O caráter hediondo concebido ao crime de tráfico privilegiado - Por Erni Bernkopf

goo.gl/TaqZeV | Em mais um julgamento a fim de garantir os princípios constitucionais ao individuo que se encontra em situação de acusado, a Suprema Corte deferiu no dia 23 de junho, de 2016, novo entendimento ao chamado tráfico de drogas privilegiado, previsto no art. 33, § 4°, da Lei 11.343/06 (que instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – SISNAD), que descaracteriza a natureza hedionda, tornando-a inadequada, incabível e desproporcional.

Tal entendimento fundamenta-se no HC 118.533, impetrado pela DPU em favor de dois réus condenados a 07 anos e 01 mês de reclusão pela comarca de Nova Andradina/MS.

Na ocasião, fora decidido pelo STF que o crime de tráfico privilegiado – atendendo cumulativamente aos requisitos do art. 33, § 4° da Lei 11.343/06: 1°: que o agente seja primário, 2°: de bons antecedentes, 3°: não se dedique às atividades criminosas, e 4°: não integre organização criminosa –, não pode ser caracterizado como hediondo.

De tal sorte, este novo entendimento inibe que se aplique uma analogia (que em nosso direito penal é vedada) entre disposições legais, uma vez que o referido artigo não dispõe de previsão legal ou estrita na Lei 8.072/90 (crimes hediondos), como assevera o Ministro Edson Fachin:
"Como desdobramento do princípio da legalidade, de intensa aplicação na seara penal, considera-se que o rol dos crimes elencados na Lei 8.072/90 é de caráter estrito, ou seja, não admite ampliação mediante analogia.
E acrescenta no que tange ao legislador:
"Tampouco nas hipóteses mais severas de concessão de livramento condicional, caso contrário, entendo, o teria feito de forma expressa e precisa. Além disso, a avaliação sistemática sobre o prisma da proporcionalidade reforça essa conclusão.
Em razão disso, este novo parecer possibilita ao condenado, mediante a redução da pena de 1/6 a 2/3 (art. 33, § 4°, primeira parte), um rol de benefícios, que antes, dada a sua natureza hedionda, seriam vedados, que vão desde a progressão da pena sentenciada, até uma possível substituição da mesma em restritiva de direitos. Como se observa em jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:
"HABEAS CORPUS. PENAL. CRIME DE TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES. MINORANTE PREVISTA NO ART. 33, 4.º, DA NOVA LEI DE TÓXICOS. PRINCÍPIO DA RETROATIVIDADE DA LEI PENAL MAIS BENÉFICA. APLICABILIDADE CASO O APENADO SATISFAÇA OS REQUISITOS LEGAIS. CISAO DE DISPOSITIVOS LEGAIS. INADMISSIBILIDADE. SUBSTITUIÇAO DA PENA. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. DIREITO A RECORRER EM LIBERDADE. ESGOTAMENTO DA INSTÂNCIA ORDINÁRIA. EXECUÇAO PROVISÓRIA. POSSIBILIDADE. 1. Diante de conflito aparente de normas, não é dado ao juiz aplicar os aspectos benéficos de uma e outra lei, sob pena de transmudar-se em legislador ordinário, criando lei nova. 2. Encaixando-se a hipótese no disposto no 4.º do art. 33 da Lei n.º 11.343/06 tratando-se de réu primário, de bons antecedentes, que não se dedique a atividades criminosas, nem integre organização criminosa , a pena reclusiva de 05 anos reduz-se para menos de 03 anos, passando, assim, a ser a mais benéfica do que a antiga. 3. Excluído o único óbice à progressão de regime nos crimes hediondos e equiparados, consubstanciado no caráter especial dos rigores do regime integralmente fechado, não subsiste qualquer empecilho ao pleito de substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos, desde que o acusado atenda os requisitos previstos no art. 44 do Código Penal. Precedentes (…) 5. Ordem parcialmente concedida para determinar ao Tribunal de origem que prossiga no exame dos requisitos legais previstos no art. 33,4.º, da Lei n.º 11.343/06, fixando, se for o caso, o percentual de redução (de 1/6 a 2/3), o qual deverá incidir sobre o caput do mesmo artigo, bem assim no que diz respeito à concessão do benefício da substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos (BRASIL, 2008).
Dessarte, tal redução prevista (1/6 a 2/3) poderá acarretar, desde a sentença condenatória, resultados benéficos ao condenado. Desde já, poderá este ter em sua pena privativa de liberdade o regime inicial aberto de cumprimento, de acordo com o art. 33, § 2°, c, da Lei 2.848/40 (Código Penal).

Pois, se ao condenado não subsistir nenhuma causa de aumento previstas no art. 40 da Lei 11.343/06, observadso os critérios do art. 59 do Código Penal, e apresentar os requisitos para tal redução, poderá ter uma pena inferior a 4 anos, possibilitando não só o regime inicial aberto, mas também concessão da substituição por pena restritiva de direitos.

