Ainda sobre a reforma trabalhista... uma análise crítica constitucional - Por Geovane Peixoto

goo.gl/EMw6Ca | Geovane De Mori Peixoto[1]

Resumo: Ainda é necessária a discussão da última reforma trabalhista promovida pela Lei nº 13.467/2017. A proposta deste artigo é realizar uma análise constitucional geral da reforma, utilizando o método crítico, que se vale da transcendência do discurso jurídico por intermédio de outros campos do conhecimento. Defende a inconstitucionalidade das medidas que representam um retrocesso do direito fundamental social do trabalho na proteção do trabalhador e de sua dignidade, como impõe a Constituição Federal de 1988.

Sumário: 1. Introdução; 2. O Sentido do Trabalho no Contexto Neoliberal e a Reforma Trabalhista; 3. A Proteção Constitucional do Trabalho; 4. Análise Crítica Constitucional da Reforma Trabalhista (Lei nº 13.467/2017) à Guisa de Conclusão; Referências

Introdução


Múltiplos foram os debates e teses sustentados nos últimos tempos em decorrência da denominada “Reforma Trabalhista”, diante da edição da Lei nº13.467/2017. Ainda há, porém, espaço para o aprofundamento crítico acerca da temática, o que se fará nesse artigo sob o prisma constitucional.

Não é possível, todavia, realizar essa tarefa sob o viés crítico sem amplificar o horizonte de análise, o que requer, por sua vez, estabelecer um diálogo com outros campos do saber, como a sociologia e a economia. Sem adentrar nesses campos corre-se o risco de cair na armadilha de teorias argumentativas que não possuem outro escopo que não seja o mero convencimento retórico.

É importante salientar, desde já, que o objetivo deste trabalho não é analisar pontos específicos e pormenores da reforma, mas avaliar em sentido amplo o seu sentido e, assim, avaliara a sua constitucionalidade.

Para isso, o texto será fracionado em três pontos: a) o sentido do trabalho no contexto neoliberal; b) a proteção constitucional do trabalho; e c) uma análise crítica constitucional da reforma trabalhista.

O Sentido do Trabalho no Contexto Neoliberal e a Reforma Trabalhista


Antes de se discutir qualquer aspecto acerca do trabalho por um viés jurídico, faz-se imperativo entender o seu sentido, notadamente em uma sociedade capitalista. Há um impacto claro do neoliberalismo no sentido do trabalho, com a consequente flexibilização, precarização, etc., que impõe a necessidade de compreensão desse processo para que se compreenda a reforma jurídica[2].

Em um plano global há um desmantelamento do denominado Estado de bem-estar social, que abre as portas para o neoliberalismo, assim:

Depois de décadas (de promessas) de Estado de bem-estar social, em que os cortes financeiros se limitavam a curtos períodos e se apoiavam na promessa de que tudo logo voltaria ao normal, entramos num novo período em que a crise, ou melhor, um tipo de estado de emergência econômica, que necessita de todos os tipos de medidas de austeridade (corte de benefícios, redução de serviços gratuitos de saúde e educação, empregos cada vez mais temporários etc.), é permanente e está em constante transformação, tornando-se simplesmente um modo de viver.[3]

Trata-se de um processo de escala global, é inocência tentar entender a modificação do sentido do trabalho sem que isso esteja contextualizado em escala mundial. Para isso é preciso “saber combinar as forças externas, em especial o mercado e o Estado, com os processos internos (...), a fim de avaliar precisamente a contradição entre a acumulação capitalista e o comportamento político da classe trabalhadora em escala global”[4].

Uma das primeiras consequências deste processo de entronização do ideário neoliberal no “mundo do trabalho”, decorrente de avanços tecnológicos, principalmente no acesso à informação e nas redes de comunicação, é a flexibilização do trabalho.

A flexibilização constitui um gigantesco processo de alcance mundial de desconstrução do trabalho pela retirada de direitos, conquistas realizadas em séculos de lutas de trabalhadores e de trabalhadoras à custa de sangue, quando não da vida.[5]

Este processo, por óbvio, está associado ao fim primeiro (e talvez único) do empresário: o lucro; pois “o capitalista, quando vai ao mercado de trabalho e contrata mão de obra, determina sua escolha conforme as estratégias empresariais de maximizar lucros”[6].

