A absolvição por clemência no Tribunal do Júri - Artigo de Daniel Zalewski

goo.gl/pvXqs6 | O cenário é o seguinte: uma cidade do interior gaúcho parou para assistir a um plenário do júri. O promotor de justiça e o advogado sempre foram conhecidos por apresentarem um excelente debate sobre as provas, sendo daqueles que, nos mínimos detalhes, ganham os mais duros e difíceis casos.

Entretanto, esse júri era diferente.

Não havia uma incongruência sequer em todo o processo. A investigação preliminar fora impecável. Todas as testemunhas foram verdadeiras ao alegar categoricamente que o réu era o autor do fato imputado, corroborando com a tese da promotoria.

Nesta senda, o Promotor de Justiça fez a sua sustentação oral, gabando-se de todas as provas que existiam nos autos, e inclusive, de forma debochada, brincava que o advogado teria de provar o improvável.

Porém, quando o presidente que presidia aquela sessão disse: “a defesa tem a palavra”, o advogado concordou com discurso do promotor de justiça, mostrando aos jurados que realmente os pilares para a condenação estavam presentes (a materialidade e autoria).

Entretanto, pediu a absolvição, baseado na tese da clemência.

No Tribunal do Júri, no momento em que o promotor de justiça nada mais fala e a voz da defesa se cala, passa a figurar como protagonista a consciência e a livre convicção dos jurados. Esse sagrado momento ocorre na sala secreta, e é ali que os próximos anos (ou até mesmo décadas) da vida de um ser humano serão decididos.

No caso narrado, as provas dos autos não deixavam dúvidas sobre a autoria e a materialidade do delito. Sabendo disso, o advogado de defesa sequer tentou contestar esse fato. Entretanto, pediu aos senhores jurados que fosse concedida a absolvição por clemência, e esses, no momento do voto genérico, assim o fizeram.

O Ministério Publico, então, recorreu com o argumento de decisão manifestamente contrária às provas dos autos, com base no  593, inciso III, alínea d, do Código de Processo Penal.

Art. 593. Caberá apelação no prazo de 5 (cinco) dias:
III – das decisões do Tribunal do Júri, quando:
d) for a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos. 

Como ministra Lenio Streck:

Com a promulgação da Constituição de 1988, o tribunal do júri consolida seu status de direito fundamental, na medida em que passa a ser considerada uma garantia dos direitos individuais e coletivos, regida por quatro disposições básicas: (1) plenitude de defesa; (2) sigilo das votações; (3) soberania dos veredictos; (4) competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

Em uma análise superficial, pode parecer-nos que o princípio da soberania dos veredictos estaria hierarquicamente acima das regras processuais penais sobre o recurso de apelação, pois se trata da colisão de um princípio previsto na Magna Carta, e uma norma processual penal advinda de um Decreto Lei.

Entretanto, diversas convenções e tratados os quais o Brasil é signatário,  garantem o duplo grau de jurisdição, e, nesse sentido, tem sido o correto entendimento do STF:

[…] III – A garantia do devido processo legal engloba o direito ao duplo grau de jurisdição, sobrepondo-se à exigência prevista no art. 594 do CPP. IV – O acesso à instância recursal superior consubstancia direito que se encontra incorporado ao sistema pátrio de direitos e garantias fundamentais. V – Ainda que não se empreste dignidade constitucional ao duplo grau de jurisdição, trata-se de garantia prevista na Convenção Interamericana de Direitos Humanos, cuja ratificação pelo Brasil deu-se em 1992, data posterior à promulgação Código de Processo Penal. VI – A incorporação posterior ao ordenamento brasileiro de regra prevista em tratado internacional tem o condão de modificar a legislação ordinária que lhe é anterior. VII – Ordem concedida. (HC n. 88420, Rel. Ministro Ricardo Lewandowski, 1ª T., DJe 6/6/2007)

Todavia, já é pacificada a questão de que o juiz togado jamais poderá modificar o entendimento do jurado sobre o mérito da decisão exarada em plenário, assim como ensina o NUCCI:

Não é possível que, sob qualquer pretexto, cortes togadas invadam o mérito do veredito, substituindo-o. Quando – e se – houver erro judiciário, basta remeter o caso a novo julgamento pelo Tribunal Popular. Porém, em hipótese alguma, pode-se invalidar o veredicto, proferindo outro, quanto ao mérito.

