queiroz; PIMENTEL, Ayrton. O contrato de seguro de acordo com o código civil brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Roncarati, 2016. p. 285, e o Enunciado 187 da III Jornada de Direito Civil.
6 Cfr. o voto vencido do Min. Sidnei Beneti no AgRg no Ag. 1.244.022/RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 2ª Seção, julgado em 13/04/2011: “embora possa parecer, a princípio, que a interpretação estrita do Código Civil, na redação atual, seja uma diretriz, insensível, nociva, do ponto de vista do sentimento social, porque deixaria uma indenização sem ser paga, pareceu-me, e está consignado no voto ‒ que é exatamente o contrário. Tendo o contratante de seguro a certeza de que não vai haver indenização, no caso de suicídio em um ano, ante o caráter objetivo da aplicação do dispositivo legal, certamente não terá, ele, em momento de grande desespero emocional, a estímulo indireto ao suicídio, reforçado pelo sentimento altruístico de deixar uma indenização para os seus entes queridos”. Confiram-se: MARTINS-COSTA, Judith. Contrato de seguro, cit. pp. 252 e ss.; CAMPOY, Adilson José. Contrato de seguro de vida. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. pp. 137 e ss.; PETRAROLI, Ana Rita R.; CARLINI, Angélica L. O suicídio e sua interpretação no Direito Brasileiro. Revista Brasileira de Risco e Seguro. Rio de Janeiro, v. 6, n. 12, pp. 1 e ss., out. 2010/mar. 2011.
7 Em tradução livre, “Projeto Ponto e Vírgula”; para consulta a respeito, confira-se o seguinte endereço eletrônico: <https://projectsemicolon.com>, acesso em: 07/05/2018.
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Por Thiago Villela Junqueira – Doutorando em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestre em Direito Civil pela Universidade de Coimbra. Integra o corpo docente do programa de MBA da Escola Nacional de Seguros e do IDS América Latina. Advogado.
Fonte: www.jota.info