goo.gl/FKaxQ3 | Uma das mais relevantes pautas da República ultimamente é mesmo o ativismo judicial que vem se praticando, às largas, sobretudo a partir da dicção do Supremo Tribunal Federal em matérias ordinariamente reservadas ao poder constituinte derivado. As incursões, por vezes, se atrevem a adjudicar o próprio poder constituinte originário.
Não se trata, portanto, de um exercício claramente autorizado, a exemplo da ação regulatória a que se determina o STF quando chamado a fazê-lo em sede de Mandado de Injunção (artigo 5º, inciso LXXI, Constituição Federal) ou no âmbito dos demais tipos de veredicto de jurisdição interpessoal ou constitucionalizada, ou ainda na elaboração de súmulas vinculantes.
Acontece que nenhum juiz tem o direito de, a despeito da imunidade judiciária que predica o seu exercício, conspirar contra a Constituição da República, a qual ele jurou cumprir, velar e fazer cumprir. Com efeito, todo o sistema jurídico sofre abalos e a República desmorona quando a Suprema Corte, em especial, se descaracteriza como órgão constituído (não constituinte) do Poder Judiciário.
O ativismo judicial, nestes termos, se expressa mediante forte carga política, um certo pendor metassistemático se manifesta enfaticamente e se torna mais perceptível do que o emprego previsível da tecnicalidade subsuntiva que o exercício jurisdicional, em síntese, deve descrever para realizar sua função institucional clássica.
No limite, o ativismo judicial não encontra pauta sequer na cognição dos objetos, na sua ordem natural, mas na espiritualidade do juiz, para o bem ou para o mal. É por isso que representa um perigo sério de imprevisibilidades na arte de produzir decisões, sobretudo ao nível da mais elevada instância da Administração da Justiça e nada obstante a universalização da matéria relacionada aos Direitos Humanos, porque, doravante, em certos casos já não cabe ao Supremo Tribunal Federal o monopólio da "última palavra", o direito de "errar por último", conforme uma célebre locução atribuída ao gênio de Rui Barbosa, pelo seu maior discípulo, João Mangabeira.
É o caso, por exemplo, das cláusulas fundamentais estabelecidas pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, assinada em Nova York em 2006 e ratificada no Brasil pelo Decreto Legislativo nº 186, de Decreto Federal de nº 6.949, de 25 de agosto de 2009.
Toda essa chancela não exclui, além de tudo, o denominado Protocolo Facultativo à Convenção de Nova York que, pela mesma introjeção normativa, dispõe sobre a competência do Comitê sediado na ONU (Tribunal Internacional) para dicção final acerca das violações às disposições da Convenção respectiva pelo Estado-parte correspondente, esgotados todos os recursos internos disponíveis (artigos 1 e 2 do protocolo).
Matérias não previstas constitucionalmente como a exclusão de ilicitude para a prática de aborto em decorrência de deficiência (anencefalia, zika vírus etc) podem ser, ao fim e ao cabo, desaguadas naquele Tribunal Internacional com a finalidade de resgatar a Convenção de Nova Iorque de eventuais malversações produzidas no âmbito interno dos Estados-partes. Observe-se que as disposições da referida Convenção são, ademais, cláusulas pétreas no Brasil (artigo 5°, § 3°, da Constituição Federal).
No mesmo sentido, toda manifestação judicial que cria tipo penal à revelia do Congresso, ou aplica lei penal preexistente por extensão analógica e mediante artifícios hermenêuticos que não respondem ao sistema jurídico em vigor, é frontalmente contrária ao paradigma constitucional da reserva legal estabelecida como cláusula pétrea na Carta Política (artigo 5°, inciso XXXIX).
Essa conduta disfuncional, além do mais, pode revelar ação dirigida a subverter o sistema jurídico com espeque na ordem constitucional expressa da qual juiz algum tem o poder de negligenciar. Antes o contrário, é seu dever funcional guarnecê-la e aplicá-la incondicionalmente, jamais revogá-la, no todo ou em parte, pela razão de algum contorcionismo interpretativo de ocasião que, sobre extrapolar os limites formais do que lhe fora autorizado pelo ordenamento jurídico, reflete também uma clara conveniência política substitutiva do poder constituinte.
A propósito disto, toda falta de consciência de limites é vício radical que torna imprestável o agente de Estado quanto ao exercício das atribuições de competência que lhe foram confiadas igualmente. Um tal exercício é, no sentido de Norberto Bobbio (“Teoria do Ordenamento Jurídico”), antinônimo da ordem jurídica e atenta contra a estabilidade das Instituições da República, quer a atuação resulte de ignorância técnica, quer provenha de motivação decidida nessa mesma direção antinômica da ordem constitucional e legal.
Nesses casos, parece evidente que ou o sistema jurídico se corrige autopoieticamente, chamando à razão os responsáveis pelas variações incompatíveis com a ordem constitucional (“impeachment”, procedimentos disciplinares, substituições...) e reorientando suas decisões atípicas (recursos, decretos-legislativos, denúncia internacional...), ou se estará desconstruindo a passos largos o Estado de Direito sob o qual a Nação supõe estar submetida.