Esse modelo flexível, motivado pela crise do capital, fez com que este “implementasse um vastíssimo processo de reestruturação, visando recuperar o seu ciclo produtivo e, ao mesmo tempo, repor o seu projeto de dominação societal, abalado pela confrontação e conflitualidade do trabalho”[7], uma vez que este sempre questionou esses mecanismos de dominação.

Diante do quadro apresentado, então, pode-se afirmar que:

O mundo do trabalho viveu, como resultado das transformações e metamorfoses em curso nas últimas décadas, particularmente nos países capitalistas avançados, com repercussões significativas nos países do terceiro Mundo dotados de uma industrialização intermediária, um processo múltiplo: de um lado verificou-se uma desproletarização do trabalho industrial, fabril, nos países de capitalismo avançado. Em outras palavras, houve uma diminuição da classe operária industrial tradicional. Mas, paralelamente, efetivou-se uma significativa subproletarização do trabalho, decorrência das formas diversas de trabalho parcial, precário, terceirizado, subcontratado, vinculado à economia informal, ao setor de serviços, etc.[8]

Como o neoliberalismo impõe as suas regras em um plano mundial, não se pode admitir que essas mudanças não sejam também implementadas por países do capitalismo periférico, como é o caso do Brasil. Chega-se, assim, a um dos motes (senão o principal) da denominada “Reforma Trabalhista”, adaptar o nosso sistema legislativo a essa realidade do trabalho flexível, parcial, precário, terceirizado, etc. A Lei nº 13.467/2017 legitima e legaliza a adoção da nova realidade do trabalho, num contexto neoliberal.

Ademais, a própria condição sócio-política-econômica do Brasil torna-o mais vulnerável para a implementação das medidas necessárias para adequação do modelo neoliberal, principalmente em função da alta taxa de desemprego, uma vez que:

(...) a escolha geográfica por locais onde a força de trabalho seja mais vulnerável. Nessas circunstâncias, as empresas podem impor condições rígidas até mesmo para o enfrentamento das demissões voluntárias, pois os trabalhadores, ao deixarem a empresa, correm o risco de aceitar uma proposta mais baixa ou de enfrentar o desemprego. O medo de perder o emprego abre caminhos para uma maior disciplina do trabalho, fazendo com que o próprio trabalhador se ajuste ao sistema de exploração.[9]

Esses processos de flexibilização, de terceirização, desregulação, precarização do trabalho se iniciou no governo de Fernando Collor, teve seguimento, com mais força, registre-se, no governo de Fernando Henrique Cardoso, e retomou com toda força no governo de Michel Temer, que capitaneou a última reforma, aqui sob análise.

Esse processo também impactou sobre o movimento sindical, uma vez que:

Essa nova realidade arrefeceu e tornou mais defensivo o novo sindicalismo, que se encontrava, de um lado, diante da emergência de um sindicalismo neoliberal, expressão da nova direita, sintonizada com a onda mundial conservadora (...)[10]

Entendendo que entre os papéis fundamentais assumidos pelos sindicatos, além da defesa da classe trabalhadora, e como consequência dessa função, estão as missões de enfrentamento dos setores monopólicos, contraditar a hegemonia do capital financeiro, lutar pela limitação das formas de expansão e especulação do capital, para alcançar o objetivo maior de justiça social.

Por esse motivo, a reforma também interferiu no movimento sindical, com o claro objetivo de enfraquecer a luta coletiva dos trabalhadores, e anular a oposição à reforma, em momento crucial, diante da necessidade urgente de contraditar o retrocesso imposto pela alteração de regras do sistema jurídico trabalhista.

Empreender esforços para analisar a reforma trabalhista sem essa contextualização é esforço inútil (para não chamar de infantil). A alteração legislativa que chancela o processo de reforma não pode ser compreendida a partir de uma visão dogmática jurídica, presa essencialmente ao valor semântico do texto (ainda não superamos o positivismo, essa é a verdade), mas somente diante desse contesto sócio, político e econômico, que se desenvolve em um plano mundial.

