goo.gl/fR4dzS | José Afonso e Cassilda começaram a namorar na época em que estudavam agronomia na faculdade. Eram colegas de turma. No ano anterior ao de sua formatura passaram a viver juntos. Atendiam a todos os requisitos do art. 1.723 do Código Civil: tinham uma convivência pública, contínua, duradoura, e estabelecida com o objetivo de constituição de família. Assim, o casal constituía uma entidade familiar, sob o modelo de união estável, constitucionalmente prevista e reconhecida, com a mesma dignidade, estatura e importância do casamento. Com os mesmos direitos dos que são casados e iguais deveres: lealdade (que implica fidelidade, obviamente), respeito, assistência, guarda, sustento e educação dos filhos. Quando ao aspecto patrimonial, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens, que é o regime supletório, também, no casamento (arts. 1.640 e 1.658 a 1.666 do Código Civil). As características principais desse regime são as seguintes: excluem-se da comunhão – isso é, são de propriedade exclusiva, pessoal – os bens que cada cônjuge possuir ao casar, e os que lhe sobrevierem, na constância do casamento, por doação ou sucessão (direito hereditário); por outro lado, comunicam-se - ou seja, são de propriedade comum dos cônjuges – os bens adquiridos na constância do casamento por título oneroso (compra e venda, por exemplo), ainda que em nome de um dos cônjuges. Essas regras se aplicam aos companheiros.
José Afonso dedicou-se ao agronegócio e obteve sucesso na atividade. Cassilda abriu um movimentado escritório de assessoria para produtores rurais. Tinham vida confortável, embora não esbanjassem dinheiro. Fizeram duas viagens ao exterior: uma à Europa, outra à China. Mas eram discretos: quando conhecidos perguntavam por onde tinham ido, ultimamente, respondiam ‘‘estávamos numa segunda lua de mel, em Salinópolis’’.
Ele adquiriu dois bons apartamentos, uma casa em Salinópolis, uma motocicleta Harley-Davidson (o sujeito não deixava por menos!), tinha um automóvel importado e Cassilda um carro confortável, do ano. Viveram assim por felizes quinze anos.
Então, o marido resolveu ingressar numa sociedade de criação de gado de raça. Conversando com a esposa, explicou que a atividade empresarial é de risco e convenceu-a de que era mais seguro casarem-se e fazer um pacto antenupcial estipulando a absoluta separação de bens. Tudo transcorreu dessa maneira. Cassilda ficou felicíssima. Mesmo na modernidade, casar ainda é o grande sonho das mulheres. Alguém duvida?
Mas, passados dois anos, o casamento desandou, o casal vivia em conflitos. José Afonso foi morar num hotel e entrou com ação de divórcio. Cassilda, surpreendida pelo pedido (ainda esperava que o marido voltasse), constituiu advogado e mandou dizer ao juiz que estava de acordo com a dissolução do casamento, mas advertiu que o marido havia ‘‘esquecido’’ de mencionar os bens e falar na partilha. Ele, por sua vez, respondeu, rápido e certeiro, como uma flecha; ‘‘Não há bens a partilhar. Todos os imóveis, os carros e a motocicleta estão em meu nome, são meus, o regime de nosso casamento é o de absoluta separação de bens’’.
Recebi consulta sobre a questão de uma colega, que admiro muitíssimo, e concluí: o pacto antenupcial que José Afonso e Cassilda celebraram, de separação de bens, vale e tem efeito de seu casamento em diante (ex nunc), não tem eficácia retroativa (ex tunc), não se projeta para o passado, a fim de reger as relações patrimoniais pretéritas, enquanto o casal vivia em união estável. Nesse período anterior, a entidade familiar era regida pelo regime da comunhão parcial de bens, com os respectivos efeitos. Não se pode confundir e misturar os dois momentos, como se fossem um e um só. José Afonso, ao que parece, quer dar o ‘‘golpe do João sem braço’’, está usando de má-fé.
Em síntese: todos os bens adquiridos onerosamente no tempo em que viviam em união estável (inclusive, a amada Harley Davidson!) são comuns, de propriedade de ambos os conviventes, metade de cada um. E assim, têm de ser partilhados.
