goo.gl/pejEg8 | Dentre as alterações de processo penal propostas pelo Ministério da Justiça, pretende-se impor a imediata submissão do acusado para julgamento pelo tribunal do júri após a decisão de pronúncia, com o escopo de dar efetividade ao julgamento. Para isso, busca-se alterar os artigos 421, caput e parágrafo 1º e 584, caput e parágrafo 2º do CPP:
"Art. 421. Proferida a decisão de pronúncia e de eventuais embargos de declaração, os autos serão encaminhados ao juiz-presidente do Tribunal do Júri, independentemente da interposição de outros recursos, que não obstarão o julgamento.
§ 1º Havendo circunstância superveniente que altere a classificação do crime, o juiz ordenará a remessa dos autos ao Ministério Público.”
"Art. 584. Os recursos terão efeito suspensivo nos casos de perda da fiança, de concessão de livramento condicional e dos incisos XV, XVII e XXIV do art. 581.
§ 2º O recurso da pronúncia não tem efeito suspensivo, devendo ser processado através de cópias das peças principais dos autos ou, no caso de processo eletrônico, dos arquivos”.
Contudo, a proposta legislativa não é adequada à Constituição Federal. Em quatro equívocos a serem especificados, a proposta viola o devido processo legal, a presunção de inocência e o direito ao recurso. Além disso, o quarto equívoco destacado comprova que a proposta do Ministério da Justiça está em antítese à real efetividade dos julgamentos do recurso em sentido estrito, conforme provamos com pesquisa empírica por amostragem no âmbito do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
1. O primeiro equívoco da proposta está no desvio de finalidade, em nome da eficácia do Direito Penal. O devido processo legal não permite que, a pretexto de julgamento céleres, despreze-se que a demora jurisdicional está na tramitação dos casos nas cortes superiores. Não teremos julgamentos justos mais céleres, apenas mais condenações açodadas, o que não pode ser pactuado.
2. O segundo equívoco da proposta está naquilo que não é dito, mas implicitamente assumido, consistente na ideia de que o “princípio do in dubio pro societate” implica um restrito juízo de revisão das decisões que encerram o primeiro procedimento do júri, como a pronúncia, e legitimaria o envio do caso para julgamento pelo plenário do júri, mesmo sem preclusão da decisão. Em suma, a ideia desse julgamento açodado é prestigiar a decisão do juiz que conduziu a primeira fase do procedimento e dar efetividade, mitigando os efeitos do juízo de revisão.
Contudo, a função desta decisão final da primeira fase do júri é justamente evitar acusações infundadas, por maior que seja o esforço discursivo em torno da “soberania do júri”. A expansão da soberania do júri pelo in dubio pro societate não nega a presunção de inocência nem o devido processo legal, muito menos o direito ao recurso. A soberania do júri diz respeito à competência e limites ao poder de revisar as decisões tomadas no plenário do tribunal do júri e nada tem a ver com a legitimidade da decisão de pronúncia.
3. O terceiro equívoco da proposta está no patente risco de perda do objeto dos recursos em sentido estrito que questionem a decisão de pronúncia. Em termos de otimização dos trabalhos jurisdicionais, essa proposta será prejudicial em relação ao tempo e recursos gastos na análise dos recursos que serão esvaziados pelo julgamento no tribunal do júri.
Isso porque, caso o acusado seja julgado pelo tribunal do júri antes da análise do recurso em sentido estrito, este perderá o objeto, pois a decisão interlocutória impugnada será superada pela decisão de mérito da causa, sendo que o acusado já poderá sair preso do plenário do júri. Na prática, significa negar materialmente o direito ao recurso, pois, embora formalmente presente no procedimento, não haverá efetividade ante a perda do objeto com a condenação ou absolvição pelo tribunal popular.
4. Quarto lugar, a proposta parte da equivocada premissa de que as decisões de pronúncia, via de regra, são produzidas de maneira válida, o que também viola o devido processo legal e o direito ao recurso, pretendendo imunizar as decisões do efetivo juízo de revisão.
Em pesquisa empírica realizada por amostragem no âmbito do Tribunal de Justiça gaúcho, através do site[1], levantou-se 100 recursos em sentido estrito julgados entre 24/5/2018 e 13/2/2019[2], onde se constatou que 55%[3] dos recursos eram acolhidos para alterar o conteúdo da decisão tomada no fim da primeira fase do tribunal do júri[4]. O conteúdo dos acórdãos variava entre questões periféricas no julgamento[5], retirada de qualificadoras[6], desclassificação[7], despronúncia[8] e até mesmo alteração da decisão que desclassificava a imputação para pronunciar o acusado[9].
