O “abate” de criminosos armados por atiradores de elite (snipers) - Por Francisco S. Neto

goo.gl/w4yNdV | No pleito de 2018, a legítima defesa virou objeto de programas governamentais de candidatos diversos, muitos eleitos, outros não. Em linhas gerais, propuseram uma maior elasticidade ao conceito, seja em relação ao cidadão comum (ao qual, por exemplo, seria concedida autorização para matar em face de violações patrimoniais e domiciliares), seja em relação aos policiais (a quem o abate de criminosos armados seria autorizado em qualquer hipótese).

Finalizadas as eleições, o tema, uma vez mais, gerou enorme polêmica devido a fala do governador eleito do Rio de Janeiro, que, em linhas gerais, defendeu o “abate” por atiradores de elite das polícias (Snipers) de criminosos que ostentem fuzis pelas ruas cariocas.

De acordo com o novo governador, a ação seria justificada pelo instituto da “legítima defesa”. Assim, questionamos: Em tais casos, pode-se, de fato, se falar em legítima defesa?

Antes, porém, de nos debruçarmos nos aspectos jurídicos do caso, faz-se imprescindível um esclarecimento sobre a ação dos atiradores de elite. Os chamados snipers são policiais altamente treinados e capacitados para efetuar tiros de precisão, que podem ser escalonados da seguinte forma (LESSA, 2018):

  1. TIRO DE COMPROMETIMENTO, que se constitui em um único disparo com aptidão para neutralizar o alvo instantaneamente, provocando, em regra, a sua morte;
  2. TIRO SELETIVO, que é o disparo efetuado contra o instrumento capaz de causar a ameaça e não contra o agressor;
  3. TIRO DE CONTENÇÃO, onde o policial almeja atingir pontos não vitais do agente, acarretando a sua incapacitação mecânica (de deslocamento).

Feitas essas observações, é preciso esclarecer que qualquer bem jurídico pode ser protegido pela legítima defesa e não apenas o direito à vida (ex: patrimônio, dignidade sexual, liberdade etc.) (GRECO, 2018. p. 446). Basicamente, a legítima defesa exige os seguintes elementos:

  1. INJUSTA AGRESSÃO – representada na ameaça humana – não amparada pelo direito –  de lesão a um bem juridicamente protegido (MAURACH, p. 440);
  2. USO MODERADO DOS MEIOS NECESSÁRIOS PARA REPELIR A AGRESSÃO – aqui deve ser levado em consideração os meios de que dispõe o agente no momento em que sofre a agressão injusta, devendo a reação ser proporcional e suficiente para cessar o ataque sofrido, sob pena de incorrer no chamado excesso;
  3. ATUALIDADE OU IMINÊNCIA DA AGRESSÃO – de forma sobremaneira genérica, “atual” é a agressão que está acontecendo, ou em continuidade, e “iminente” é aquela que está para acontecer;
  4. DEFESA DE DIREITO PRÓPRIO OU DE TERCEIRO – a legítima defesa abrange não apenas a proteção de direito próprio, mas também de terceiros.

Evidentemente, a viabilidade jurídica da proposta do governador eleito do Rio de Janeiro passa, justamente, pela análise desses requisitos de configuração da legítima defesa, que são basicamente os mesmos no Brasil, em países democráticos da Europa e na América Latina.

Esclarece Kai AMBOS (2008. p. 528-529) que, mesmo no âmbito direito penal internacional, há requisitos para a configuração da excludente de ilicitude, como uma seleção dos bens jurídicos que podem ser legitimamente defendidos (vida, integridade física, liberdade de ir e vir e, em casos excepcionais, o patrimônio) e a razoabilidade da legítima defesa.

