goo.gl/ULHmzF | George Orwell dizia que, quando estamos em um abismo, a tarefa do homem inteligente é reafirmar o óbvio. Pois bem. Não teria a pretensão de declarar a mim mesmo aqui como um desses inteligentes orwellianos. Mas quero falar do abismo em que nós estamos. Parafraseando o próprio Orwell, nesses tempos, avisar que estamos num buraco também é uma atitude revolucionária. É como a frase que cunhei: defender a legalidade, hoje, é ser revolucionário!
Recebi, nas redes, a imagem ao lado. Trata-se de um flyer no qual um advogado diz prestar consultoria a empresários que, querendo “mais lucro”, podem “demitir seus funcionários” para “contratá-los mais barato [sic]”.
Ao receber, de pronto, convenci-me de que escreveria sobre o assunto. Tenho a sorte de ocupar um lugar sobre o qual recai a difícil tarefa de denunciar esses absurdos que têm sido rotina no Direito. Nem sempre é fácil, mas é bom saber que ainda há espaço para juristas que recusam a complacência.
Enquanto preparava o artigo, contudo, soube que o advogado da imagem divulgou um vídeo em suas redes sociais; vídeo no qual alega tratar-se de uma “sátira”. Foi enfático. Foi sátira. Pois é.
Os mais crédulos acredita(ra)m no advogado. Os céticos, bem, os céticos fazem (ou não fazem) o que os céticos fazem (ou não fazem). A Abrat não gostou nem um pouquinho.
Eu não sou um cético, mas também não entrego minha credulidade tão facilmente. Mas sou prudente. Sou cândido, enfim. Não acho que “tudo vai pelo melhor no melhor dos mundos possíveis”. Mas também não acho que tudo vá pelo pior; acho, tão somente, que “devemos cultivar nosso jardim”. (Aos que não sabem, falo de Cândido, belíssima obra de Voltaire sobre o otimismo e o pessimismo, a religião e o problema do mal — há um programa Direito & Literatura sobre o livro — veja aqui e não precisa ler o livro).
Sátira ou não, não é exatamente esse o ponto. Assim como não quero aqui falar sobre o advogado pessoalmente. Porque, seja como for, e ainda que não seja sátira, tudo isso é só mais um sintoma. Grave sintoma. Sinal dos tempos. Como chegamos nesse ponto?
Um sintoma do abismo em que nos enfiamos a nós próprios.
Porque vejam: o simples fato de não sabermos se se trata de sátira ou não já é, em si, uma prova do nosso fracasso. Exatamente isso. Uma sátira que deixa dúvida se é... uma sátira. Porque, vá lá, sejamos otimistas e tomemos como verdadeiras as palavras do advogado que diz não sustentar esse tipo de mentalidade: ninguém entendeu como sátira — não por menos, o advogado foi correndo dar explicação (no tal flyer, ele colocou seu telefone à disposição e quem sabe não recebeu telefonemas de empresários dispostos a fazer “negócios” com ele? Quem vai saber).
E, uma vez que ninguém entendeu como sátira, significa dizer que um anúncio desses não é só verossímil; é provável. Quando se tem de explicar a piada, é porque não foi bem contada. Ou ela mesma, a piada, é péssima. Imaginem o advogado chegar em audiência e dizer para o juiz: “— Bom dia juiz safado. Qual é a diatribe de hoje?”. O juiz o prende em flagrante e ele diz: “ — Foi uma sátira”. Hum, hum. Ou um médico anunciar: “Antibióticos são uma fraude”. Depois faz um pronunciamento, dizendo: “ — Só fazia uma sátira de uma campanha do Ministério da Saúde”. Hum, hum.
É um típico caso do velho ditado italiano: se non è vero, è ben trovato. Traduzo livremente aqui como “se não é verdade, olha, bem que podia ser”.
Porque essa é nossa situação. Esse é o nosso abismo. Esses são nossos tempos.