Trata-se de um complexo “jogo”, que, por sua vez, só pode ser jogado por quem conhece todas as suas regras. Uma visão parcial dá uma dimensão equivocado e o “jogador” acabará cometendo erros, que por sua vez comprometerão o resultado final do “jogo”. Nesse caso, porém, quem perde ao final não é o “jogador”, mas a parcela mais vulnerável da sociedade, que não tem participado do “jogo”, mas tão somente contemplado e suportado o resultado.

O nosso “jogador” (profissional do Direito – juízes, advogados e procuradores do trabalho), portanto, tem uma extrema responsabilidade, qual seja a de proteger essa parcela em condição de vulnerabilidade, e para isso precisa conhecer o “jogo” como um todo, para além da visão parcial e, muitas vezes, manipulada do direito. É preciso, portanto, uma visão crítica que permita entender qual a base que fundamentou a construção do “jogo”.

Não podemos, todavia, ignorara a existência de uma programação jurídica, que requer, assim, uma análise específica da sua dimensão de possibilidade dentro desse “jogo”. É o que se fará adiante, sob a ótica da existência de um sistema constitucional que define esse âmbito.

A Proteção Constitucional do Trabalho


Ideologicamente a Constituição Federal de 1988 define o Brasil como um Estado de bem-estar social. Isso tem consequência direta sobre a interpretação de todo o sistema jurídico, que não pode desconsiderar esse fato. É uma definição axiológica, de sorte que:

O espírito da Constituição Federal de 1988, portanto, é emancipatório, focado na proteção das pessoas mais fracas. Qualquer interpretação de dispositivos constitucionais deve respeitar essa ideologia de bem-estar social, imanente ao texto constitucional como um todo, sob pena de ideológica deturpação da ratio (a razão de ser) da Constituição como um todo.[11]

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, portanto, de essência social democrata, nesse sentido de proteção dos mais frágeis e vulneráveis, além de trazer um conjunto de regras aplicáveis às relações trabalhistas, vai além, e estabelece o trabalho como um valor do Estado Democrático de Direito, consoante se depreende da dicção do art. 1º, inciso IV[12].

Mais adiante, o mesmo texto constitucional, estabelece no art. 170, em seu caput, que a ordem econômica deve ter como um de seus valores norteadores a valorização do trabalho humano[13]. E ao disciplinar a ordem social, define em seu art. 193 que uma de suas bases é o primado do trabalho[14].

Não resta dúvida acerca da importância axiológica dispensada pelo texto constitucional ao trabalho, que se impõe como um valor primordial do nosso Estado. O efeito disso é que:

Valorização do trabalho humano e reconhecimento do valor social do trabalho consubstanciam cláusulas principiológicas que, ao par de afirmarem a compatibilização – conciliação e composição – (...)portam em si evidentes potencialidades transformadoras. Em sua interação com os demais princípios contemplados no texto constitucional, expressam prevalência dos valores do trabalho na conformação da ordem econômica, podendo, inclusive, se induzidos pela força do regime político, reproduzir em atos, efetivos, suas potencialidades transformadoras.[15]

Em consonância com o valor definido pela ordem econômica, a ordem social ratifica a importância da proteção ao trabalho no nosso Estado Democrático de Direito, no já citado art. 193, e “como a Constituição não contém palavras inúteis, parece-nos claro que o artigo em, análise define bem o que é nuclear à ordem social: o primado do trabalho”[16].