P.S. Participei no auditório do Instituto dos Advogados de São Paulo - IASP da última sessão do ano da Comissão de Família e Sucessões, presidida pelo professor Mário Delgado e com a presença, também, à Mesa, do desembargador Jones Figueirêdo. No almoço, em que se despedia da presidência da entidade o advogado José Horácio Ribeiro, estive ao lado do mestre das Arcadas, Álvaro Villaça Azevedo, que me perguntou por Marta Vinagre. Disse-lhe que, atualmente, ela se chama Marta Bembom, é uma advogada conceituadíssima e fiquei impressionado com a boa memória dele, pois já havia se passado alguns anos em que Marta fez especialização em Civil na USP; Villaça respondeu: ‘‘ela tirou o primeiro lugar na prova de admissão e com nota 10. Nunca esqueci disto’’. O desembargador Jones é o diretor da Escola da Magistratura de Pernambuco, cuja sede é um edifício imponente, belíssimo, com um auditório de 800 lugares! Ele trouxe da Alemanha para dar uma palestra, semana passada, no Recife, ninguém menos que Robert Alexy – um dos maiores jusfilósofos do direito mundial contemporâneo - e que acaba de completar 70 anos. Jones entregou-me um livro autografado pelo grande mestre Alexy, com afetuosa mensagem, e não preciso dizer o quanto fiquei honrado e comovido. À noite, sábado, fui ao casamento de meus queridos Flávio Tartuce e Léia. A igreja estava repleta, com mais de 300 pessoas. Sentei-me no fundo, junto com Rodrigo Toscano. No final da cerimônia, o jovem casal, acompanhado dos filhos, percorreu a igreja, até à porta de entrada. Pude verificar que nenhum convidado (nenhum!) deixou o recinto, e todos aplaudiram a passagem do cortejo. Mas já vi, em outros casamentos, aqui em Belém, uma cena lamentável: acabada a cerimônia, muita gente sai correndo, em direção ao local em que ocorrerá a recepção, e os noivos se retiram com a igreja praticamente vazia, o que é triste. Triste não, tristíssimo.
[1] Artigo publicado no Jornal O Liberal, de Belém do Pará.
Flávio Tartuce
Advogado, parecerista e consultor em São Paulo. Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor do programa de mestrado e doutorado da FADISP. Professor e Coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Civil, Direito Contratual e Direito de Família e das Sucessões da EPD. Professor do G7 Jurídico, em cursos preparatórios para as carreiras jurídicas. Autor da Editora GEN (Forense e Método). Diretor Nacional e Vice-presidente do IBDFAMSP.
Fonte: Jus Brasil
José Afonso dedicou-se ao agronegócio e obteve sucesso na atividade. Cassilda abriu um movimentado escritório de assessoria para produtores rurais. Tinham vida confortável, embora não esbanjassem dinheiro. Fizeram duas viagens ao exterior: uma à Europa, outra à China. Mas eram discretos: quando conhecidos perguntavam por onde tinham ido, ultimamente, respondiam ‘‘estávamos numa segunda lua de mel, em Salinópolis’’.
Ele adquiriu dois bons apartamentos, uma casa em Salinópolis, uma motocicleta Harley-Davidson (o sujeito não deixava por menos!), tinha um automóvel importado e Cassilda um carro confortável, do ano. Viveram assim por felizes quinze anos.
Então, o marido resolveu ingressar numa sociedade de criação de gado de raça. Conversando com a esposa, explicou que a atividade empresarial é de risco e convenceu-a de que era mais seguro casarem-se e fazer um pacto antenupcial estipulando a absoluta separação de bens. Tudo transcorreu dessa maneira. Cassilda ficou felicíssima. Mesmo na modernidade, casar ainda é o grande sonho das mulheres. Alguém duvida?