Tempos em que é possível demitir pra “contratar mais barato”. O que, aliás, é deduzível da reforma trabalhista, pois não? E isso torna o post do advogado ainda mais perigoso.
Vivemos em tempos em que a advocacia é dominada pela mentalidade do “empreendedorismo”, essa fraude epistêmica que reforça a falácia meritocrática num país em que metade da população não tem esgoto.
Tempos em que uma espécie de darwinismo social emerge no Brasil com ares de novidade (Herbert Spencer falava disso em 1880. Estamos só um pouco atrasados.)
Pois é. Fracassamos.
Fracassamos porque, ora, se o Direito não é capaz de constituir-se enquanto fenômeno autônomo, se o Direito não é capaz de construir uma tradição autêntica a partir da qual seja possível dizer que demitir pra contratar lucrando é objetivamente errado, é objetivamente antijurídico, e isso nada tem a ver com política, o que é mesmo que estamos fazendo aqui?
Ao que parece, estamos fazendo pragmatismo. Utilitarismo. É bom pra economia, certo? É assim que o Direito deve funcionar. Isso que é o moderno, isso que é o novo. Teoria? Moral? Isso não serve pra nada. Calculemos o lucro geral.
O que os gênios (ou jênios) não entendem é que também isso é uma teoria que traz em si uma posição moral. E é uma teoria ruim — porque carente de uma epistemologia que demonstre a superioridade do próprio critério — e uma posição moral errada — porque derrota a si própria. Porque, como diz o velho Bernard Williams, se o utilitarismo está certo, é melhor que as pessoas não acreditem no utilitarismo. E se estiver errado, então é óbvio que é melhor que as pessoas não acreditem no utilitarismo. Isso significa que, qualquer que seja o caso, é melhor que as pessoas não acreditem no utilitarismo. Bingo!
Já passa da hora de entendermos que o Direito é o Direito. É normativo, tem uma tradição tão autêntica quanto autônoma, e produz proposições verdadeiras que nos tornam muito melhores enquanto sociedade que qualquer postura pragmatista ad hoc.
Estamos no abismo. Mas, se nem tudo vai bem no melhor dos mundos, sempre há uma saída.
Talvez seja uma questão de cultivarmos nosso próprio jardim.
Por Lenio Luiz Streck
Fonte: Conjur
Recebi, nas redes, a imagem ao lado. Trata-se de um flyer no qual um advogado diz prestar consultoria a empresários que, querendo “mais lucro”, podem “demitir seus funcionários” para “contratá-los mais barato [sic]”.
Ao receber, de pronto, convenci-me de que escreveria sobre o assunto. Tenho a sorte de ocupar um lugar sobre o qual recai a difícil tarefa de denunciar esses absurdos que têm sido rotina no Direito. Nem sempre é fácil, mas é bom saber que ainda há espaço para juristas que recusam a complacência.
Enquanto preparava o artigo, contudo, soube que o advogado da imagem divulgou um vídeo em suas redes sociais; vídeo no qual alega tratar-se de uma “sátira”. Foi enfático. Foi sátira. Pois é.
Os mais crédulos acredita(ra)m no advogado. Os céticos, bem, os céticos fazem (ou não fazem) o que os céticos fazem (ou não fazem). A Abrat não gostou nem um pouquinho.
Eu não sou um cético, mas também não entrego minha credulidade tão facilmente. Mas sou prudente. Sou cândido, enfim. Não acho que “tudo vai pelo melhor no melhor dos mundos possíveis”. Mas também não acho que tudo vá pelo pior; acho, tão somente, que “devemos cultivar nosso jardim”. (Aos que não sabem, falo de Cândido, belíssima obra de Voltaire sobre o otimismo e o pessimismo, a religião e o problema do mal — há um programa Direito & Literatura sobre o livro — veja aqui e não precisa ler o livro).
Sátira ou não, não é exatamente esse o ponto. Assim como não quero aqui falar sobre o advogado pessoalmente. Porque, seja como for, e ainda que não seja sátira, tudo isso é só mais um sintoma. Grave sintoma. Sinal dos tempos. Como chegamos nesse ponto?