Sobre o fim da nossa ordem social, comprometida com a social democracia, com o bem-estar social e com a emancipação do ser humanos, Marcus Orione leciona que:

Somente uma nova forma de encarar o trabalho, com a busca da efetiva liberdade do trabalhador, poderá modular o nível da supressão da humanidade desse, fazendo, com isto, que sejam resgatados os propósitos humanistas dos direitos sociais. Para o aumento do grau de tal liberdade, no entanto, é indispensável que o Direito propicie, acima de tudo, o aumento do nível de solidariedade existente no mundo do trabalho. É necessário que, pelo Direito, não se formulem soluções que aumentem ainda mais a ruptura entre os interesses do trabalhador, considerando especialmente o mundo competitivo gerado pela diminuição dos empregos e pelas novas formas de organização do trabalho.[17]

Inobstante as questões já discutidas, e o sentido de resistência defendido para a proteção constitucional do trabalho, que será melhor desenvolvido adiante, é preciso rever a tradição liberal (e neoliberal) que defende uma perspectiva individualista de dignidade humana, uma vez que este é um dos fundamentos principiológicos que sustenta a proteção constitucional, como se pode depreender do já citado art. 170 da Constituição Federal. Esse valor fundamental para o humanismo deve ser reinterpretado em um sentido de solidarismo.

A Carta Política de 1988 estabelece a dignidade humana como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, III), o que “permite reconhecer que mesmo a ordem jurídica impõe a proteção de cada ser humano, não em razão de sua individualidade, mas enquanto parte de uma comunidade”[18], sustentando-se então a noção (neo)liberal de dignidade para além do tradicional individualismo, numa dimensão de solidariedade.

Diante desse perspectiva, Valdete Severo Souto assevera que:

O reconhecimento disso, que passa inclusive pela compreensão da ideologia que sustenta o discurso individualista, não compromete a possibilidade de lutar pela efetividade do discurso constitucional até suas últimas consequências, mas tem por parâmetro esse fundamento que o próprio Estado reconhece para si: o respeito à dignidade humana. Quando a Constituição brasileira refere que a ordem econômica “tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social” abre caminho para que a própria forma de (re)produção capitalista seja questionada.[19]

A tutela constitucional do trabalho, portanto, confere alguns sentidos próprios à sua juridicização, como a de representar um valor de inclusão, de redistribuição, de efetivação da igualdade material, mas, nesse momento, principalmente de resistência. Em uma relação dialética com o sistema econômico, a proteção constitucional do trabalho atribui aos trabalhadores (parte vulnerável da relação) condição de firmar oposição ao sistema capitalista, uma tentativa de impor equilíbrio ao “jogo”, considerando uma dimensão solidária das relações sociais.

A Constituição de 1988, assim, representa um marco na proteção ao trabalho e, principalmente, ao trabalhador, na sua missão de programar um Estado de bem-estar social, de proteção dos vulneráveis, na luta pela emancipação[20].

Merece registro, ainda, que o legislador constituinte atribuiu ao direito do trabalho a condição de direito fundamental social, consoante o art. 6º, da Constituição Federal de 1988. Esse fato confere a esta categoria jurídica, diante agora de sua fundamentalidade, todas as proteções inerentes a essa opção da Constituinte.

Dentre as consequências desta atribuição constituinte merece especial registro, para os fins deste artigo, a impossibilidade de retrocesso que atingem os direitos fundamentais, conforme os ditames da lex legum.

Se tomarmos a ideia da proibição de retrocesso em um sentido amplo, que significa toda e qualquer forma de proteção de direitos fundamentais em face de medidas do Poder Público, com destaque para o legislador e o administrador que tenham por escopo a supressão ou mesmo a restrição de direitos fundamentais (sejam eles sociais ou não), constata-se que a nossa ordem jurídica, ainda que não sob esse rótulo, de há muito já consagrou a noção, pelo menos em algumas de suas dimensões.[21]

Na luta contra o ideário e os “valores” (deveríamos chamar de preço[22]) neoliberais, representa, portanto, um conjunto de garantias que repele qualquer tentativa de retrocesso social, notadamente aquelas que se pautam na supressão de direitos fundamentais sociais, como é o caso da proteção do trabalho/trabalhador pautada pela Carta Política de 1988.