Todavia, mesmo pessoas que lidam com o Direito Penal no seu dia-a-dia normalmente não sabem informar dogmaticamente quais são os limites do instituto, especialmente no que concerne ao seu elemento temporal, uma vez que a doutrina pátria, salvo honrosas exceções, pouco cuida do tema. Como precisar, nessa toada, atualidade e iminência da agressão, de que trata o art. 25, do CP? Pronuncia-se ROXIN (1997, p. 618-619),
"Según una fórmula muy utilizada, una agresión es actual cuando es inmediatamente inminente, o precisamente está teniendo lugar o todavía prosigue. Como el ‘estar teniendo lugar’ —p.ej. una paliza está plenamente en curso cuando aparece el tercero defensor— está situado entre los dos extremos temporales de la inminencia y de la prosecución y por tanto no puede plantear problemas de delimitación, sólo es preciso interpretar el comienzo y el fin de la actualidad.
Em suma, embora não haja maiores problemas em definir o que é uma agressão em curso, são mais pantanosos aqueles terrenos que os cercam, o da iminência e o do prosseguimento. Para o presente trabalho, importará definir o que é a iminência da agressão.

Advirta-se que não há uma posição uníssona sobre o tema, mas teorias que almejam uma solução para o referido problema. Jakobs, por exemplo, adota a teoria do começo da tentativa como ponto determinante para justificar a legítima defesa.

Schmidhäuser, por outro lado, entende que a realização de atos preparatórios já seria suficiente. Consoante o autor, uma agressão é atual “siempre que el agresor la prepare de tal modo que ya no sea posible una defensa posterior”. Por exemplo, se alguém promete uma agressão para o dia seguinte, a pessoa ameaçada em tese já poderia reagir, pois caso espere até a data prometida possivelmente a reação será ineficaz. Nesse caso sustenta-se a ocorrência da chamada legítima defesa antecipada ou preordenada, não admitida pela nossa jurisprudência.

Já Roxin fala no momento final da preparação, em posição que nos parece mais razoável. Para o referido autor, a posição de Jakobs, que equipara a atualidade da agressão com o começo da tentativa (portanto, início dos atos de execução), é teleologicamente errada, uma vez que, para o reconhecimento da tentativa, a conduta deve aproximar-se da consumação e seria arriscado aguardar esse limite para a adoção de contramedidas de rechaço à agressão, primeiramente porque é possível que a defesa já seja ineficaz para evitar a agressão e, em segundo lugar, porque o próprio agressor seria prejudicado, dada a probabilidade de uma reação mais intensa para evitar a lesão ao bem jurídico (ROXIN, 1997, p. 619).

Também a proposição de Schmidhauser é criticada por Roxin, que não vê na agressão planejada para o futuro sequer uma agressão de fato, muito menos uma agressão atual. Desse modo, buscando uma posição temperada entre esses dois extremos, ROXIN (1997, p. 619) situa o início do reconhecimento da legítima defesa em um momento anterior ao da tentativa criminosa, ainda nos atos preparatórios, os quais estejam, todavia, em uma situação de imediatidade com os atos de execução.

Parece ser esse o entendimento de Rogério GRECO (2018, p. 455), ao afirmar que “para que possa ser considerada iminente a agressão, deve haver uma relação de proximidade. Se a agressão é remota, futura, não se pode falar em legítima defesa”.

Assim, por exemplo, se um policial em operação em uma comunidade se depara com um traficante armado com um fuzil, existindo evidente situação de hostilidade, para a primeira posição ainda não seria possível uma reação armada, potencialmente letal; para as outras duas teorias, sim. Isso não autorizaria, no entanto, o disparo policial caso o criminoso depusesse a arma, ou a abandonasse, o que, a toda evidência, afastaria a hostilidade da conduta e, portanto, a própria agressão iminente.

