goo.gl/7K7S2h | Mãe de três filhos, Marixa Fabiane Lopes Rodrigues, 48, é juíza-presidente do 1º Tribunal do Júri de Belo Horizonte. Em Contagem, ao julgar o caso Bruno, Marixa enfrentou um dos principais desafios da carreira. Por sua atuação no julgamento, foi convidada pela ONU Mulheres para compor um documento com diretrizes voltadas aos trâmites judiciais envolvendo crimes de feminicídio. No mês passado, Marixa participou da 11ª edição da campanha Semana Justiça pela Paz em Casa, um esforço concentrado que acontece três vezes por ano em tribunais estaduais para agilizar os processos que envolvem casos de assassinato de mulheres viabilizados pela condição e desvantagens de gênero.
O caso do goleiro Bruno é emblemático em vários sentidos, já que ele foi julgado antes de o termo “feminicídio” ser tipificado. Como foi julgá-lo e o que mudou nesses últimos anos?
Em relação a minha carreira, o caso me trouxe muita maturidade e muito crescimento pessoal e profissional, já que foi um grande desafio, permeado por vários conflitos entre a defesa do acusado, nas questões preliminares. Naquela época, falava-se muito pouco sobre o tema feminicídio. E, a partir do caso, fui convidada pela ONU Mulheres para participar de um grupo de trabalho para escrever um documento que já está sendo aplicado no Brasil, composto por diretrizes nacionais para investigar, processar e julga-se crimes de feminicídio.
O que é o feminicídio, na sua opinião?
É um crime de ódio. É o assassinato de mulheres justamente pela diferença de poder entre os gêneros, decorrente de décadas de uma cultura, na qual o macho dominante tem a mulher como um objeto. Disso decorre uma série de violências, que começa com a moral, que mata a mulher um pouco a cada dia; a psicológica, com controle e ciúme exacerbados, que têm como pano de fundo a certeza de que o homem se sente o proprietário da mulher. No dia em que ele não quer mais esse objeto, ele descarta. Mas é um descarte definitivo.
Como essa violência acontece no dia a dia?
A violência moral começa com críticas negativas ao serviço que a mulher presta dentro do ambiente doméstico, como a comida em que foi feita, a roupa passada, o cuidado com os filhos. Essa mulher, que depende economicamente desse homem, acredita – e, muitas vezes, até por vir de uma família em que a mãe sofreu esse tipo de violência – que isso é natural. Então, ela projeta para si mesma que isso é o correto e educa os filhos para serem assim: a menina para fazer as tarefas de casa bem-feitas e o menino para jogar bola, ver televisão, sem nenhuma obrigação doméstica.
Quais efeitos práticos a senhora destaca desde a tipificação do termo “feminicídio” em 2015?
(A tipificação do) feminicídio veio como uma forma de dar, também, uma proteção, por meio de uma sanção penal e para corrigir uma injustiça. Antes, o réu era denunciado por motivo fútil em decorrência, por exemplo, de uma discussão banal entre o casal, com pena de 12 a 30 anos. Mas, quando chegava ao plenário do júri, a defesa sustentava que o réu agiu sob domínio de emoção seguida de injusta provocação da vítima, e buscava que se reconhecesse uma causa de redução de pena, que é o privilégio. Quando se reconhecia essa redução, caía a qualificadora do motivo fútil, que é incompatível com o privilégio. Um crime não pode ser, ao mesmo tempo, privilegiado e fútil. O que acontecia? O réu era condenado por homicídio simples privilegiado, com pena de quatro anos, e saía do plenário dando tchau. O termo “feminicídio” corrigiu essa injustiça. Se isso acontece com a qualificadora do feminicídio, o motivo fútil cai, mas ela permanece, aumentando a pena.
E apenas o machismo que leva a isso?
Acho que a maioria delas não sabe o perigo que corre pelo fato de estarem dentro de uma relação doentia, mas permeada por amor, respeito e ódio do companheiro. Essa mistura acaba fragilizando a mulher. Ela sempre acredita que o parceiro, que bateu nela hoje, amanhã vai tratá-la bem, seja com flores ou com as compras da semana. Ou seja, ela acredita que o ciclo não vai se repetir. Mas ele se repete, e cada vez mais forte. Então, ela morre pelo ódio do companheiro e pelo amor que sente por ele. Além disso, há o silêncio da sociedade e da família, que desencorajam a separação, por causa, muitas vezes, das dependências econômica, afetiva e social.
Então existem falhas sociais que contribuem para isso.
Sem dúvida. Temos que fazer nosso mea- culpa enquanto integrantes do sistema Judiciário. A falha do sistema acontece porque, se ele não dá a proteção à mulher que buscou socorro, ela fica mais fragilizada ainda. Isso desde o momento da acolhida, na delegacia, até o depoimento, da proteção da vítima e do julgamento do agressor.
É possível delinear um perfil das vítimas no Brasil?
Não, porque qualquer mulher pode ser vítima, até eu. É mais fácil ver o perfil do agressor: possessividade, ciúme, controle, postura de superioridade em relação à mulher, independentemente de classe social ou de grau de instrução.
