Desembargador livra emissora de televisão por ‘encosto’, ‘demônios’ e ‘espíritos do mal’

goo.gl/hCf5eG | O desembargador Nery Junior, do Tribunal Regional Federal da 3.ª Região (TRF-3) suspendeu a execução – fase derradeira – de um processo que já dura 14 anos. Com a decisão, a Rede Record não terá de produzir programas televisivos a título de direito de resposta às religiões de origem africana.

Documento - O ACÓRDÃO DO TRF3

O procurador Regional dos Direitos do Cidadão em exercício, Pedro Antônio Machado, afirma que a decisão do desembargador, de 7 de maio, surpreende.

“Não é possível que a Justiça demore quase 14 anos para decidir uma questão como essa e ainda suspenda essa execução. De acordo com o entendimento do Supremo Tribunal Federal, uma decisão de 2.ª instância pode levar uma pessoa à prisão, que é algo muito mais grave do que executar essa sentença”, avalia.

Em dezembro de 2004, o Ministério Público Federal de São Paulo acionou Record e a extinta Rede Mulher – comprada pela Record – por suposto desrespeito aos cultos afro. O processo foi movido também pelo Instituto Nacional de Tradição e Cultura Afro-Brasileira (Intecab) e pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e da Desigualdade (Ceert).

A Procuradoria alegou, naquele ano, que as religiões afro-brasileiras haviam sido agredidas com a veiculação de conteúdos ofensivos no programa ‘Mistérios’ e no quadro ‘Sessão de Descarrego’.

Segundo a Procuradoria, os programas se referiam às religiões afro-brasileiras com termos pejorativos, como ‘encosto’, ‘demônios’, ‘espíritos do mal’, ‘bruxaria’ e ‘feitiçaria’, além da palavra ‘macumba’.

A sentença do juiz Djalma Moreira Gomes, da 25.ª Vara Cível Federal, foi publicada em 22 de abril de 2015. As emissoras foram condenadas a exibir quatro programas de televisão como direito de resposta às religiões, empregando seus espaços físicos, equipamentos e pessoal técnico para a produção dos conteúdos.

A decisão de 1.ª instância foi mantida pela Sexta Turma do TRF-3 em 5 de abril deste ano. Após o acórdão da Corte de 2ª instância, a emissora entrou com outros dois recursos, Especial e Extraordinário.

A admissibilidade de ambos passa pela vice-presidência da Corte, cargo ocupado por Nery Júnior. O desembargador é responsável por verificar se os recursos ‘estão em ordem’ para depois remeter ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e Supremo Tribunal Federal (STF).

Em 7 de maio, o desembargador Nery Junior suspendeu a execução da decisão da Sexta Turma, atendendo a requerimento da Record. A emissora alegou que o cumprimento da condenação ‘causaria danos irreversíveis’ caso seu recurso no Supremo reformasse o acórdão do Tribunal.

Ao suspender a execução, Nery Junior anotou que ‘a legislação sempre proibiu a antecipação de tutela quando houver perigo de irreversibilidade do provimento antecipado’.

“Conclui-se pela necessidade de atribuição de efeito suspensivo aos recursos excepcionais, até que sobrevenha nova deliberação desta vice-presidência”, determinou o desembargador. “Defiro a atribuição de efeito suspensivo ao recurso extraordinário interposto pelas impetrantes.”

Pedro Antônio Machado afirma que a duração do processo ‘chama a atenção’. O procurador aponta ainda para o ‘perigo de irreversibilidade’.

“Qualquer decisão pode haver prejuízo. O que tem que se verificar é se houve contraditório, se houve ampla defesa e se a decisão afinal de contas não é totalmente fora do direito, se não é fora do padrão da jurisprudência. Se for uma decisão assim, é até razoável que haja essa suspensão. Mas afora essas hipóteses, considerando esse tempo de decurso do processo, na perspectiva do Ministério Público não parece razoável essa suspensão. Não é essa Justiça que o brasileiros esperam. Os brasileiros não esperam uma Justiça que dure 14 anos, que consiga um título executivo de 2.ª instância e não consiga executar”, afirma.

O procurador alerta. “O poder Judiciário tem uma importância fundamental. Não basta ter direito se você não tem um órgão que faça com que esse direito valha. O Judiciário tem essa importante missão, de fazer valer o direito. Mas 14 anos para decidir uma questão, quando essa decisão for finalmente executada, você não sabe mais se está sendo feita Justiça ou não, porque a distância dos fatos é muito grande.”

A reportagem fez contato com o Tribunal Regional Federal da 3.ª Região (TRF-3) e com a Rede Record. O espaço está aberto para manifestação.

Por Julia Affonso
Fonte: Estadão
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