Diante do abrigo constitucional conferido ao trabalho e ao trabalhador, consoante se desenvolveu nesse tópico, e aplicando o método crítico, conclui-se que:

Normas trabalhistas comprometidas com a proteção do trabalhador são construídas a ferro e fogo, em face da atuação da classe trabalhadora e, ao mesmo tempo, das necessidades do capital. Constituem a demonstração empírica de que a construção moderna do Direito sob a perspectiva do indivíduo é um engodo.[23]

Dois destaques. Primeiro o registro de que a conquista de direitos sociais depende uma ”luta”, nesse caso específico, dos trabalhadores, uma vez que o direito tem sido programado pela lógica do sistema neoliberal capitalista, que, por sua vez, defende os interesses dos detentores do sistema de produção, que ao consignarem direitos trabalhistas o fazem pela lógica dos seus interesses. Esse é, inclusive, o segundo registro. O sistema capitalista defende a sua conveniência, logo a previsibilidade de direitos trabalhistas se dá nesse contexto, sem desconsiderar, todavia, a contraposição dialética que a força dos movimentos sociais e da “luta” da classe trabalhadora impõe para equilibrar o “jogo”.

 A “luta” política, nessa lógica, é quem pode garantir aos trabalhadores que a Constituição social se efetive. Não se pode esperar um “milagre” que o texto por si próprio o faça. Isso nunca acontecerá. A garantia semântica dos valores e os limites impostos pelo texto constitucional não são suficientes, uma vez que existe um jogo político-econômico que transcende o âmbito jurídico, e, como já foi dito, não pode ser desconsiderado. A participação política do trabalhador torna-se imprescindível para a efetivação dos direitos sociais, bem como para sua garantia e limitação das esferas pública e econômica.

Após a exposição da proteção constitucional ao trabalho, seguindo a formulação proposta para esse escrito, por último, far-se-á a análise crítica constitucional da reforma trabalhista, promovida pela Lei nº 13.467/2017.

Análise Crítica Constitucional da Reforma Trabalhista (Lei nº 13.467/2017) à Guisa de Conclusão


Inicialmente é preciso advertir o leitor, mais uma vez, que a proposta aqui não será analisar ponto por ponto as alterações promovidas pela legislação na última reforma trabalhista, mas sim promover uma análise geral desse processo.

A conclusão, por sua vez, já deve ser imaginada, também, é que a reforma, em sentido amplo, é inconstitucional, pois representa um retrocesso, na medida que, impõe, diversamente do que defende a Constituição, uma série de restrições, supressões e involução na proteção ao trabalhador, em frontal agressão à sua dignidade e em favor do capital.

Não se pode admitir que uma reforma trabalhista que afetará os trabalhadores, impondo-lhes um claro retrocesso na regulação desse tipo de relação sócio-jurídica-econômica, possa ser aprovada sem um amplo debate, como aconteceu, bem como sem a consulta popular, necessária em um Estado Democrático de Direito (art. 1º da Constituição Federal de 1988), bem como, inclusive, determina a Convenção nº 144, da Organização Internacional do Trabalho, ou seja, além de inconstitucional, ela é ilegítima do ponto de vista democrático.

O Ministério Público do Trabalho, somente a título de exemplo, apontou doze pontos inconstitucionais da reforma em Nota Técnica[24], sendo eles os seguintes: a) a “pejotização”, contratação de autônomos por pessoa jurídica em supressão à relação trabalhista, b) a terceirização, c) pagamento abaixo do salário mínimo e redução do FGTS, d) flexibilização da jornada de trabalho, e) redução da responsabilidade do empregador, f) negociação individual para quem ganha acima de onze mil reais, g) prevalência do negociado sobre o legislado, h) supressão do papel dos sindicatos com representantes dos trabalhadores em empresas com mais de duzentos empregados, i) redução das horas de descanso do trabalhador, j) delimitação da faixa de valores para indenização por danos morais proporcional à remuneração do trabalhador, k) medidas de restrição ao acesso à Justiça do Trabalho, l) um rito específico para que a Justiça do Trabalho aprove decisões que criam jurisprudência e aceleram processos semelhantes em instâncias inferiores.