É comum que os agressores sejam reincidentes. Por quê?
Porque eles trocam de relacionamentos e não se tratam. O homem não se vê como agressor, então o erro, para ele, está na mulher com a qual ele se relaciona. Sistematicamente, um relacionamento termina, e ele começa outro.
Uma punição mais severa não poderia ajudar?
Não acho que a solução esteja na punição, mas na prevenção. Temos que educar as nossas crianças para o respeito. Os meninos, para que respeitem de forma diferenciada as meninas, enquanto seres humanos. As meninas, também. Como é cultural, a solução acontece na educação, com a mudança de comportamento. Uma pena alta não faz o homem mudar de postura, ele precisa aprender e ser reeducado para se compreender como agressor. Isso demanda um trabalho multidisciplinar de enfrentamento à violência doméstica na sua fase preventiva.
A Lei Maria da Penha completou 12 anos. Na sua opinião, quais foram os avanços e o que ainda precisa melhorar?
Ela foi um divisor de águas na forma de se encarar a violência doméstica, como ela era vista e observada e depois. Serviu como instrumento para expandir as políticas públicas de proteção às mulheres. E, nesse caminhar, todo o sistema de Justiça está buscando esse preparo. Nós ainda não chegamos a uma reta final, estamos num caminhar, e ele já é bastante perceptível porque temos juizados especializados em violência doméstica na capital, nas comarcas sem juizados, há o juiz que já é competente exclusivamente para crimes de violência doméstica e familiar.
O que mais tem sido feito?
Temos nos preocupado em proporcionar uma aproximação do Judiciário com a rede de enfrentamento (formada por Ministério Público, Defensoria Pública, Secretaria de Políticas Públicas para Mulheres, ONGs), num composto articulado de setores governamentais e não governamentais, com o objetivo focado na violência doméstica. Mas ainda há muito para ser feito e melhorado, principalmente, nas políticas públicas do Poder Executivo, a porta de entrada: a delegacia de polícia especializada. Ela precisa ser mais bem preparada, dar maior atenção aos recursos humanos, mais delegados, agentes, para receberem essa demanda.
E em Minas Gerais?
Em 2017, o Conselho Nacional de Justiça ditou a Portaria 15, que é um normativo voltado para instituir políticas públicas no âmbito do poder Judiciário no enfrentamento da violência contra as mulheres. Por meio dela, o CNJ define diretrizes na prevenção e no combate às violências e traça os objetivos que vêm sendo acolhidos e seguidos pelos tribunais de Justiça de todo o Estado. É o caso da criação da Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar (Comsiv), ligada à presidência de cada um dos 27 tribunais de Justiça do país, incluindo o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG).
*Leia essa matéria na íntegra através do link abaixo:
https://www.otempo.com.br/interessa/antes-o-agressor-sa%C3%ADa-do-tribunal-dando-um-tchau-diz-ju%C3%ADza-1.2031886
Thuany Motta
Fonte: www.otempo.com.br
O caso do goleiro Bruno é emblemático em vários sentidos, já que ele foi julgado antes de o termo “feminicídio” ser tipificado. Como foi julgá-lo e o que mudou nesses últimos anos?
Em relação a minha carreira, o caso me trouxe muita maturidade e muito crescimento pessoal e profissional, já que foi um grande desafio, permeado por vários conflitos entre a defesa do acusado, nas questões preliminares. Naquela época, falava-se muito pouco sobre o tema feminicídio. E, a partir do caso, fui convidada pela ONU Mulheres para participar de um grupo de trabalho para escrever um documento que já está sendo aplicado no Brasil, composto por diretrizes nacionais para investigar, processar e julga-se crimes de feminicídio.
O que é o feminicídio, na sua opinião?
É um crime de ódio. É o assassinato de mulheres justamente pela diferença de poder entre os gêneros, decorrente de décadas de uma cultura, na qual o macho dominante tem a mulher como um objeto. Disso decorre uma série de violências, que começa com a moral, que mata a mulher um pouco a cada dia; a psicológica, com controle e ciúme exacerbados, que têm como pano de fundo a certeza de que o homem se sente o proprietário da mulher. No dia em que ele não quer mais esse objeto, ele descarta. Mas é um descarte definitivo.
Como essa violência acontece no dia a dia?
A violência moral começa com críticas negativas ao serviço que a mulher presta dentro do ambiente doméstico, como a comida em que foi feita, a roupa passada, o cuidado com os filhos. Essa mulher, que depende economicamente desse homem, acredita – e, muitas vezes, até por vir de uma família em que a mãe sofreu esse tipo de violência – que isso é natural. Então, ela projeta para si mesma que isso é o correto e educa os filhos para serem assim: a menina para fazer as tarefas de casa bem-feitas e o menino para jogar bola, ver televisão, sem nenhuma obrigação doméstica.
Quais efeitos práticos a senhora destaca desde a tipificação do termo “feminicídio” em 2015?