Mas, passados dois anos, o casamento desandou, o casal vivia em conflitos. José Afonso foi morar num hotel e entrou com ação de divórcio. Cassilda, surpreendida pelo pedido (ainda esperava que o marido voltasse), constituiu advogado e mandou dizer ao juiz que estava de acordo com a dissolução do casamento, mas advertiu que o marido havia ‘‘esquecido’’ de mencionar os bens e falar na partilha. Ele, por sua vez, respondeu, rápido e certeiro, como uma flecha; ‘‘Não há bens a partilhar. Todos os imóveis, os carros e a motocicleta estão em meu nome, são meus, o regime de nosso casamento é o de absoluta separação de bens’’.
Recebi consulta sobre a questão de uma colega, que admiro muitíssimo, e concluí: o pacto antenupcial que José Afonso e Cassilda celebraram, de separação de bens, vale e tem efeito de seu casamento em diante (ex nunc), não tem eficácia retroativa (ex tunc), não se projeta para o passado, a fim de reger as relações patrimoniais pretéritas, enquanto o casal vivia em união estável. Nesse período anterior, a entidade familiar era regida pelo regime da comunhão parcial de bens, com os respectivos efeitos. Não se pode confundir e misturar os dois momentos, como se fossem um e um só. José Afonso, ao que parece, quer dar o ‘‘golpe do João sem braço’’, está usando de má-fé.
Em síntese: todos os bens adquiridos onerosamente no tempo em que viviam em união estável (inclusive, a amada Harley Davidson!) são comuns, de propriedade de ambos os conviventes, metade de cada um. E assim, têm de ser partilhados.
P.S. Participei no auditório do Instituto dos Advogados de São Paulo - IASP da última sessão do ano da Comissão de Família e Sucessões, presidida pelo professor Mário Delgado e com a presença, também, à Mesa, do desembargador Jones Figueirêdo. No almoço, em que se despedia da presidência da entidade o advogado José Horácio Ribeiro, estive ao lado do mestre das Arcadas, Álvaro Villaça Azevedo, que me perguntou por Marta Vinagre. Disse-lhe que, atualmente, ela se chama Marta Bembom, é uma advogada conceituadíssima e fiquei impressionado com a boa memória dele, pois já havia se passado alguns anos em que Marta fez especialização em Civil na USP; Villaça respondeu: ‘‘ela tirou o primeiro lugar na prova de admissão e com nota 10. Nunca esqueci disto’’. O desembargador Jones é o diretor da Escola da Magistratura de Pernambuco, cuja sede é um edifício imponente, belíssimo, com um auditório de 800 lugares! Ele trouxe da Alemanha para dar uma palestra, semana passada, no Recife, ninguém menos que Robert Alexy – um dos maiores jusfilósofos do direito mundial contemporâneo - e que acaba de completar 70 anos. Jones entregou-me um livro autografado pelo grande mestre Alexy, com afetuosa mensagem, e não preciso dizer o quanto fiquei honrado e comovido. À noite, sábado, fui ao casamento de meus queridos Flávio Tartuce e Léia. A igreja estava repleta, com mais de 300 pessoas. Sentei-me no fundo, junto com Rodrigo Toscano. No final da cerimônia, o jovem casal, acompanhado dos filhos, percorreu a igreja, até à porta de entrada. Pude verificar que nenhum convidado (nenhum!) deixou o recinto, e todos aplaudiram a passagem do cortejo. Mas já vi, em outros casamentos, aqui em Belém, uma cena lamentável: acabada a cerimônia, muita gente sai correndo, em direção ao local em que ocorrerá a recepção, e os noivos se retiram com a igreja praticamente vazia, o que é triste. Triste não, tristíssimo.
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[1] Artigo publicado no Jornal O Liberal, de Belém do Pará.
Flávio Tartuce
Advogado, parecerista e consultor em São Paulo. Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor do programa de mestrado e doutorado da FADISP. Professor e Coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Civil, Direito Contratual e Direito de Família e das Sucessões da EPD. Professor do G7 Jurídico, em cursos preparatórios para as carreiras jurídicas. Autor da Editora GEN (Forense e Método). Diretor Nacional e Vice-presidente do IBDFAMSP.
Fonte: Jus Brasil