Em um outro cenário, caso o criminoso armado fuja para buscar abrigo próximo, visando a confrontar o policial a partir dessa posição privilegiada, novamente nos parece que – seguramente para a segunda teoria, mas provavelmente até mesmo para a terceira – poderia ser reconhecida a legítima defesa, ainda que esse criminoso não esteja colocando a arma em funcionamento ou sequer apontando-a contra o policial. A essa conclusão aparentemente também chega ROXIN (1997, 620):
"Muy polémica es la sent. RGSt 53, 132, cuyos hechos consistían en que un guarda disparó a las piernas a un cazador furtivo cuando éste, pese a que el guarda le conminó e hizo un disparo de advertencia, no arrojó al suelo su escopeta cargada, sino que salió huyendo con ella. La admisión por el RG de la legítima defensa es correcta si el cazador furtivo tenía la intención de darse la vuelta en cuanto llegara a una posición de tiro favorable y a cubierto y hacer fuego desde allí contra el guarda; pues aunque la fuga tampoco fuera aún una tentativa de homicidio, sí que supondría disponerse a la agresión. Ahora bien, si el cazador furtivo en realidad sólo quería huir, y no disparar. la suposición contraria del guarda sólo podría fundamentar una legítima defensa putativa.
Imaginemos, ainda, que, para garantir a segurança de policiais que iniciarão uma operação, mas antes da efetiva incursão, que sequer se avizinha, um “sniper” se posicione de modo a executar todos os criminosos que estejam portando ostensivamente armas de fogo em uma comunidade, alvejando-os à distância. Com isso, ele evitará que os policiais sejam confrontados num futuro próximo.

Caso seja seguida a doutrina de Schmidhauser, é possível, em tese, falar em legítima defesa de terceiros, mas a resposta não seria a mesma para Jakobs e Roxin. Contudo, uma vez iniciada a operação, se um atirador posicionado em um helicóptero observa certo integrante da facção criminosa na laje de uma casa, em posição de tiro, mas ainda aguardando a aproximação dos servidores públicos que progridem por terra, a neutralização dessa ameaça permitiria o reconhecimento da legítima defesa, à exceção da ótica de Jakobs.

Embora a doutrina brasileira – como regra – não chegue a tal nível de detalhamento, as abordagens sobre a atualidade da agressão e a negativa de legítima defesa em agressões futuras permite compreender que há uma rejeição à ponderação de Schmidhauser, que, inclusive, parece-nos encontrar uma barreira intransponível na Constituição da República.

A legítima defesa importa o sacrifício de liberdades constitucionais, reveladas no direito à vida, à integridade corporal etc. Sem uma efetiva situação de risco a bens jurídicos igualmente de índole constitucional, o sacrifício não pode acontecer, ainda que se reconheça na pessoa do titular da liberdade sacrificada um latente agressor. As posições de Roxin (com a qual concordamos) e Jakobs, nesse sentido, são aparentemente mais palatáveis.

Dizendo de outro modo, quanto à atualidade da agressão, não possuem relevância prática alterações legislativas incidentes sobre o art. 25. A redação do dispositivo já admite interpretações diversas, inclusive ampliando seu âmbito de aplicabilidade, a depender da interpretação a ele conferida pelo operador do Direito, mas sempre com respeito às vedações constitucionais. Nesse contexto, o Executivo – como um dos poderes da República – não poderia garantir uma ou outra conclusão hermenêutica, mas apenas fomentar o debate. Isso é inquestionável.

Em conclusão, a análise sobre a legítima defesa deve ser casuística e não pode prescindir da correta interpretação sobre os requisitos de configuração do instituto, na forma delineada pela norma penal. Partindo dessa constatação, verifica-se que o porte ostensivo de armas de fogo – mormente quando em mãos de integrantes de facções criminosas – pode ensejar a legítima defesa em boa parte das situações. Ou não. A simples situação de intimidação difusa autorizaria o reconhecimento da causa de justificação? A questão é polêmica, divergindo nesse ponto os próprios articulistas.

Para Francisco Sannini, cuidando de armas longas de calibre restrito – cujo porte configura crime de natureza hedionda – a intimidação difusa representa uma agressão injusta (inclusive contra o bem jurídico segurança pública) à comunidade local e aos próprios policiais, que se encontram na iminência de sofrer um ataque (legítima defesa própria ou de terceiro), justificando a “neutralização” do agente.

Esclarece Sannini que, se um policial verifica que indivíduos estão portando armas de fogo ilegalmente pelas vias públicas, ele tem o dever de agir (flagrante obrigatório – art.301, do CPP). Mas qual seria a melhor forma de deter esse criminoso? Lembre-se que para ingressar nas favelas cariocas é preciso um grande aparato policial, isso para não mencionar os riscos inerentes à operação.