(A tipificação do) feminicídio veio como uma forma de dar, também, uma proteção, por meio de uma sanção penal e para corrigir uma injustiça. Antes, o réu era denunciado por motivo fútil em decorrência, por exemplo, de uma discussão banal entre o casal, com pena de 12 a 30 anos. Mas, quando chegava ao plenário do júri, a defesa sustentava que o réu agiu sob domínio de emoção seguida de injusta provocação da vítima, e buscava que se reconhecesse uma causa de redução de pena, que é o privilégio. Quando se reconhecia essa redução, caía a qualificadora do motivo fútil, que é incompatível com o privilégio. Um crime não pode ser, ao mesmo tempo, privilegiado e fútil. O que acontecia? O réu era condenado por homicídio simples privilegiado, com pena de quatro anos, e saía do plenário dando tchau. O termo “feminicídio” corrigiu essa injustiça. Se isso acontece com a qualificadora do feminicídio, o motivo fútil cai, mas ela permanece, aumentando a pena.
E apenas o machismo que leva a isso?
Acho que a maioria delas não sabe o perigo que corre pelo fato de estarem dentro de uma relação doentia, mas permeada por amor, respeito e ódio do companheiro. Essa mistura acaba fragilizando a mulher. Ela sempre acredita que o parceiro, que bateu nela hoje, amanhã vai tratá-la bem, seja com flores ou com as compras da semana. Ou seja, ela acredita que o ciclo não vai se repetir. Mas ele se repete, e cada vez mais forte. Então, ela morre pelo ódio do companheiro e pelo amor que sente por ele. Além disso, há o silêncio da sociedade e da família, que desencorajam a separação, por causa, muitas vezes, das dependências econômica, afetiva e social.
Então existem falhas sociais que contribuem para isso.
Sem dúvida. Temos que fazer nosso mea- culpa enquanto integrantes do sistema Judiciário. A falha do sistema acontece porque, se ele não dá a proteção à mulher que buscou socorro, ela fica mais fragilizada ainda. Isso desde o momento da acolhida, na delegacia, até o depoimento, da proteção da vítima e do julgamento do agressor.
É possível delinear um perfil das vítimas no Brasil?
Não, porque qualquer mulher pode ser vítima, até eu. É mais fácil ver o perfil do agressor: possessividade, ciúme, controle, postura de superioridade em relação à mulher, independentemente de classe social ou de grau de instrução.
É comum que os agressores sejam reincidentes. Por quê?
Porque eles trocam de relacionamentos e não se tratam. O homem não se vê como agressor, então o erro, para ele, está na mulher com a qual ele se relaciona. Sistematicamente, um relacionamento termina, e ele começa outro.
Uma punição mais severa não poderia ajudar?
Não acho que a solução esteja na punição, mas na prevenção. Temos que educar as nossas crianças para o respeito. Os meninos, para que respeitem de forma diferenciada as meninas, enquanto seres humanos. As meninas, também. Como é cultural, a solução acontece na educação, com a mudança de comportamento. Uma pena alta não faz o homem mudar de postura, ele precisa aprender e ser reeducado para se compreender como agressor. Isso demanda um trabalho multidisciplinar de enfrentamento à violência doméstica na sua fase preventiva.
A Lei Maria da Penha completou 12 anos. Na sua opinião, quais foram os avanços e o que ainda precisa melhorar?
Ela foi um divisor de águas na forma de se encarar a violência doméstica, como ela era vista e observada e depois. Serviu como instrumento para expandir as políticas públicas de proteção às mulheres. E, nesse caminhar, todo o sistema de Justiça está buscando esse preparo. Nós ainda não chegamos a uma reta final, estamos num caminhar, e ele já é bastante perceptível porque temos juizados especializados em violência doméstica na capital, nas comarcas sem juizados, há o juiz que já é competente exclusivamente para crimes de violência doméstica e familiar.
O que mais tem sido feito?
Temos nos preocupado em proporcionar uma aproximação do Judiciário com a rede de enfrentamento (formada por Ministério Público, Defensoria Pública, Secretaria de Políticas Públicas para Mulheres, ONGs), num composto articulado de setores governamentais e não governamentais, com o objetivo focado na violência doméstica. Mas ainda há muito para ser feito e melhorado, principalmente, nas políticas públicas do Poder Executivo, a porta de entrada: a delegacia de polícia especializada. Ela precisa ser mais bem preparada, dar maior atenção aos recursos humanos, mais delegados, agentes, para receberem essa demanda.
E em Minas Gerais?
Em 2017, o Conselho Nacional de Justiça ditou a Portaria 15, que é um normativo voltado para instituir políticas públicas no âmbito do poder Judiciário no enfrentamento da violência contra as mulheres. Por meio dela, o CNJ define diretrizes na prevenção e no combate às violências e traça os objetivos que vêm sendo acolhidos e seguidos pelos tribunais de Justiça de todo o Estado. É o caso da criação da Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar (Comsiv), ligada à presidência de cada um dos 27 tribunais de Justiça do país, incluindo o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG).
*Leia essa matéria na íntegra através do link abaixo:
https://www.otempo.com.br/interessa/antes-o-agressor-sa%C3%ADa-do-tribunal-dando-um-tchau-diz-ju%C3%ADza-1.2031886
Thuany Motta
Fonte: www.otempo.com.br