goo.gl/76zKVi | Pende de julgamento no Supremo Tribunal Federal a Ação Declaratória de Inconstitucionalidade nº 5.870, que questiona as normas introduzidas na legislação trabalhista impositivas de teto indenizatório para danos morais e extrapatrimoniais nas ações ajuizadas perante a Justiça do Trabalho.
A Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho) queixa-se, com razão, que a tarifação do dano extrapatrimonial, tal como produzida pelos artigos 223-A a 223-G, da Consolidação das Leis do Trabalho, compromete a independência do magistrado, especialmente quando, nos incisos I a IV do parágrafo 1º do artigo 223-G, estabelecem os legisladores limites para a fixação de valores da indenização por dano moral decorrente da relação de trabalho.
Para a entidade, a lei não pode impor limitação ao Poder Judiciário para a fixação de indenização por dano moral, sob pena de limitar o próprio exercício da jurisdição. E não há como negar-lhe apoio.
A ação está com parecer favorável do Ministério Público da União pelo conhecimento e procedência do pedido, distribuída ao Ministro Gilmar Mendes.
A situação bem exprime o grau de fricção entre Legislativo e Judiciário na quadra atual. O Poder Legislativo editou norma limitadora da atuação do juiz. Teve por objetivo expresso desprestigiar o Judiciário Trabalhista, revelar-lhe desconfiança, aproveitando-se da circunstância política e da oportunidade para tentar repelir a imprescindível adoção da teoria da punitivedamageno Brasil, no que tange aos danos morais.Trata-se, pois, de uma norma antijurisprudencial.
Mas o fato é que a lei pavorosa está posta. E em disputa perante o Supremo Tribunal Federal quanto à sua constitucionalidade.
A 53ª Legislatura do país foi marcada por um verdadeiro mar de lama, ao qual se soma, agora, a lama tóxica de rejeitos da mineração de ferro da barragem Mina Feijão.
Não que antes já não se acumulassem incontáveis ilícitos, crimes contra direitos humanos praticados contra trabalhadores e populações atingidas por barragens desse jaez, sob fiscalização de baixa intensidade, para o gáudio de lábias e lobbys que a mineração também produz.
O dramático caso de Brumadinho, de 25 de janeiro de 2019, deplorável por todos os aspectos, lança luz sobre a questão da tarifação dos danos trabalhistas.
Isso porque o rompimento da barragem exemplifica, de forma exponencial, como o legislador se enlameou ao tarifar os danos morais e estabelecer um inadmissível teto para as indenizações por danos extrapatrimoniais.
Os trabalhadores mortos e feridos pela lama tóxica vertida sobre eles por responsabilidade objetiva e indiscutível da empregadora terão, nos termos dos artigos 223-A a 223-G, da Consolidação das Leis do Trabalho, no máximo, deixado às suas famílias o direito a indenizações correspondentes a cinquenta vezes os seus salários e com violação, inclusive, de forma peremptória, de acumulação com outras formas de indenização.
A singela noção de que a indenização deve necessariamente corresponder ao dano imposto, em sua inteira extensão, regra estabelecida pelo artigo 944 do Código Civil, deveria ser bastante ao convencimento de que a norma introduzida na legislação trabalhista carece de suporte científico, lógico, sociológico, filosófico, moral, jurídico ou até econômico. É lama legislativa.
A situação cria tantos e tais constrangimentos que não seria impossível cogitar, em acidentes tais, que empresas torçam para que as vítimas sejam seus próprios empregados e não clientes, terceiros, circunstantes eventuais ou meros transeuntes. Afinal, o homicídio dos empregados será sempre menos oneroso do que os de quaisquer outras pessoas.
Registros póstumos de contratos de trabalho, assim, viriam a ser “lucrativos”. Deslocariam competências, propiciariam ao menos uma discussão por diversas instâncias acerca dos limites de indenização.
Permite-se até imaginar a situação grotesca, mas reveladora da histeria jurídica promovida pela “reforma” trabalhista, de a Vale do Rio Doce buscar a declaração de que as pessoas que estivessem trabalhando como “meros” prestadores de serviço, fossem, de fato, seus empregados, pois, assim, as indenizações devidas seriam sensivelmente reduzidas.