Questiona-se, todavia, qual deve ser o papel do Direito nesse processo. Recorre-se para responder aos ensinamentos de Marcus Orione, ao explicar que:

Não se está aqui a vindicar para o direito o papel de único e mais relevante desarticulador da consciência da classe que hoje detém o poder. Isso seria ridículo, na medida em que dois dos maiores mitos da classe dominante (a liberdade e a igualdade) constituem a base da construção do pensamento jurídico hodierno. Tudo isso é obra que vai além do direito, sendo este apenas um dos espaços em que seria possível a desarticulação do mesmo sistema que o gerou.[25]

Renova-se aqui a necessidade, assim, de uma “luta” política no “jogo” que vai além da “força” do direito. Não se pode, todavia, deixar de consignar a possibilidade das instâncias jurídicas realizarem um enfrentamento possível de equilibrar esse “jogo”. A resistência que se salientou reiteradamente nesse escrito.

O sistema jurídico constitucional pátrio admite o controle incidental ou difuso de constitucionalidade diante de casos concretos, admitindo, assim, que a Justiça do Trabalho em todas as suas instâncias realizem a requerida resistência. Consoante se defendeu e demonstrou aqui, todos os dispositivos da reforma que representem retrocesso, pela imposição de supressão, restrição e/ou flexibilização de direitos do trabalhador poderão ser declarados inconstitucionais pela Justiça do Trabalho.

O “jogo” está posto, os “jogadores” posicionados, as regras determinadas, agora é esperar que a resistência seja realizada, sob pena de mais um triste momento histórico de retrocesso em nosso país. A “luta” política do trabalhador não pode, porém, parar, deve se fortalecer nesse momento. No mais, que Oxalá nos proteja!

Notas e Referências 

ALVES, Silvia Neli de Lima Guedes. Responsabilidade social: um pacto entre estado e sociedade civil no enfretamento do caráter destrutivo o capitalismo. 2009. Dissertação (Mestrado em Serviço Social). Maceió: UFAL, 2009.

ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do Trabalho: Ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. 2ª ed. São Paulo: Boitempo, 2009.

BRAGA, Ruy. A Rebeldia do Precariado: Trabalho e neoliberalismo no sul global. São Paulo: Boitempo, 2017.

CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang e STRECK, Lenio Luiz. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2014.

CORREIA, Marcus Orione Gonçalves. Interpretação dos Direitos Fundamentais Sociais, Solidariedade e Consciência de Classe. In CANOTILHO, J. J. Gomes; CORREIA, Marcus Orione Gonçalves e CORREIA, Érica Paula Barcha. Direitos Fundamentais Sociais. São Paulo: Saraiva, 2010.

IOTTI, Paulo. Precarização Trabalhista de Temer Viola nosso Constitucionalismo Social. Disponível em: http://justificando.cartacapital.com.br/2017/07/13/precarizacao-trabalhista-de-temer-viola-nosso-constitucionalismo-social/.  Acesso em 06/02/2018.

ROSSO, Sadi Dal. O Ardil da Flexibilidade: Os trabalhadores e a teoria do valor. São Paulo: Boitempo, 2017.

SARLET, Ingo Wolgang. Segurança Social, Dignidade da Pessoa Humana e Proibição de Retrocesso: Revisitando o problema da proteção dos direitos fundamentais sociais. In CANOTILHO, J. J. Gomes; CORREIA, Marcus Orione Gonçalves e CORREIA, Érica Paula Barcha. Direitos Fundamentais Sociais. São Paulo: Saraiva, 2010.

SOUTO, Valdete Severo. Elementos para o uso transgressor do Direito do Trabalho: Compreendendo as relações sociais do trabalho no brasil e a função do Direito diante das possibilidades de superação da forma capital. São Paulo: LTr, 2016.

ZIZEK, Slavoj. Primeiro como Tragédia, Depois como Farsa. São Paulo: Boitempo, 2011.

[1] Doutor em Direito (UFBA). Professor da UFBA, UNIFACS e Faculdade Baiana de Direito.

[2] Como sustentava Lassalle, não é possível compreender um fenômeno constitucional sem entender os fatores reais de poder (vide LASSALLE, Ferdinand. A Essência da Constituição. 6ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001), que por sua vez requer a análise sócio, política e econômica do problema.

[3] ZIZEK, Slavoj. Primeiro como Tragédia, Depois como Farsa. São Paulo: Boitempo, 2011, p.7.

