Responsabilizar administrador de grupo de WhatsApp é um precedente perigoso

goo.gl/DeLN1D | Quando nos lançamos a analisar os efeitos jurídicos das condutas que têm como cenário o uso de novas tecnologias, o resultado, não raras vezes, implica em interpretações inovadoras de institutos jurídicos que há tempos existem no ordenamento.

Eis aí um grande cuidado que o intérprete da lei deve ter para não se chegar à nada razoável exegese da norma legal a ponto de encontrar meios para justificar os fins.

Exemplo disso foi o recente julgamento da 34ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, na Apelação 1004604-31.2016.8.26.0291, em que uma menor de idade foi condenada a pagar indenização por danos morais a outro menor de idade ofendido em um grupo do aplicativo WhatsApp.

Resumidamente, o caso tinha os seguintes substratos fáticos: uma adolescente criou um grupo de WhatsApp com pessoas da sua rede de relacionamento com o intuito de organizar um encontro para assistir aos jogos da Copa do Mundo de 2014. No grupo formado, ocorreram ofensas injuriosas entre alguns participantes, o que deu ensejo ao ajuizamento de ação indenizatória por parte das pessoas ofendidas.

Apesar de a administradora do grupo não ter proferido comentário ofensivo contra os autores da ação, ela surpreendentemente foi colocada como ré no processo e condenada a pagar indenização no valor de R$ 3 mil. Segundo o desembargador relator do caso, teria configurado um ato ilícito na forma prevista no artigo 186 do Código Civil, pautado em uma ação e uma omissão da parte da ré.

A omissão teria se caracterizado pelo fato de a adolescente não ter excluído do grupo os autores das ofensas e, com isso, talvez, interrompido as ofensas. Já a ação restou configurada no fato de ela ter postado emojis com careta de sorriso quando um dos membros lançou ameaça de ajuizamento de processo judicial na troca de mensagem entre os participantes.

Nesse particular, consta na fundamentação do acórdão que:
E também não procede dizer que a ré procurou minimizar as coisas. Não só não o fez como, quando postaram 'Vai processar o que vava' (sic; fl. 242, que obviamente quis dizer 'vaca', no sentido também evidente de 'puta'), a ré sorriu por meio de emojis (quatro), mostrando que se divertiu bem com a história. Assim, é corresponsável pelo acontecido, com ou sem lei de bullying, pois são injúrias às quais anuiu e colaborou, na pior das hipóteses por omissão, ao criar o grupo e deixar que as ofensas se desenvolvessem livremente. Ao caso concreto basta o artigo 186 do Código Civil”.
Dada a importância que esse julgamento possa vir a ter, caso se torne precedente de outras tantas demanda jurídicas idênticas futuras, o caso merece uma análise das premissas que levaram aquele órgão do Tribunal de Justiça paulista a condenar, a meu sentir equivocadamente, a adolescente administradora do grupo de WhatsApp.

Primeira observação a ser feita é que, mesmo no ambiente virtual (sites, redes sociais e aplicativos de troca de mensagens, entre outros), a conduta das pessoas e a proteção dos seus bens jurídicos, tais como imagem, nome, honra etc., estão tutelados pelo ordenamento jurídico, seja na esfera cível ou mesmo criminal. A circunstância de uma manifestação de vontade de uma pessoa ocorrer num ambiente virtual não a isenta dos efeitos legais determinados em lei, seja para fazer valer uma proposta ou aceite de negócio, seja para responder civil e criminalmente por atentado a bem jurídico de outra pessoa.

Segundo, quanto ao dever de indenizar, é sabido que tanto uma ação quanto uma omissão pode representar a conduta dolosa ou culposa necessária para configurar o ato ilícito descrito nos artigos 186 e 927 do Código Civil1, que, no caso acima referido, não me parece estarem plenamente configurados. Explico.

No julgamento, foi dito que a administradora do grupo teria sido omissa nos acontecimentos que culminaram com os danos morais dos ofendidos porque, ao serem iniciadas as ofensas, ela não teria excluído os autores das mensagens injuriosas. Ocorre que para tal conduta configurar uma omissão juridicamente relevante para caracterizar um ato ilícito seria necessário que sobre ela, a administradora do grupo, recaísse um dever jurídico preexistente que, uma vez não observado, implicaria em conduta culposa.

Como bem observa o doutrinador Sérgio Cavalieri Filho, referência em responsabilidade civil no Brasil, “só pode ser responsabilizado por omissão quem tiver o dever jurídico de agir, vale dizer, estiver em situação jurídica que o obrigue a impedir a ocorrência do resultado. Se assim não fosse, toda e qualquer omissão seria relevante e, consequentemente, todos teriam contas a prestar à Justiça”2. No mesmo sentido, o erudito professor Fernando Noronha3.

No caso analisado, partiu-se da premissa de que um administrador de grupo de WhatsApp tem o dever jurídico de excluir pessoas que venham a proferir ofensas passíveis de causar abalo moral em outros partícipes sob pena de atrair pra si uma corresponsabilidade de ato de terceiro. De forma errônea, está sendo levado um simples ato cotidiano (criar grupo entre amigos num ambiente virtual) a um patamar de “dever de fiscalização” e uma espécie de “poder de polícia” para coibir que os partícipes se ofendam.

