Direito constitucional: juízes podem muito, mas não podem tudo - Por Guilherme Kuhn

goo.gl/pgHHRV | Não se trata de lulismo ou anti-lulismo (não sou nem um pouco fã dele) ; não se trata de petismo ou anti-petismo; não se trata de direita ou esquerda, de reto ou torto. Trata-se da lei; trata-se de levar à legislação – infraconstitucional, constitucional e convencional – à sério; trata-se dos limites interpretativos impostos pelos princípios e normas do direito.

Na data de ontem, véspera de recesso forense (o Poder Judiciário ficará em recesso a partir de 20 de dezembro de 2018 até o dia 06 de janeiro de 2019), o Ministro da Suprema Corte pátria, Marco Aurélio, proferiu polêmica decisão em caráter liminar, determinando – convencido da urgência da matéria – que a presunção de inocência fosse respeitada e, assim, fossem libertados todos aqueles que estão presos em virtude de éditos condenatórios provisórios, ressalvando que a decisão não atinge aos presos cautelares, enquadráveis no artigo 312 do Código de Processo Penal (ADC 54 MC/DF – STF).

Um ato decisório, sem sombra de dúvidas, corajoso, acerca de uma matéria que vem sendo ilegalmente interpretada e desvirtuada pela Suprema Corte pátria por questões políticas.

Há algum tempo venho dizendo, sem medo de represálias, que uma das características do Poder Judiciário, de nossos acusadores e juízes, infelizmente, é a insensibilidade. Vivemos tempos de sobrecarga processual e de ausência de empatia. Ninguém mais se importa com o outro. Ao contrário: deseja-se a ruína do estranho!

O Poder Judiciário está soterrado de processos, cada qual com sua história de vida, diferente, peculiar; cada um com um sofrimento, com um drama, com uma tragédia em apuração.

Os processos criminais, normalmente, são banalizados. Cada expediente, cada processo é percebido como se fosse só mais um entre tantos outros, isto é, como se fosse apenas mais um número nas estatísticas: um amontoado de papéis.

Não senhoras, não senhores. Cada processo, principalmente, os criminais, carrega consigo uma história de sofrimento, de perda, de tragédia, de dor, de drama e de injustiça. Só quem labuta na área sabe como é angustiante responder à uma acusação criminal, como uma acusação destrói vidas, retira oportunidades de emprego e de crescimento na vida, rompe relações de amizade, amorosas e familiares.

Normalmente, um processo criminal, no Brasil, tramita por cerca de 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10 anos, senão mais! E, normalmente, o acusado, que ainda não fora condenado definitivamente, responde boa parte desta acusação (quando não, inadmissivelmente, toda ela!) preso, cerceado da liberdade e impedido de conviver com sua família e amigos.

A questão é: e depois de quatro, cinco, seis, sete, oito anos de processo? E se o réu, depois de tanto tempo preso, for absolvido? Vale dizer: e se a inocência dele for confirmada? Quem é que devolve a ele o tempo, as oportunidades (como perda de empregos, impossibilidade de prestar concursos públicos ou assumir cargos, etc.) e as relações perdidas? Ora: a flecha do tempo é irreversível!

Eis a razão da presunção de inocência. Muitas pessoas queimaram nas fogueiras para chegarmos até ela. Muitos foram açoitados, mutilados e sentenciados indevidamente até se chegar à sedimentação do princípio da presunção de inocência (também chamado de preceito da não culpabilidade). A conquista deste postulado fora à duras penas.

Juízes podem muito…


O que o Min. do STF, Marco Aurélio, fez é compreensível, acertado e demonstra a sua preocupação em ser um Magistrado que sabe de suas responsabilidades e das angústias que envolvem um processo criminal.

Veja-se que o Min. Marco Aurélio tentou, por reiteradas vezes, levar esta matéria (da constitucionalidade do artigo 283 do CPP, que prevê que a prisão do sujeito somente pode ocorrer após o trânsito em julgado) à julgamento perante o plenário do STF.

Antes de decidir em caráter de urgência (liminar), houve tentativas de pautar a questão para apreciação dos Ministros da Corte Suprema. Como se sabe, esforços e mais esforços foram empregados para adiar o enfrentamento desta matéria. Tanto é assim que o julgamento deste tema fora marcado somente para 10 de abril de 2019.

Eis a consequência: sabendo de sua responsabilidade e de que prisões antecipadas, sem existir uma condenação definitiva, são inadmissíveis, o Min. Marco Aurélio não vendou os olhos com insensibilidade – com a cegueira moral!

Juízes podem muito…


Grosso modo, decidiu da seguinte maneira: não mais podemos fugir do enfrentamento desta matéria. As pessoas não podem aguardar presas enquanto a Corte Suprema evitar a análise do tema de acordo com conveniências políticas.

