goo.gl/VnTecV | Autorizar a prisão por alimentos indenizatórios é um retrocesso violador dos direitos humanos. Por isso, com todo o respeito ao julgamento da 11ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no Agravo de Instrumento 70071134027, de 2016, julgado recentemente, não se pode concordar com a decisão.
Não é de hoje a controvérsia que paira em torno da possibilidade ou não de a prisão civil ser aplicada aos alimentos indenizatórios. Durante a vigência do CPC de 1973, civilistas e processualistas já debatiam a questão, firmando-se a jurisprudência majoritária do STJ pela não viabilidade de sua decretação.
O CPC de 2015 abriu nova discussão sobre o tema, ao contemplar a sistemática executiva dos alimentos (legítimos e indenizatórios) em um único lugar (Capítulo IV, Título II, Livro I, Parte Especial, artigos 528 a 533).
Enquanto, em tese, os artigos 528 a 532 do CPC tratam dos alimentos legítimos, o último deles, o artigo 533 do CPC, trata especificamente da execução de alimentos indenizatórios. O fato de ter sido tratado conjuntamente num só capítulo, sem que o legislador tenha se preocupado em delimitar seu âmbito de aplicação, rende ensejo a uma série de questionamentos.
Pois bem. Por mais que o ordenamento jurídico busque alternativas para assegurar o cumprimento das decisões judiciais e garantir o crédito, não se pode olvidar que todas as legislações mais avançadas em matéria de direitos humanos vedam qualquer tipo de prisão decorrente de descumprimento de obrigação negocial.
Tanto que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos “Pacto de San José da Costa Rica”, que o Brasil aderiu em 1992, não autoriza nenhuma prisão por dívidas, a não ser a decorrente do inadimplemento do dever alimentar (artigo 7, n. 7), assim como o artigo 5, inciso LXVII, da Constituição Federal.
Muitos ordenamentos jurídicos, apesar de signatários do Pacto de San José, nem sequer permitem a prisão civil do devedor alimentar, dada a gravidade da medida, ou a aplicam de forma bastante criteriosa.
E ao que tudo indica, apesar de a Convenção Americana de Direitos Humanos e o texto constitucional não se referirem especificamente ao tipo de verba alimentar autorizativa de prisão, tudo leva a crer que a interpretação é restritiva, e não ampliativa. Ampliar por equiparação as modalidades de prisão é violar a tradição democrática.
É certo que, independentemente da causa jurídica, os alimentos têm como objetivo principal o atendimento das necessidades daqueles que não podem provê-la por si só, contudo, os alimentos legítimos, oriundos das relações de parentesco ou conjugalidade, são embasados no dever legal de sustento e no princípio da solidariedade familiar (artigo 1.694 do CC); enquanto os alimentos decorrentes de ato ilícito são devidos como indenização, em razão de morte ou incapacidade (artigo 1.948, II, 1.950 do CC).
Ora, por mais que ambas as verbas sejam alimentares (alimentos legítimos e indenizatórios), a natureza da obrigação é distinta, já que a tutela dos alimentos legítimos é protegida pelo Estado, enquanto que os alimentos indenizatórios pertencem ao Direito Privado, especificamente ao âmbito do Direito Negocial.
E é exatamente em razão dessa natureza de ordem pública, da relevância social do crédito alimentar decorrente do Direito de Família, que a medida da prisão se justifica.
Nesse contexto, assim como no passado, parece que nada mudou. O simples fato de a previsão legal dos alimentos indenizatórios estar tratada no mesmo capítulo dos alimentos legítimos, por si só, não autoriza a ampliação interpretativa, podendo ser apontados vários argumentos.
O primeiro deles diz respeito ao trâmite dos projetos do novo CPC no Congresso Nacional. Em meio a divergências entre a Câmara dos Deputados e o Senado, parece ter preponderado a não aplicação dos diversos mecanismos executivos mais drásticos aos alimentos indenizatórios.
É que na redação do artigo 531 do CPC que esclareceria a delimitação do capítulo de execução de alimentos, no projeto da Câmara constava o adjetivo “legítimos” aos alimentos, expressão que foi abandonada e substituída no projeto do Senado pela expressão “independente de sua origem”.
Ou seja, a Câmara optou em restringir os mecanismos executivos dos artigos 528 a 532 aos alimentos legítimos; já o Senado pretendia ampliar a aplicação para qualquer tipo de alimentos. Contudo, na redação final, não há qualquer menção de aplicação restritiva ou ampliativa.