No que se refere à substituição, é correto salientar que há vedação prevista no art. 44 da Lei 11.343/06:
"Os crimes previstos nos arts. 33, caput, e § 1o, e 34 a 37 desta lei são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos.
Contudo, com a nova redação dada pela Lei 11.464/07 aos crimes hediondos, mais precisamente ao vetar “regime integralmente fechado” e adotar “regime inicial fechado”, esta vedação perdeu seu sentido original, e com isso também inexiste a proibição à substituição, prevista no art. 44, I e § 2°, do Código Penal (desde que atendidos seus requisitos). Tal entendimento se verifica em outro julgado do STF:
"A Segunda Turma, superando a restrição fundada no Enunciado 691 da Súmula do STF, concedeu habeas corpus ao condenado pelo crime de tráfico ilícito de entorpecentes (Lei 11.343/2006, art. 33) para determinar que o tribunal de justiça substitua a pena privativa de liberdade por outra restritiva de direitos ou, havendo reversão, que o início do cumprimento da pena privativa de liberdade se dê no regime aberto. Assentou-se que a quantidade de pena imposta 3 anos , não constando circunstâncias desfavoráveis ao paciente, que não registra antecedentes, permitiria não só que a pena tivesse início no regime aberto (CP, art. 33, 2º, c), mas, também, a substituição por pena restritiva de direitos (CP, art. 44, 2º, segunda parte). (BRASIL, 2009).
Toda mesma forma poderá lograr da suspensão condicional, prevista nos arts. 77 a 82 do Código Penal, e também disposto nos arts. 156 a 163 da Lei de Execução Penal, sendo que se enquadrará em uma das quatro espécies de sursis: Simples/Comum, previsto no art. 78, § 1°; Especial previsto no art. 78, § 2; Etário previsto no art. 77, § 2° (1° parte); e por razões de saúde previsto no art. 77, § 2 (2° parte), ambos do Código Penal.

Entretanto, só gozará de tal benefício se atender aos requisitos do art. 77 caput, e incisos, e que sua pena privativa de liberdade não exceda 02 anos. Se for condenado com pena mínima prevista de 05 anos, por exemplo, terá de cumprir apenas 01 ano e 08 meses de reclusão, se usufruir de toda a redução.

Ao apenado já cumprindo pena, poderá obter benefício também diante ao sistema de progressão de regime, legalmente disposto no art. 112, caput, da Lei 7.210/84 (Lei de Execução Penal), define que a transferência para um regime menos rigoroso atenderá sua vigência quando o preso cumprir no mínimo 1/6 da pena no regime antecedente, e mediante comprovação do diretor do estabelecimento, apresentar bom comportamento carcerário. Todavia, se houvesse o caráter hediondo ao crime, esse período de cumprimento se elevaria, tendo em vista o art. 2°, § 2°, da Lei 8.072/90, que dispõe de 2/5 de cumprimento de pena em regime anterior se o réu for primário, e 3/5 se reincidente.

De tal forma, que diante o livramento condicional, outro privilégio ao apenado, o caráter hediondo ao crime de tráfico privilegiado, traria malefícios. Disposto nos arts. 83 a 90 do Código Penal, e arts. 131 a 146 da Lei de Execução Penal, o livramento condicional será concedido ao apenado que fora condenado com pena privativa de liberdade, igual ou superior a 02 anos (art. 83, caput do Código Penal).

Observados além de outros requisitos em seus incisos, este benefício exigirá o cumprimento de mais de 1/3 da pena, se não for reincidente em crime doloso e apresentar bons antecedentes. Conquanto, o inciso V do referente artigo, dispõe uma rigidez maior à condenação por crime caracterizado hediondo, visto que, para tal condenação, o apenado deve cumprir mais de 2/3 da pena, para só então adquirir o direito de tal prerrogativa.

De semelhante modo, o art. 44 da Lei 11.343/06 veda a concessão de graça, indulto ou anistia, diante a prática de crimes hediondos, respeitando o disposto na Constituição Federal, em seu inciso XLIII, que
"considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem.
Entretanto, se afastado o caráter hediondo da prática em análise, poder-se-á conceder o indulto, previsto à constituição no art. 84, inciso XII, mediante ação de concessão privativa (poderá ser delegada, conforme parágrafo púnico do referido artigo) do Presidente da República.

Este também se encontra detalhado nos arts. 188 a 193 da Lei 7.210/84, que trata do indulto individual (graça) e coletivo, como também quanto a sua petição no caso de individual e procedimentos aos dois processos. De tal sorte, a anistia também poderá ser concedida. Prevista no art. 48, inciso VIII, da Magna Carta, mediante ação do Congresso Nacional, e art. 187 da Lei 7.210/84, tal benefício alcançará o apenado, tendo com isso apagado por um determinado período de tempo, fatos que acometem a história social do agente.

À vista do que fora exposto, o recente entendimento da Suprema Corte, irá assistir a cada caso concreto com mais singularidade, não mais homogeneizando a aplicação penal. Como assevera o presidente da Corte, Ministro Ricardo Lewandowski:
"Reconhecer, pois, que essas pessoas podem receber um tratamento mais condizente com a sua situação especial e diferenciada que as levou ao crime, configura não apenas uma medida de justiça (a qual, seguramente, trará decisivo impacto ao já saturado sistema prisional brasileira), mas desvenda também uma solução que melhor se amolda ao princípio constitucional da “individualização da pena”, sobretudo como um importante instrumento de reinserção, na comunidade, de pessoas que dela se afastaram, na maior parte dos casos, compelidas pelas circunstâncias sociais desfavoráveis em que se debatiam.
Além de auxiliar a uma diminuição na entrada de novos detentos ao já falido sistema carcerário, esta nova concepção diante ao crime de tráfico privilegiado, possibilita dissociar a hediondez da habitualidade do delito, ou seja, aquele que leva como caminho social a prática do tráfico de drogas, daquele individuo isolado, que mediante uma oportunidade se valeu da ocasião.

De tal forma, este novo horizonte no direito penal, possibilitará uma aplicação mais condizente com a pratica criminal concreta, proporcionado que a recuperação social deste individuo, muitas vezes marginalizado pela sua condição social e cultural, deixe o campo do imaginário, e possa então ser alcançado concretamente.

Erni Bernkopf
Graduando em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ/RS)
Fonte: Canal Ciências Criminais
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