Independentemente da possibilidade/dever de cada magistrado de exercer o controle de ofício de convencionalidade e de constitucionalidade das normas, melhoraria muito o ambiente jurídico se o Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição da República, exercesse com brevidade o seu papel constitucional de proteger a Lei Maior para afastar de vez a imposição desses limites inadmissíveis.
No caso de Brumadinho, uma conclusão é inequívoca. Mantida a norma pelo Supremo Tribunal Federal, em razão do advento da “reforma trabalhista”, terá sido mais barato matar trabalhadores em Brumadinho do que em Mariana.
O minério de ferro hoje vale mais. Houve apreciação da commodity no interregno entre as rupturas das duas barragens. No mesmo período, a vida dos trabalhadores foi depreciada. Vale menos.
O Supremo Tribunal Federal, que em relação aos danos morais derivados de ofensa pela imprensa já descartou a viabilidade jurídica de tetos indenizatórios, tem a oportunidade e a responsabilidade – e nós, cidadãos, o dever de cobrar – de expungir em definitivo a regra que paira sobre os trabalhadores vítimas, sobreviventes e mortos, em razão de danos derivados das inadmissíveis condições de trabalho.
O acontecimento, absolutamente deplorável, é de ser colhido como lição para melhoria de todas as nossas circunstâncias: para os cidadãos tomarem consciência de seu dever de exigir das empresas e do Estado o cumprimento de seus deveres; para as instituições públicas e privadas, a busca das intersecções do evento com os seus propósitos institucionais, dele haurindo o conhecimento para a imposição de melhorias.
A Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas emitiu uma nota que bem gostaria subscrever:
"NOTA DE SOLIDARIEDADE ÀS VÍTIMAS DA MINERAÇÃO BRASILEIRA
O que vale um Himalaia de minério de ferro se não há alpinismo da alma, nem se eleva o espírito de quem lucra?
Quando uma barragem de dejetos e rejeitos de mineração se desaba, rompem-se mais que ligas de concreto.
É a liga social que se esboroa.
As vítimas preferenciais são os trabalhadores, as populações lindeiras, a natureza, a biodiversidade. Mas somos todos vítimas de quem pouco vale.
O evento, que de acidente nada tem, não pode ficar impune.
O poder privado não pode ser imune.
Mal a lama lá de Mariana se assenta, depois de molestar as águas do Rio que era Doce, as matas, as almas, a lamacenta montanha de dejetos desce o vale e aplaina destrutiva sobre a vida, as sobras do que soçobra.
Maladia do lucro, do ferro e cobre a qualquer cobro, da má gestão, da má expressão que diz acidente o que bastaria dizer indecente.
As mortes decorrentes não são ocaso de vida pelo acaso da lida.
A empresa vale-se da mal-empregada expressão acidente. Incidente indecente, reincidente, deixanagente a sensação de sociedade impotente.
A solução, no entanto, vai além da limpeza da lama. Desenlamear o sítio, os locais, não basta.
Tiremos a lama das almas brasileiras...
Que “acidentes” reincidentes passem a ser chamados pelo que são: ilicitudes reiteradas de quem não vale a lama que coleciona... Delinquência.
Toda a solidariedade a quem a merece. Para quem a solidariedade vale...
A ABRAT se solidariza com as vítimas, seus familiares, com o povo de Brumadinho, das Minas Gerais, os brasileiros...
O episódio revela à perfeição que o peso da lama de Brumadinho recai, agora, sobre os ombros das ministras e dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Não se admita que a condição de trabalhador seja redutora de quanto uma pessoa vale!
Não permitamos que a Carteira de Trabalho e Previdência Social assinada seja o passaporte para indenizações depreciadas, para o desapreço à vida, para a naturalização, a banalização e o barateamento da morte.
Se antes a situação já era ingente, demandando tutela imediata da questão pelo Supremo Tribunal Federal, agora é emergencial.
A não ser que queiramos afirmar que um trabalhador, por ser trabalhador, valha menos do que qualquer outro ser humano, inclusive de quem voluntariamente não trabalha.
Que a lama de Brumadinho não abrume o Supremo Tribunal Federal e permita que se acolham as razões da ADI 5870, inclusive liminarmente. Só assim a classe trabalhadora não ficaria privada até mesmo da garantia de igualdade entre os seres humanos.
Todo o respeito às vítimas!
Luís Carlos Moro é advogado trabalhista, secretário-geral da Associação Americana de Juristas, Presidente da Delegação Brasileira da Associação Luso Brasileira de Juristas do Trabalho e ex-presidente da Associação dos Advogados Trabalhistas de São Paulo, da Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas e da Associação Latinoamericana de Advogados Trabalhistas.
A Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho) queixa-se, com razão, que a tarifação do dano extrapatrimonial, tal como produzida pelos artigos 223-A a 223-G, da Consolidação das Leis do Trabalho, compromete a independência do magistrado, especialmente quando, nos incisos I a IV do parágrafo 1º do artigo 223-G, estabelecem os legisladores limites para a fixação de valores da indenização por dano moral decorrente da relação de trabalho.
Para a entidade, a lei não pode impor limitação ao Poder Judiciário para a fixação de indenização por dano moral, sob pena de limitar o próprio exercício da jurisdição. E não há como negar-lhe apoio.
A ação está com parecer favorável do Ministério Público da União pelo conhecimento e procedência do pedido, distribuída ao Ministro Gilmar Mendes.
A situação bem exprime o grau de fricção entre Legislativo e Judiciário na quadra atual. O Poder Legislativo editou norma limitadora da atuação do juiz. Teve por objetivo expresso desprestigiar o Judiciário Trabalhista, revelar-lhe desconfiança, aproveitando-se da circunstância política e da oportunidade para tentar repelir a imprescindível adoção da teoria da punitivedamageno Brasil, no que tange aos danos morais.Trata-se, pois, de uma norma antijurisprudencial.
Mas o fato é que a lei pavorosa está posta. E em disputa perante o Supremo Tribunal Federal quanto à sua constitucionalidade.
A 53ª Legislatura do país foi marcada por um verdadeiro mar de lama, ao qual se soma, agora, a lama tóxica de rejeitos da mineração de ferro da barragem Mina Feijão.
Não que antes já não se acumulassem incontáveis ilícitos, crimes contra direitos humanos praticados contra trabalhadores e populações atingidas por barragens desse jaez, sob fiscalização de baixa intensidade, para o gáudio de lábias e lobbys que a mineração também produz.
O dramático caso de Brumadinho, de 25 de janeiro de 2019, deplorável por todos os aspectos, lança luz sobre a questão da tarifação dos danos trabalhistas.
Isso porque o rompimento da barragem exemplifica, de forma exponencial, como o legislador se enlameou ao tarifar os danos morais e estabelecer um inadmissível teto para as indenizações por danos extrapatrimoniais.
Os trabalhadores mortos e feridos pela lama tóxica vertida sobre eles por responsabilidade objetiva e indiscutível da empregadora terão, nos termos dos artigos 223-A a 223-G, da Consolidação das Leis do Trabalho, no máximo, deixado às suas famílias o direito a indenizações correspondentes a cinquenta vezes os seus salários e com violação, inclusive, de forma peremptória, de acumulação com outras formas de indenização.
A singela noção de que a indenização deve necessariamente corresponder ao dano imposto, em sua inteira extensão, regra estabelecida pelo artigo 944 do Código Civil, deveria ser bastante ao convencimento de que a norma introduzida na legislação trabalhista carece de suporte científico, lógico, sociológico, filosófico, moral, jurídico ou até econômico. É lama legislativa.
A situação cria tantos e tais constrangimentos que não seria impossível cogitar, em acidentes tais, que empresas torçam para que as vítimas sejam seus próprios empregados e não clientes, terceiros, circunstantes eventuais ou meros transeuntes. Afinal, o homicídio dos empregados será sempre menos oneroso do que os de quaisquer outras pessoas.
Registros póstumos de contratos de trabalho, assim, viriam a ser “lucrativos”. Deslocariam competências, propiciariam ao menos uma discussão por diversas instâncias acerca dos limites de indenização.
Permite-se até imaginar a situação grotesca, mas reveladora da histeria jurídica promovida pela “reforma” trabalhista, de a Vale do Rio Doce buscar a declaração de que as pessoas que estivessem trabalhando como “meros” prestadores de serviço, fossem, de fato, seus empregados, pois, assim, as indenizações devidas seriam sensivelmente reduzidas.
Independentemente da possibilidade/dever de cada magistrado de exercer o controle de ofício de convencionalidade e de constitucionalidade das normas, melhoraria muito o ambiente jurídico se o Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição da República, exercesse com brevidade o seu papel constitucional de proteger a Lei Maior para afastar de vez a imposição desses limites inadmissíveis.