Um sintoma do abismo em que nos enfiamos a nós próprios.
Porque vejam: o simples fato de não sabermos se se trata de sátira ou não já é, em si, uma prova do nosso fracasso. Exatamente isso. Uma sátira que deixa dúvida se é... uma sátira. Porque, vá lá, sejamos otimistas e tomemos como verdadeiras as palavras do advogado que diz não sustentar esse tipo de mentalidade: ninguém entendeu como sátira — não por menos, o advogado foi correndo dar explicação (no tal flyer, ele colocou seu telefone à disposição e quem sabe não recebeu telefonemas de empresários dispostos a fazer “negócios” com ele? Quem vai saber).
E, uma vez que ninguém entendeu como sátira, significa dizer que um anúncio desses não é só verossímil; é provável. Quando se tem de explicar a piada, é porque não foi bem contada. Ou ela mesma, a piada, é péssima. Imaginem o advogado chegar em audiência e dizer para o juiz: “— Bom dia juiz safado. Qual é a diatribe de hoje?”. O juiz o prende em flagrante e ele diz: “ — Foi uma sátira”. Hum, hum. Ou um médico anunciar: “Antibióticos são uma fraude”. Depois faz um pronunciamento, dizendo: “ — Só fazia uma sátira de uma campanha do Ministério da Saúde”. Hum, hum.
É um típico caso do velho ditado italiano: se non è vero, è ben trovato. Traduzo livremente aqui como “se não é verdade, olha, bem que podia ser”.
Porque essa é nossa situação. Esse é o nosso abismo. Esses são nossos tempos.
Tempos em que é possível demitir pra “contratar mais barato”. O que, aliás, é deduzível da reforma trabalhista, pois não? E isso torna o post do advogado ainda mais perigoso.
Vivemos em tempos em que a advocacia é dominada pela mentalidade do “empreendedorismo”, essa fraude epistêmica que reforça a falácia meritocrática num país em que metade da população não tem esgoto.
Tempos em que uma espécie de darwinismo social emerge no Brasil com ares de novidade (Herbert Spencer falava disso em 1880. Estamos só um pouco atrasados.)
Pois é. Fracassamos.
Fracassamos porque, ora, se o Direito não é capaz de constituir-se enquanto fenômeno autônomo, se o Direito não é capaz de construir uma tradição autêntica a partir da qual seja possível dizer que demitir pra contratar lucrando é objetivamente errado, é objetivamente antijurídico, e isso nada tem a ver com política, o que é mesmo que estamos fazendo aqui?
Ao que parece, estamos fazendo pragmatismo. Utilitarismo. É bom pra economia, certo? É assim que o Direito deve funcionar. Isso que é o moderno, isso que é o novo. Teoria? Moral? Isso não serve pra nada. Calculemos o lucro geral.
O que os gênios (ou jênios) não entendem é que também isso é uma teoria que traz em si uma posição moral. E é uma teoria ruim — porque carente de uma epistemologia que demonstre a superioridade do próprio critério — e uma posição moral errada — porque derrota a si própria. Porque, como diz o velho Bernard Williams, se o utilitarismo está certo, é melhor que as pessoas não acreditem no utilitarismo. E se estiver errado, então é óbvio que é melhor que as pessoas não acreditem no utilitarismo. Isso significa que, qualquer que seja o caso, é melhor que as pessoas não acreditem no utilitarismo. Bingo!
Já passa da hora de entendermos que o Direito é o Direito. É normativo, tem uma tradição tão autêntica quanto autônoma, e produz proposições verdadeiras que nos tornam muito melhores enquanto sociedade que qualquer postura pragmatista ad hoc.
Estamos no abismo. Mas, se nem tudo vai bem no melhor dos mundos, sempre há uma saída.
Talvez seja uma questão de cultivarmos nosso próprio jardim.
Por Lenio Luiz Streck
Fonte: Conjur