Todos esses apontamentos nos levam à conclusão de que a proposta apresentada pelo Ministério da Justiça de alteração das regras do tribunal do júri, no tocante à possibilidade de julgamento do processo independente do recurso em sentido estrito contra a decisão de pronúncia, deve ser rejeitada, pois é inconstitucional e está desacompanhada de justificativa válida, conforme a pesquisa empírica demonstra o alto índice de alteração das decisões, que acarretarão a necessidade de realização de novo júri.
____________________________________
[1] Link: www.tjrs.jus.br, na pesquisa “Jurisprudência”. Acessado em 13.fev.2019.
[2] O prazo foi escolhido porque esse interregno temporal permitiu alcançar a quantidade aproximada 100 julgamentos (a pesquisa constatou 109, dentre os quais 108 eram referentes ao recurso em sentido estrito contra decisão que encerrava a primeira fase do júri e 01 atacava exclusivamente a decisão que revogou a prisão preventiva), facilitando a conversão em porcentagem. Como termos de pesquisa foram utilizadas as seguintes palavras-chave: pronúncia ou recurso provido, parcialmente provido, desprovido, improvido.
[3] Acórdãos compilados e disponibilizados para acesso no seguinte link: https://drive.google.com/drive/folders/1rqS_b3kdwszhPaaUhYw8AbTGBiy4uPq1?usp=sharing.
[4] Dentre esses dados, é importante destacar que diversas pessoas foram julgadas ao mesmo tempo, construindo-se um acórdão com abrangência e efeitos em diversas partes. Também é importante referir que alguns julgamentos desproveram o recurso em sentido estrito, mas afastaram qualificadoras de ofício, o que alterou substancialmente a decisão de pronúncia e, por isso, foram incluídas na estatística do acolhimento.
[5] Deferimento do benefício da assistência judiciária gratuita: um caso, RSE 70079899126.
[6] Exemplo: Recurso em Sentido Estrito 70078464286.
[7] Exemplo: Recurso em Sentido Estrito 70079011292.
[8] Exemplo: Recurso em Sentido Estrito 70074479502.
[9] Exemplo: Recurso em Sentido Estrito 70078334125.
Vítor Paczek é advogado, mestre e especialista em Ciências Criminais pela PUCRS.
Aury Lopes Jr. é advogado, doutor em Direito Processual Penal e professor titular da PUCRS.
Fonte: Conjur
"Art. 421. Proferida a decisão de pronúncia e de eventuais embargos de declaração, os autos serão encaminhados ao juiz-presidente do Tribunal do Júri, independentemente da interposição de outros recursos, que não obstarão o julgamento.
§ 1º Havendo circunstância superveniente que altere a classificação do crime, o juiz ordenará a remessa dos autos ao Ministério Público.”
"Art. 584. Os recursos terão efeito suspensivo nos casos de perda da fiança, de concessão de livramento condicional e dos incisos XV, XVII e XXIV do art. 581.
§ 2º O recurso da pronúncia não tem efeito suspensivo, devendo ser processado através de cópias das peças principais dos autos ou, no caso de processo eletrônico, dos arquivos”.
Contudo, a proposta legislativa não é adequada à Constituição Federal. Em quatro equívocos a serem especificados, a proposta viola o devido processo legal, a presunção de inocência e o direito ao recurso. Além disso, o quarto equívoco destacado comprova que a proposta do Ministério da Justiça está em antítese à real efetividade dos julgamentos do recurso em sentido estrito, conforme provamos com pesquisa empírica por amostragem no âmbito do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
1. O primeiro equívoco da proposta está no desvio de finalidade, em nome da eficácia do Direito Penal. O devido processo legal não permite que, a pretexto de julgamento céleres, despreze-se que a demora jurisdicional está na tramitação dos casos nas cortes superiores. Não teremos julgamentos justos mais céleres, apenas mais condenações açodadas, o que não pode ser pactuado.
2. O segundo equívoco da proposta está naquilo que não é dito, mas implicitamente assumido, consistente na ideia de que o “princípio do in dubio pro societate” implica um restrito juízo de revisão das decisões que encerram o primeiro procedimento do júri, como a pronúncia, e legitimaria o envio do caso para julgamento pelo plenário do júri, mesmo sem preclusão da decisão. Em suma, a ideia desse julgamento açodado é prestigiar a decisão do juiz que conduziu a primeira fase do procedimento e dar efetividade, mitigando os efeitos do juízo de revisão.