No caso de Brumadinho, uma conclusão é inequívoca. Mantida a norma pelo Supremo Tribunal Federal, em razão do advento da “reforma trabalhista”, terá sido mais barato matar trabalhadores em Brumadinho do que em Mariana.
O minério de ferro hoje vale mais. Houve apreciação da commodity no interregno entre as rupturas das duas barragens. No mesmo período, a vida dos trabalhadores foi depreciada. Vale menos.
O Supremo Tribunal Federal, que em relação aos danos morais derivados de ofensa pela imprensa já descartou a viabilidade jurídica de tetos indenizatórios, tem a oportunidade e a responsabilidade – e nós, cidadãos, o dever de cobrar – de expungir em definitivo a regra que paira sobre os trabalhadores vítimas, sobreviventes e mortos, em razão de danos derivados das inadmissíveis condições de trabalho.
O acontecimento, absolutamente deplorável, é de ser colhido como lição para melhoria de todas as nossas circunstâncias: para os cidadãos tomarem consciência de seu dever de exigir das empresas e do Estado o cumprimento de seus deveres; para as instituições públicas e privadas, a busca das intersecções do evento com os seus propósitos institucionais, dele haurindo o conhecimento para a imposição de melhorias.
A Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas emitiu uma nota que bem gostaria subscrever:
"NOTA DE SOLIDARIEDADE ÀS VÍTIMAS DA MINERAÇÃO BRASILEIRA
O que vale um Himalaia de minério de ferro se não há alpinismo da alma, nem se eleva o espírito de quem lucra?
Quando uma barragem de dejetos e rejeitos de mineração se desaba, rompem-se mais que ligas de concreto.
É a liga social que se esboroa.
As vítimas preferenciais são os trabalhadores, as populações lindeiras, a natureza, a biodiversidade. Mas somos todos vítimas de quem pouco vale.
O evento, que de acidente nada tem, não pode ficar impune.
O poder privado não pode ser imune.
Mal a lama lá de Mariana se assenta, depois de molestar as águas do Rio que era Doce, as matas, as almas, a lamacenta montanha de dejetos desce o vale e aplaina destrutiva sobre a vida, as sobras do que soçobra.
Maladia do lucro, do ferro e cobre a qualquer cobro, da má gestão, da má expressão que diz acidente o que bastaria dizer indecente.
As mortes decorrentes não são ocaso de vida pelo acaso da lida.
A empresa vale-se da mal-empregada expressão acidente. Incidente indecente, reincidente, deixanagente a sensação de sociedade impotente.
A solução, no entanto, vai além da limpeza da lama. Desenlamear o sítio, os locais, não basta.
Tiremos a lama das almas brasileiras...
Que “acidentes” reincidentes passem a ser chamados pelo que são: ilicitudes reiteradas de quem não vale a lama que coleciona... Delinquência.
Toda a solidariedade a quem a merece. Para quem a solidariedade vale...
A ABRAT se solidariza com as vítimas, seus familiares, com o povo de Brumadinho, das Minas Gerais, os brasileiros...
O episódio revela à perfeição que o peso da lama de Brumadinho recai, agora, sobre os ombros das ministras e dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Não se admita que a condição de trabalhador seja redutora de quanto uma pessoa vale!
Não permitamos que a Carteira de Trabalho e Previdência Social assinada seja o passaporte para indenizações depreciadas, para o desapreço à vida, para a naturalização, a banalização e o barateamento da morte.
Se antes a situação já era ingente, demandando tutela imediata da questão pelo Supremo Tribunal Federal, agora é emergencial.
A não ser que queiramos afirmar que um trabalhador, por ser trabalhador, valha menos do que qualquer outro ser humano, inclusive de quem voluntariamente não trabalha.
Que a lama de Brumadinho não abrume o Supremo Tribunal Federal e permita que se acolham as razões da ADI 5870, inclusive liminarmente. Só assim a classe trabalhadora não ficaria privada até mesmo da garantia de igualdade entre os seres humanos.
Todo o respeito às vítimas!
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Luís Carlos Moro é advogado trabalhista, secretário-geral da Associação Americana de Juristas, Presidente da Delegação Brasileira da Associação Luso Brasileira de Juristas do Trabalho e ex-presidente da Associação dos Advogados Trabalhistas de São Paulo, da Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas e da Associação Latinoamericana de Advogados Trabalhistas.