Para melhor identificar a improcedência desse argumento, pense na situação em que, mutuamente, houver pessoas ofendidas e ofensoras. A responsabilidade ficará a cargo do administrador, tanto para um quanto para outro? E mais, se a ofensa for generalizada por todos os membros, o grupo deveria ser fechado para não sobrevir responsabilidade dos administradores? E se todos forem colocados como administradores, os partícipes do grupo serão solidários por eventual ato ilícito de um só? O membro excluído poderá alegar injustiça e também responsabilizar o administrador do grupo?

E se, em vez de grupo de WhatsApp, fosse uma reunião de condomínio em que houvesse troca de ofensas, o síndico que convocou a assembleia seria responsabilizado por não excluir alguns presentes ou encerrar a reunião?

Parece-me que aquele tribunal laborou em equívoco, nesse aspecto, pois, definitivamente, não há (regra geral4) dever jurídico preexistente ao administrador de grupo de WhatsApp que implique em corresponsabilidade pelas condutas dos seus membros.

Além da omissão, foi imputada à administradora do grupo uma ação no sentido de anuir e colaborar com as injúrias ao postar quatro emojis com caretas de sorriso. Aqui, a interpretação dos artigos 107 e 112 do Código Civil5 foi elevada à máxima potência, pois o desembargador relator entendeu que a postagem daqueles ideogramas implicou numa conduta (manifestação de vontade) antijurídica que, em última análise, significava que a sua autora estava aquiescendo com as ofensas proferidas, de modo que tal fato representou uma ação dotada de dolo ou culpa no seu sentido técnico. Ousamos discordar.

Segundo Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona, “a culpa (em sentido amplo) deriva da inobservância de um dever de conduta, previamente imposto pela ordem jurídica, em atenção à paz social. Se esta violação é proposital, atuou o agente com dolo; se decorreu de negligência, imprudência ou imperícia, a sua atuação é apenas culposa, em sentido estrito”6.

E numa conduta dotada do elemento “culpa” há de se identificar os elementos que compõem esse conceito, tais como a (i) voluntariedade da conduta, a (ii) previsibilidade e a (iii) violação de dever de cuidado. A previsibilidade versa sobre a razoável possibilidade de antever o resultado danoso. Já a violação de dever de cuidado diz respeito à inobservância (por imprudência ou negligência) da cautela necessária para que se evite a ocorrência de um dano, tal como deixar uma criança sozinha numa ambiente de grande aglomeração ou mesmo inobservar um sinal de trânsito, entre outros tantos exemplos.

No contexto relatado no acórdão, não é possível concluir que a postagem daqueles emojis com careta de sorriso num grupo fechado de WhatsApp seria uma conduta contrária ao direito que, voluntariamente, pretendeu causar ofensa a um membro do grupo, agindo assim com dolo. Ou então, que o emoji com careta de sorriso, naquele contexto, implicou em conduta contrária ao direito que, inobservando deveres básicos de cautela para não dar ensejo à ocorrência de um dano, violou um dever jurídico preexistente de não macular a ordem moral de qualquer pessoa.

Ainda que na sequência de envio de mensagens de terceiros, mesmo que ofensivas, a postagem daqueles ideogramas não tem como ser decifrada como um ato ilícito na forma do artigo 186 do Código Civil. Pode-se fazer o julgamento moral que for (grosseiro, insensível, mal-educado etc.), mas é irrazoável se chegar à conclusão de que subsistiu uma conduta antijurídica dolosa ou culposa que possui nexo causal com dano moral a um membro do grupo.

Poderia discutir ainda a existência (ou ausência) de nexo causal, mas, diante da impropriedade acima comentada, parece-me desnecessário.

Em desfecho, há muito tempo que a responsabilidade civil vem suportando interpretações dissociadas do melhor cotejo dos seus pressupostos (conduta, dolo/culpa, nexo de causalidade e dano). Muitas vezes, ações indenizatórias são julgadas procedentes com forte sentimento de censura a determinada conduta que pessoalmente o julgador entende não ser tolerável.

Isso, porém, gera insegurança jurídica e perigo à coletividade, que ficará à mercê de larga interpretação pessoal (e não de previsão legal) da ocorrência ou não de ato ilícito. E num mundo em que as relações pessoais, hábitos e relacionamentos estão se modificando diariamente diante de ferramentas tecnológicas, a boa compreensão e aplicação cuidadosa e restrita dos pressupostos da responsabilidade civil mostra-se mais que prudente, mostra-se necessária.

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1 Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
2 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. Ed. 7ª. E. São Paulo: Atlas. p. 25.
3 “A conduta culposa pode ser comissiva ou omissiva. Mesmo com relação às condutas omissivas, para que se possa falar em atuação culposa é necessário que o responsável tivesse o dever de praticar o fato omitido...”. NORONHA, Fernando. Direito da Obrigações. 2ª. edição. São Paulo: Saraiva. p. 472.
4 Refiro-me como regra geral pelo fato de poder ser, por exemplo, o patrão administrando grupo de funcionários, e clientes, em que poderia sobrevir a responsabilidade solidária em razão da sua condição de empregador.
5 Art. 107. A validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir.
Art. 112. Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem.
6 GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil, volume II: responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 123-124.

Por João Paulo de Mello Filippin
Fonte: Conjur
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