Destarte, pode-se concluir que o chamado “tiro de comprometimento” é o recurso adequado e proporcional para conter a agressão iminente imposta aos moradores da região. Arremata Sannini aduzindo que se pode até questionar a proporcionalidade da reação, mas, ao que lhe parece, não é viável repelir um iminente ataque de fuzil com flores.

Nesse cenário, o ideal é que toda a ação policial seja filmada, inclusive para garantir a lisura do procedimento e comprovar a legítima defesa. Não se pode exigir que os policiais aguardem o primeiro disparo para então reagir. Se assim fosse, o instituto da legítima defesa só abrangeria a agressão atual e não a iminente.

Já na visão de Bruno Gilaberte, o simples porte, dissociado de uma situação de instalada hostilidade, é insuficiente, seja porque não reconhece a segurança pública como um bem jurídico penalmente tutelável (trata-se de um conceito oco, falecendo a necessária taxatividade), seja porque, ainda que reconhecida como bem jurídico legítimo, a segurança pública é de tamanha abstração que autorizaria a legítima defesa em quaisquer situação que causassem, ainda que remotamente, uma sensação de insegurança na população, ou seja, não existiriam mais limites ao reconhecimento da causa de justificação.

Assim, para Gilaberte, só seria possível a aplicação do art. 25 naquelas hipóteses de iminência de agressão a bens jurídicos dotados de certa concretude (vida, integridade corporal etc.), o que existiria por ocasião da atividade do poder público de combate às facções criminosas (ação policial se desenvolvendo, com criminosos prontos para o confronto), ou quando terceiros são colocados em situação de risco real, não sendo suficiente a existência de criminosos armados em via pública.

Se há o porte de armas, já existe um crime em desenvolvimento que autoriza a ação policial, mas esse crime apenas coloca em risco remoto os bens jurídicos vida e integridade corporal da comunidade local, o que não se presta a autorizar a legítima defesa. Esclarece Gilaberte que o perigo abstrato representa uma ameaça, mas não é uma agressão atual ou iminente, ainda que possa permitir a criação de tipos penais.

Raciocínio contrário implicaria, por exemplo, em autorização para a polícia abater jagunços que circulassem ilegalmente armados em uma propriedade rural, quando há conflito fundiário entre o proprietário das terras e proprietários de terras vizinhas.

Todavia, recorda Gilaberte que, de fato, o policial não precisa esperar que uma arma lhe seja apontada, tornando quase impossível a reação, o que seria a consagração da teoria de Jakobs. Adotando-se a tese de Roxin, a reação pode se dar em momento anterior, mas nunca na existência de um risco remoto.

Fato é que, ao menos, a defesa política do abate trouxe à baila importante discussão jurídica costumeiramente negligenciada no país, de sorte que pode significar o primeiro passo para o amadurecimento da discussão acerca das hipóteses de exclusão de ilicitude na doutrina nacional. A realidade, por vezes, é a mola mestra da produção intelectual, sendo certo que dogmática (tida por muitos como academicismo) e facticidade são complementares.

A dissociação entre essas esferas – revelada em estudos acadêmicos assépticos, ou em frases feitas que beiram a obtusidade, como “na prática, a teoria é outra” – é o que de mais pernicioso pode acontecer para a evolução dos institutos jurídicos.

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REFERÊNCIAS

AMBOS, Kai. A parte geral do direito penal internacional: bases para uma elaboração dogmática. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 528-529.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. ed. 20. Niterói, RJ: Impetus, 2018. p. 446.

LESSA, Marcelo. O abate de criminosos portando fuzis e a legítima defesa. Disponível aqui.  Acesso em 01.11.2018.

MAURACH, Reinhart. Derecho Penal – Parte General.

ROXIN, Claus. Derecho Penal – Parte General. 2. ed. Madri: Civitas, 1997. Tomo I, p. 618-619.

Francisco S. Neto e Bruno Gilaberte Freitas
Mestre em Direitos Difusos e Coletivos. Delegado
Fonte: Canal Ciências Criminais
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