[4] BRAGA, Ruy, A Rebeldia do Precariado: Trabalho e neoliberalismo no sul global. São Paulo: Boitempo, 2017, p.37/38.

[5] ROSSO, Sadi Dal. O Ardil da Flexibilidade: Os trabalhadores e a teoria do valor. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 265.

[6] Idem, ibidem, loc. cit.

[7] ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do Trabalho: Ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. 2ª ed. São Paulo: Boitempo, 2009, p.49.

[8] Idem, ibidem, p. 205.

[9] ALVES, Silvia Neli de Lima Guedes. Responsabilidade social: um pacto entre estado e sociedade civil no enfretamento do caráter destrutivo o capitalismo. 2009. Dissertação (Mestrado em Serviço Social). Maceió: UFAL, 2009, p.34.

[10] ANTUNES, op. cit., p. 236.

[11] IOTTI, Paulo. Precarização Trabalhista de Temer Viola nosso Constitucionalismo Social. Disponível em: http://justificando.cartacapital.com.br/2017/07/13/precarizacao-trabalhista-de-temer-viola-nosso-constitucionalismo-social/.  Acesso em 06/02/2018.

[12] Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

    (...)

    IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

[13] Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

[14] Art. 193. A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais.

[15] Comentários de Eros Roberto Grau ao art. 170, da Constituição Federal de 1988 in CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang e STRECK, Lenio Luiz. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2014, p. 1.791.

[16] Comentários de Marcus Orione Gonçalves Correia ao art. 193, da Constituição Federal de 1988 in CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang e STRECK, Lenio Luiz. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2014, p. 1.899.

[17] Idem, ibidem, p. 1.902.

[18] SOUTO, Valdete Severo. Elementos para o uso transgressor do Direito do Trabalho: Compreendendo as relações sociais do trabalho no brasil e a função do Direito diante das possibilidades de superação da forma capital. São Paulo: LTr, 2016, p. 102.

[19] Idem, ibidem, loc. Cit.

[20] Embora haja quem conteste, como Valdete Severo Souto, quando sustenta que: “A adoção de regras que tenham como pano de fundo a preservação de quem trabalha está inscrita na lógica do capital. Disso se conclui que efetivamente não há pretensão emancipadora no fundamento do Direito do Trabalho. Mesmo assim, a submissão dessas normas de proteção a um fundamento racional diverso daquele tipicamente moderno, pode conferir potencialidade transformadora às normas trabalhistas.” (Idem, ibidem, p. 103)

[21] SARLET, Ingo Wolgang. Segurança Social, Dignidade da Pessoa Humana e Proibição de Retrocesso: Revisitando o problema da proteção dos direitos fundamentais sociais. In CANOTILHO, J. J. Gomes; CORREIA, Marcus Orione Gonçalves e CORREIA, Érica Paula Barcha. Direitos Fundamentais Sociais. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 74.

[22] Na lógica neoliberal capitalista os valores perdem o seu sentido e significado para serem precificados, de sorte que tudo passa a ser avaliado por um preço monetário, como, por exemplo, a patrimonialização da moral para fins indenizatórios.

[23] SOUTO, op. cit., p. 104.

[24] Disponível em http://portal.mpt.mp.br/wps/wcm/connect/portal_mpt/c6d5ffb6-5285-4f96-87f3-6a02340ded33/notatecnica_76-2017.pdf?MOD=AJPERES&CVID=lK1fF.1. Acesso em 06/02/2018.

[25]CORREIA, Marcus Orione Gonçalves. Interpretação dos Direitos Fundamentais Sociais, Solidariedade e Consciência de Classe. In CANOTILHO, J. J. Gomes; CORREIA, Marcus Orione Gonçalves e CORREIA, Érica Paula Barcha. Direitos Fundamentais Sociais. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 141.

Geovane De Mori Peixoto é Doutor e Mestre em Direito Público (UFBA), Mestre em Política e Cidadania (UCSAL), Professor Adjunto da UFBA, UNIFACS e Faculdade Baiana de Direito.
Fonte: emporiododireito.com.br
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