Contudo, tendo ciência do entendimento majoritário no sentido de interpretação restritiva da prisão aos alimentos legítimos, a supressão final da expressão, independentemente de qualquer origem, parece deixar clara a opção final do legislador. Caso contrário, teria deixado expresso.
Por sua vez, a redação do artigo 1.533 do CPC/2015 é praticamente reprodução do artigo 475-Q do CPC/1973, portanto, a execução dos alimentos indenizatórios continuou sendo tratada basicamente da mesma forma.
Assim como antes, prevê o CPC a possibilidade de constituição de capital para assegurar o pagamento da pensão. Como novidade, traz a questão do patrimônio de afetação, que é a previsão de impenhorabilidade e inalienabilidade dos bens ou direitos que constituírem esse capital, enquanto durar a obrigação do executado.
Outro ponto que merece ser observado é que, se o entendimento for no sentido de ampliação interpretativa, todos os demais artigos que antecedem o artigo 533 do CPC, ou seja, do artigo 528 a 532 do CPC, também seriam aplicáveis. Contudo, o artigo 532 do CPC, por exemplo, que prevê o crime por abandono material, não faz nenhum sentido aos alimentos indenizatórios.
Outro indício de que o legislador não optou (nem poderia) pelo tratamento igualitário é que, além da previsão do artigo 533, na parte que trata sobre a possibilidade de expropriação de dívida alimentar, fez menção expressa no artigo 833, parágrafo 2, sobre o cabimento de penhora sobre rendimentos e valores, “independentemente da origem da verba alimentar”.
Com efeito, em observância a todas essas ponderações, interpretações extensivas parecem não autorizadas nesse caso. A prisão é medida grave e excepcional, não encontrando guarida nos casos em que não tiver previsão expressa, sob pena de ferimento de direitos fundamentais.
Nesse ínterim, falar que as medidas atípicas (artigo 139, IV do CPC) autorizariam a prisão civil no caso dos alimentos indenizatórios, como mencionado no julgado, também não merece respaldo. É certo que o juiz pode se utilizar de medidas coercitivas, mas nem todas estão autorizadas. O decreto de prisão civil, fora das hipóteses contempladas expressamente no ordenamento jurídico, devem ser consideradas ilegais e abusivas.
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Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e professor de Processo Penal na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e na Universidade do Vale do Itajaí (Univali).
Dóris Ghilardi é professora de Direito Civil na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e doutora em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (Univali).
Fonte: Conjur
Não é de hoje a controvérsia que paira em torno da possibilidade ou não de a prisão civil ser aplicada aos alimentos indenizatórios. Durante a vigência do CPC de 1973, civilistas e processualistas já debatiam a questão, firmando-se a jurisprudência majoritária do STJ pela não viabilidade de sua decretação.
O CPC de 2015 abriu nova discussão sobre o tema, ao contemplar a sistemática executiva dos alimentos (legítimos e indenizatórios) em um único lugar (Capítulo IV, Título II, Livro I, Parte Especial, artigos 528 a 533).
Enquanto, em tese, os artigos 528 a 532 do CPC tratam dos alimentos legítimos, o último deles, o artigo 533 do CPC, trata especificamente da execução de alimentos indenizatórios. O fato de ter sido tratado conjuntamente num só capítulo, sem que o legislador tenha se preocupado em delimitar seu âmbito de aplicação, rende ensejo a uma série de questionamentos.
Pois bem. Por mais que o ordenamento jurídico busque alternativas para assegurar o cumprimento das decisões judiciais e garantir o crédito, não se pode olvidar que todas as legislações mais avançadas em matéria de direitos humanos vedam qualquer tipo de prisão decorrente de descumprimento de obrigação negocial.
Tanto que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos “Pacto de San José da Costa Rica”, que o Brasil aderiu em 1992, não autoriza nenhuma prisão por dívidas, a não ser a decorrente do inadimplemento do dever alimentar (artigo 7, n. 7), assim como o artigo 5, inciso LXVII, da Constituição Federal.
Muitos ordenamentos jurídicos, apesar de signatários do Pacto de San José, nem sequer permitem a prisão civil do devedor alimentar, dada a gravidade da medida, ou a aplicam de forma bastante criteriosa.
E ao que tudo indica, apesar de a Convenção Americana de Direitos Humanos e o texto constitucional não se referirem especificamente ao tipo de verba alimentar autorizativa de prisão, tudo leva a crer que a interpretação é restritiva, e não ampliativa. Ampliar por equiparação as modalidades de prisão é violar a tradição democrática.