Contudo, a função desta decisão final da primeira fase do júri é justamente evitar acusações infundadas, por maior que seja o esforço discursivo em torno da “soberania do júri”. A expansão da soberania do júri pelo in dubio pro societate não nega a presunção de inocência nem o devido processo legal, muito menos o direito ao recurso. A soberania do júri diz respeito à competência e limites ao poder de revisar as decisões tomadas no plenário do tribunal do júri e nada tem a ver com a legitimidade da decisão de pronúncia.
3. O terceiro equívoco da proposta está no patente risco de perda do objeto dos recursos em sentido estrito que questionem a decisão de pronúncia. Em termos de otimização dos trabalhos jurisdicionais, essa proposta será prejudicial em relação ao tempo e recursos gastos na análise dos recursos que serão esvaziados pelo julgamento no tribunal do júri.
Isso porque, caso o acusado seja julgado pelo tribunal do júri antes da análise do recurso em sentido estrito, este perderá o objeto, pois a decisão interlocutória impugnada será superada pela decisão de mérito da causa, sendo que o acusado já poderá sair preso do plenário do júri. Na prática, significa negar materialmente o direito ao recurso, pois, embora formalmente presente no procedimento, não haverá efetividade ante a perda do objeto com a condenação ou absolvição pelo tribunal popular.
4. Quarto lugar, a proposta parte da equivocada premissa de que as decisões de pronúncia, via de regra, são produzidas de maneira válida, o que também viola o devido processo legal e o direito ao recurso, pretendendo imunizar as decisões do efetivo juízo de revisão.
Em pesquisa empírica realizada por amostragem no âmbito do Tribunal de Justiça gaúcho, através do site[1], levantou-se 100 recursos em sentido estrito julgados entre 24/5/2018 e 13/2/2019[2], onde se constatou que 55%[3] dos recursos eram acolhidos para alterar o conteúdo da decisão tomada no fim da primeira fase do tribunal do júri[4]. O conteúdo dos acórdãos variava entre questões periféricas no julgamento[5], retirada de qualificadoras[6], desclassificação[7], despronúncia[8] e até mesmo alteração da decisão que desclassificava a imputação para pronunciar o acusado[9].
Todos esses apontamentos nos levam à conclusão de que a proposta apresentada pelo Ministério da Justiça de alteração das regras do tribunal do júri, no tocante à possibilidade de julgamento do processo independente do recurso em sentido estrito contra a decisão de pronúncia, deve ser rejeitada, pois é inconstitucional e está desacompanhada de justificativa válida, conforme a pesquisa empírica demonstra o alto índice de alteração das decisões, que acarretarão a necessidade de realização de novo júri.
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[1] Link: www.tjrs.jus.br, na pesquisa “Jurisprudência”. Acessado em 13.fev.2019.
[2] O prazo foi escolhido porque esse interregno temporal permitiu alcançar a quantidade aproximada 100 julgamentos (a pesquisa constatou 109, dentre os quais 108 eram referentes ao recurso em sentido estrito contra decisão que encerrava a primeira fase do júri e 01 atacava exclusivamente a decisão que revogou a prisão preventiva), facilitando a conversão em porcentagem. Como termos de pesquisa foram utilizadas as seguintes palavras-chave: pronúncia ou recurso provido, parcialmente provido, desprovido, improvido.
[3] Acórdãos compilados e disponibilizados para acesso no seguinte link: https://drive.google.com/drive/folders/1rqS_b3kdwszhPaaUhYw8AbTGBiy4uPq1?usp=sharing.
[4] Dentre esses dados, é importante destacar que diversas pessoas foram julgadas ao mesmo tempo, construindo-se um acórdão com abrangência e efeitos em diversas partes. Também é importante referir que alguns julgamentos desproveram o recurso em sentido estrito, mas afastaram qualificadoras de ofício, o que alterou substancialmente a decisão de pronúncia e, por isso, foram incluídas na estatística do acolhimento.
[5] Deferimento do benefício da assistência judiciária gratuita: um caso, RSE 70079899126.
[6] Exemplo: Recurso em Sentido Estrito 70078464286.
[7] Exemplo: Recurso em Sentido Estrito 70079011292.
[8] Exemplo: Recurso em Sentido Estrito 70074479502.
[9] Exemplo: Recurso em Sentido Estrito 70078334125.
Vítor Paczek é advogado, mestre e especialista em Ciências Criminais pela PUCRS.
Aury Lopes Jr. é advogado, doutor em Direito Processual Penal e professor titular da PUCRS.
Fonte: Conjur