Não se trata de lulismo. Muitos e muitos réus, a maioria pobres e miseráveis, aguardam presos os julgamentos de seus recursos. Muitos e muitos inocentes são punidos indevidamente, precocemente; igualmente, muitos culpados são punidos excessivamente (recebendo uma punição além da devida), enquanto aguardam o encerramento do processo.

Pesquisas apontam que as instâncias superiores reformam cerca de 40% dos processos que chegam à elas (CANÁRIO, 2016). Rafael Munnerat, representante da Defensoria Pública de São Paulo, por exemplo, “lamentou uma taxa de sucesso de 60% de ‘aproveitamento total ou parcial’ dos recursos e agravos que interpõe na Corte (apud CANÁRIO, 2016).

Igualmente, “Thaís Lima, representante da Defensoria do Rio de Janeiro, demonstrou uma taxa de sucesso de 41% no tribunal. E mais da metade, disse, se referia a cumprimento de pena (apud CANÁRIO, 2016.)”

Ou seja: normalmente, 40% das condenações sedimentadas em segunda instância sofrem reformas ou anulações em algum ponto. Evidentemente, o índice é sobremaneira elevado e explica, por si só, a importância do respeito à presunção de inocência e a razão de decidir do Min. da Suprema Corte, Marco Aurélio.

Veja-se que se o acusado for perigoso e não apresentar condições de responder ao processo em liberdade, os juízes têm – e sempre tiveram – mecanismos adequados para a tutela processual, quais sejam, medidas cautelares (que não se confundem com a execução provisória da pena).

O Código de Processo Penal, em seu artigo 283, dispõe que ninguém poderá ser preso “senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.”

A Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988, por sua vez, no artigo 5º, inciso LVII, prevê que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.”

E não há nada de errado com a legislação brasileira. A lei não é ruim, branda, incorreta ou equivocada. O respeito à presunção de inocência é imperativo e abrange o direito internacional.

A Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 assevera que:

"Todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa. 

Do mesmo modo, a Convenção Européia dos Direitos Humanos de 1950 (art. 6º):

"Qualquer pessoa acusada de uma infracção presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada.

O Pacto de São José da Costa Rica, em seu artigo 8.2, também protege a presunção de inocência:

"Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa.  Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas (…).

Por fim, o Estatuto de Roma, no artigo 66, item 1, dispõe que:

"Toda a pessoa se presume inocente até prova de sua culpa perante o Tribunal, de acordo com o direito aplicável. 

E, no item 3 do mesmo dispositivo, complementa:

"Para proferir sentença condenatória, o Tribunal deve estar convencido de que o acusado é culpado, além de qualquer dúvida razoável.

Obviamente, a existência de um juízo de certeza sobre a culpa do acusado, “além de qualquer dúvida razoável”, somente é possível após o trânsito em julgado da condenação. Até lá, existe a possibilidade do sujeito ser absolvido, do processo ser anulado ou da condenação ser alterada, modificada ou reduzida.

Não há erro na decisão do Min. Marco Aurélio. Não há falcatrua. A malícia está sim nas decisões anteriores que admitiram a punição antecipada através da existência de uma condenação em segundo grau, ocasiões em que os Magistrados arvoraram-se na condição de legisladores e disseram: a lei não importa.

Não importa o que consta no Código de Processo Penal, na Constituição Federal, no Pacto de São José da Costa Rica, na Convenção Européia de Direitos Humanos, na Declaração Universal de Direitos Humanos e no Estatuto de Roma… o que importa é o que “eu penso”. A lei não é a lei: a lei sou eu! O Estado sou eu!

Quando a Corte Suprema admitiu a execução provisória da pena, simplesmente, ignoraram por completo a legislação brasileira e, inclusive, o Direito Internacional. Rasgaram a lei e disseram: a lei é para todos os outros, menos para nós, juízes, que não precisamos segui-la e podemos decidir como bem entendermos.

Juízes podem muito, mas não podem tudo


Eis que veio o Min. Marco Aurélio e com muita responsabilidade, propriedade e coragem advertiu: nós, juízes, podemos muito, mas não podemos tudo. A Constituição tem de ser cumprida.

“Derrubada” ou não a decisão do Min. Marco Aurélio, sua relevância vai muito além de lulismo, seja o ex-presidente da República o motivo dela ou não.

 Como Advogado, não me preocupo com as chibatadas daqueles que não compreendem o sofrimento dos sujeitos encarcerados indevidamente. Não são poucos os clientes inocentes que, absolvidos, não se conformam, não engolem e não admitem a forma como foram tratados; o tempo que perderam de suas vidas; a família que foi embora e as oportunidades de trabalho que foram indevidamente cerceadas pelo Estado.

A questão vai muito além de lulismo. A lei não é somente para particulares e meros mortais. É para juízes também, que podem muito, mas não podem tudo.

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REFERÊNCIAS

CANÁRIO, Pedro. Ao antecipar prisão antecipada, STF aprofundou injustiças, dizem Advogados. Disponível aqui.

Guilherme Kuhn
Advogado criminalista. Pesquisador.
Fonte: Canal Ciências Criminais
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