Entretanto, não se mostra razoável remeter-se o caso a novo júri, tendo em vista  que o legislador, ao fazer a mudança dos quesitos prevista na Lei nº 11.689 de 2008, introduziu o quesito genérico, no qual o jurado pode absolver o réu, mesmo essa decisão sendo contrária a prova dos autos, permitindo assim a absolvição genérica, que poderá ocorrer inclusive por clemência. Como o saudoso jurista Roberto Lyra nos ensinava:

o Júri decide por sua livre e natural convicção. Não é o jurado obrigado, como o juiz, a decidir pelas provas do processo, contra os impulsos da consciência. [“…] O Júri não está adstrito ao alegado e provado nos autos, nem à estreiteza dos textos, e não seria Júri se deixasse de sentir o conjunto das realidades individuais e sociais.

Todavia, em caso de absolvição genérica, nunca saberemos o que verdadeiramente levou o jurado a absolver, tendo em vista que o quesito não está vinculado necessariamente com a tese defensiva, e, pelo sigilo das votações, que é um direito fundamental juntamente com a soberania dos veredictos e a ampla defesa, o Ministério Público não poderá recorrer de uma decisão na qual não sabe os motivos da absolvição.

Da mesma forma, os jurados não são obrigados a condenar o réu porque simplesmente este confessou o crime, tendo em vista que o jurado poderá, mesmo ante a confissão do crime, ficar com dúvidas, e, em respeito ao princípio do indubio pro reo, deverá absolver o acusado.

Desta forma, o Parquet só poderá recorrer no caso de restar demonstrada alguma nulidade processual, após a pronúncia, ou até mesmo restando comprovado que a sentença do juiz-presidente é manifestamente contrária a lei expressa.

O Tribunal do Júri constitui, em essência, um tribunal popular, no qual a consciência humana deve estar acima da dogmática do direito, tento em vista que esta, não raras às vezes, não permite compreender o ser humano em todas as suas nuances.

Essa é a própria natureza da função de jurado, qual seja, analisar a conduta humana e decidir segundo a sua livre convicção, a qual deve prevalecer no caso de clemência, sendo que, neste particular, destaca-se o senso de humanismo do corpo de jurados, pois essa é a fundamental razão para a existência do júri.

Como nos ensina Bluntschli:

Esta instituição não repousa sobre a ideia de que os leigos em direito julgam melhor do que os conhecedores da técnica jurídica, e sim sobre aquela de que uma pena quase não deve ser aplicada enquanto a culpa não for manifestamente aos olhos do senso comum.

Sendo assim, referida legislação concedeu aos jurados a prerrogativa de absolvição, mesmo em sendo essa decisão absolutória manifestamente contrária à prova dos autos.

Nesse sentido, os jurados possuem como parâmetro não apenas as provas constantes nos autos, mas também as suas convicções pessoais e senso de justiça. A absolvição por clemência não configura tão somente uma questão de direito, mas também pode constituir um resultado de justiça no caso em concreto.

É sabido que nem sempre a justiça é encontrada imersa em nosso sistema judicial, porém, inexoravelmente, a ética da conduta humana e da tomada de decisão advém da ânsia de justiça intrínseca ao ser humano.

Nos dizeres de Eduardo Juan Couture:

nosso dever é lutar pelo Direito, mas se um dia encontrares o Direito em conflito com a Justiça, luta pela Justiça.

Daniel Zalewski - Acadêmico de Direito (IPA).
Fonte: Canal Ciências Criminais
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