Nulidade de prisão em flagrante fundada exclusivamente em denúncia anônima

goo.gl/b25Amy | O presente ensaio abordará as prisões em flagrante delito fundadas exclusivamente em denúncias anônimas, realizadas, muitas vezes, através de canais próprios de órgãos policiais, os denominados disque-denúncia.

Muito embora esse método de notitia criminis em princípio pareça eficaz e seguro ao denunciante, bem como útil ao trabalho policial, não serve como fundamento apto para a realização da prisão em flagrante delito do indivíduo que supostamente tenha cometido qualquer infração penal.

Anonimato e denúncia anônima


Primeiramente, a Constituição Federal é taxativa ao afirmar, em seu art. 5º, inciso IV, a liberdade de pensamento, vedando-se o anonimato. Embora vedado o anonimato, portanto, esta vedação não se presta a obstar o recebimento da denunciação anônima por parte da autoridade policial que, uma vez a recebendo, certamente não a ignorará.

Assim, o ordenamento constitucional que passou a estruturar o Estado Democrático de Direito brasileiro a partir de 1988, elevou a liberdade de expressão ao patamar de direito-garantia constitucional, direito este inalienável e indisponível.

Entretanto, conforme bem aponta Luis Gustavo Grandinetti Castanho de CARVALHO (2014, p. 48), é no processo penal a arena onde se digladiam princípios constitucionais que tentam se sobrepor uns aos outros, citando como exemplo o princípio da liberdade, de um lado, e o princípio da segurança pública, de outro.

Em apertada síntese, o autor explana a necessidade de realização, por parte do operador do Direito, de ponderação entre os bens jurídicos postos no plano processual penal apresentado e, a partir de então, obter a resposta juridicamente mais apropriada.

Dito isso, é necessário apontar para a estruturação do processo penal brasileiro, de matriz essencialmente garantista. Essa estruturação, conforme Aury Lopes Júnior e Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, dá-se em torno do princípio dispositivo, sendo este o núcleo fundamente/estruturante do processo penal brasileiro, a partir de uma leitura constitucional, onde a carga probatória é ônus da acusação.

Decorrência lógica e concorrente deste núcleo apresenta-se como o princípio da presunção de inocência, constitucionalmente assegurado diga-se, e que impõe a prova da culpabilidade ao Estado e não a prova da inocência ao indivíduo.

Assim sendo, a persecução penal apenas estará legitimada a partir de indícios mínimos e idôneos de autoria e materialidade para que possa o indivíduo vir a ser formalmente acusado da prática de um crime, em decorrência do princípio da presunção de inocência.

Não obstante a investigação preliminar, v.g. o inquérito policial, prescindir de elementos materiais pré-constituídos para a sua instauração, podendo ser instaurado de ofício pela autoridade policial, de acordo com o art. 5º, inciso I, do Código de Processo Penal, a existência de, pelo menos, notitia criminis ou constatação pessoal do Delegado de Polícia da prática de um delito se faz essencial para que seja possível o início da investigação.

Assim, a denúncia anônima serve como gatilho inicial para a atuação investigativa policial através de diligências próprias da atividade, mas não do procedimento policial em si, sob pena de violação da presunção de inocência.

O problema reside, porém, na validade da prisão em flagrante delito fundada única e exclusivamente em denúncia anônima, com ausência de investigação prévia por parte do órgão policial responsável.

Conforme dito, a realização de diligências policiais a partir de delação apócrifa não viola, portanto, a vedação do art. 5º, inciso IV, da Magna Carta, entretanto, e aqui relembrando a posição de Carvalho sobre a ponderação de bens jurídicos no processo penal, necessário se fará a ponderação entre o princípio da presunção de inocência operando em prol da pessoa denunciada e, por outro lado, o princípio da segurança pública, operando em favor da sociedade.

Dessa forma, observando-se o necessário respeito aos direitos fundamentais, em especial à presunção de inocência, não estará este comunicado apto a fundamentar a prisão em flagrante delito, uma vez que, primeiramente, presume-se inocente todo e qualquer cidadão.

Em segundo plano, as prisões em flagrante fundadas em comunicação anônima, majoritariamente dizem respeito sobre a prática de crimes permanentes e de perigo abstrato, v.g. tráfico de drogas, e, assim sendo, necessitam de uma abordagem proativa por parte da autoridade policial, com a realização de buscas pessoais, domiciliares e veiculares, por exemplo.

Sendo o domicílio e a privacidade bens jurídicos constitucionalmente protegidos, forte no art. 5º, incisos X e XI, da Lei Maior, a intervenção do Estado nestas esferas depende de autorização judicial, no caso de busca e apreensão domiciliar, ou de fundadas razões, em se tratando de buscas pessoais e veiculares, sob pena de violação destes princípios e consequente nulidade do ato. Portanto, a denunciação apócrifa necessitará de corroboração em outros atos de investigação para que seu conteúdo possa ser efetivamente averiguado por parte da autoridade policial.

Quando não há a estrita observância destes princípios-garantias constitucionais, a denúncia anônima poderá servir como método escuso de um cidadão prejudicar a outro, instrumentalizando o Estado para tanto, induzindo-o a dilapidar direitos fundamentais do indivíduo denunciado, em razão de sentimentos alheios ao dever público e cívico do denunciante, abrigado pelo anonimato e, portanto, a quem sequer será possível a responsabilização civil e/ou penal em sendo inverídica a denunciação.

O legislador ordinário demonstrou, inclusive, o desvalor constatado através de denunciação caluniosa ao tipificar como crime a prática, punível com pena de reclusão de dois a oito anos, de acordo com o art. 339 do Código Penal. Igualmente punível é a prática de falsa comunicação de crime ou contravenção, tipificada no art. 340, também do Código Penal.

Caso contrário, se o legislador admitisse a delação apócrifa como meio idôneo de instauração de procedimento policial ou de prisão em flagrante delito, ilógico seria a criminalização das condutas acima referidas, pois bastaria a realização destes crimes estando o indivíduo abrigado pelo anonimato e livre estaria de qualquer sanção penal, pois impossível seria a individualização de sua conduta.

Por estas razões, extrai-se tanto da Constituição da República de 1988, quanto do Código Penal e de Processo Penal, a impossibilidade de realização de prisão em flagrante delito fundada exclusivamente em denúncia anônima, bem como na instauração de procedimento policial nos mesmos termos, sendo imprescindível, para tanto, a realização de investigação prévia por parte da autoridade policial.

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REFERÊNCIAS

CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti de. Processo Penal e Constituição: Princípios Constitucionais do Processo Penal. 6. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2014.

Mauricio Dal Castel
Pós-graduando em Ciências Penais
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