É certo que, independentemente da causa jurídica, os alimentos têm como objetivo principal o atendimento das necessidades daqueles que não podem provê-la por si só, contudo, os alimentos legítimos, oriundos das relações de parentesco ou conjugalidade, são embasados no dever legal de sustento e no princípio da solidariedade familiar (artigo 1.694 do CC); enquanto os alimentos decorrentes de ato ilícito são devidos como indenização, em razão de morte ou incapacidade (artigo 1.948, II, 1.950 do CC).
Ora, por mais que ambas as verbas sejam alimentares (alimentos legítimos e indenizatórios), a natureza da obrigação é distinta, já que a tutela dos alimentos legítimos é protegida pelo Estado, enquanto que os alimentos indenizatórios pertencem ao Direito Privado, especificamente ao âmbito do Direito Negocial.
E é exatamente em razão dessa natureza de ordem pública, da relevância social do crédito alimentar decorrente do Direito de Família, que a medida da prisão se justifica.
Nesse contexto, assim como no passado, parece que nada mudou. O simples fato de a previsão legal dos alimentos indenizatórios estar tratada no mesmo capítulo dos alimentos legítimos, por si só, não autoriza a ampliação interpretativa, podendo ser apontados vários argumentos.
O primeiro deles diz respeito ao trâmite dos projetos do novo CPC no Congresso Nacional. Em meio a divergências entre a Câmara dos Deputados e o Senado, parece ter preponderado a não aplicação dos diversos mecanismos executivos mais drásticos aos alimentos indenizatórios.
É que na redação do artigo 531 do CPC que esclareceria a delimitação do capítulo de execução de alimentos, no projeto da Câmara constava o adjetivo “legítimos” aos alimentos, expressão que foi abandonada e substituída no projeto do Senado pela expressão “independente de sua origem”.
Ou seja, a Câmara optou em restringir os mecanismos executivos dos artigos 528 a 532 aos alimentos legítimos; já o Senado pretendia ampliar a aplicação para qualquer tipo de alimentos. Contudo, na redação final, não há qualquer menção de aplicação restritiva ou ampliativa.
Contudo, tendo ciência do entendimento majoritário no sentido de interpretação restritiva da prisão aos alimentos legítimos, a supressão final da expressão, independentemente de qualquer origem, parece deixar clara a opção final do legislador. Caso contrário, teria deixado expresso.
Por sua vez, a redação do artigo 1.533 do CPC/2015 é praticamente reprodução do artigo 475-Q do CPC/1973, portanto, a execução dos alimentos indenizatórios continuou sendo tratada basicamente da mesma forma.
Assim como antes, prevê o CPC a possibilidade de constituição de capital para assegurar o pagamento da pensão. Como novidade, traz a questão do patrimônio de afetação, que é a previsão de impenhorabilidade e inalienabilidade dos bens ou direitos que constituírem esse capital, enquanto durar a obrigação do executado.
Outro ponto que merece ser observado é que, se o entendimento for no sentido de ampliação interpretativa, todos os demais artigos que antecedem o artigo 533 do CPC, ou seja, do artigo 528 a 532 do CPC, também seriam aplicáveis. Contudo, o artigo 532 do CPC, por exemplo, que prevê o crime por abandono material, não faz nenhum sentido aos alimentos indenizatórios.
Outro indício de que o legislador não optou (nem poderia) pelo tratamento igualitário é que, além da previsão do artigo 533, na parte que trata sobre a possibilidade de expropriação de dívida alimentar, fez menção expressa no artigo 833, parágrafo 2, sobre o cabimento de penhora sobre rendimentos e valores, “independentemente da origem da verba alimentar”.
Com efeito, em observância a todas essas ponderações, interpretações extensivas parecem não autorizadas nesse caso. A prisão é medida grave e excepcional, não encontrando guarida nos casos em que não tiver previsão expressa, sob pena de ferimento de direitos fundamentais.
Nesse ínterim, falar que as medidas atípicas (artigo 139, IV do CPC) autorizariam a prisão civil no caso dos alimentos indenizatórios, como mencionado no julgado, também não merece respaldo. É certo que o juiz pode se utilizar de medidas coercitivas, mas nem todas estão autorizadas. O decreto de prisão civil, fora das hipóteses contempladas expressamente no ordenamento jurídico, devem ser consideradas ilegais e abusivas.
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Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e professor de Processo Penal na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e na Universidade do Vale do Itajaí (Univali).
Dóris Ghilardi é professora de Direito Civil na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e doutora em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (Univali).
Fonte: Conjur