Fora da previsão constitucional, portanto, todo ativismo é um exercício arbitrário de razões próprias (metajurídicas) e as suas decisões, efeitos dessa espiritualização que não podem ser tomados como produto de Estado.
Jamais esquecer que a interpretação comporta duas fases distintas que formam as atribuições de um julgador: a) reconhecer e identificar um problema, conforme a sua própria natureza e valores associados; b) aplicar a Ordem Jurídica ajustando esse fato ao modelo preexistente, subsumindo-o a este.
Desse modo, na identificação do problema, o juiz emprega uma plêiade de conhecimentos, conforme a natureza dos fatos descritos no mesmo problema e em nada que lhe seja estranho ou sobreexcedente do ponto de vista lógico: na subsunção o juiz, outrossim, desproblematiza-o. O positivismo jurídico, pois, não é somente o mero emprego de um raciocínio reprodutivo (lógico-formal), baseado na literalidade das normas jurídicas.
Para ser bom juiz basta ser escravo das leis. Elas formam o "círculo de giz" dentro do qual é permitido ao juiz substancialmente atuar. E deve fazê-lo com liberdade e motivação técnica. Fora disso, sua corporiedade assume o destino da própria autossuficiência e deixa de servir ao Estado, desnaturado-se a si mesmo enquanto agente político próprio.
Quem as produz, todavia, tem outro papel no Estado de Direito baseado no sistema da tripartipação dos poderes. Não fosse para resultar de um exercício organizado e autocontrolado, o poder seria como que messiânico. E, ainda que embalados por algum "revival" ou modismo coimbrão, os juízes não são deuses!
Observa-se da realidade institucional e cultural brasileira que estamos num momento em que o Direito se esfacelou por falta de reverência do Poder Judiciário à lei. É uma impossibilidade lógica o magistrado em ofício se arrogar dono do sentido da lei. A linguagem, como bem se sabe, é uma construção sociocultural, que nos impele a segui-la enquanto indivíduos dotados de razão (inteligência objetiva).
Lamentavelmente, o Poder Judiciário perdeu esse escrúpulo há muito, e vem fazendo escola. A culpa disso é induvidosamente da doutrina e do ensino jurídicos, que são superficiais e caudatários da jurisprudência dos tribunais, cada vez mais envolvidos nos modismos da hora, nos ideologismos sociais e de costumes e nas idiossincrasias do poder político, ao invés de se lhe servirem de controle epistemológico, quando é o caso.
De fato, juízes têm responsabilidade política, além de jurídica e social (Mauro Capelletti), mas no sentido de entregar a concretização das escolhas do legislador, sobretudo do constituinte, a quem tem seus direitos violados ou ameaçados de violação. É nessa atitude em que repousa a legitimidade e a razão de ser da atividade judicial.
Essa lição já é velha, contudo. Ocorre que, no Brasil, o poder dos estamentos/corporações é enorme, inclusive o das carreiras jurídicas, circunstância que corrompe o Direito em prejuízo da isonomia e da segurança jurídica de que tanto necessita o país, em tudo.
Assim sendo, é sempre arbitrária a atitude hermenêutica que não encontra limites no seu próprio objeto, assim material quanto instrumentalmente. Que não se encontra na plataforma jurídico-normativa precedente, mal dissimulada pela vacuidade de expressões do tipo "interpretação conforme" a Constituição, esta que é sua razão e fundamento mesmo de ser e de agir.
É desse modo que o Estado de Direito há de prevalecer também às idiossincrasias e caprichos de seus próprios agentes.
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Roberto Wanderley Nogueira é juiz federal em Recife, doutor em Direito pela UFPE, professor da Faculdade de Direito do Recife (UFPE) e da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap).
Fonte: Conjur
Não se trata, portanto, de um exercício claramente autorizado, a exemplo da ação regulatória a que se determina o STF quando chamado a fazê-lo em sede de Mandado de Injunção (artigo 5º, inciso LXXI, Constituição Federal) ou no âmbito dos demais tipos de veredicto de jurisdição interpessoal ou constitucionalizada, ou ainda na elaboração de súmulas vinculantes.
Acontece que nenhum juiz tem o direito de, a despeito da imunidade judiciária que predica o seu exercício, conspirar contra a Constituição da República, a qual ele jurou cumprir, velar e fazer cumprir. Com efeito, todo o sistema jurídico sofre abalos e a República desmorona quando a Suprema Corte, em especial, se descaracteriza como órgão constituído (não constituinte) do Poder Judiciário.
O ativismo judicial, nestes termos, se expressa mediante forte carga política, um certo pendor metassistemático se manifesta enfaticamente e se torna mais perceptível do que o emprego previsível da tecnicalidade subsuntiva que o exercício jurisdicional, em síntese, deve descrever para realizar sua função institucional clássica.
No limite, o ativismo judicial não encontra pauta sequer na cognição dos objetos, na sua ordem natural, mas na espiritualidade do juiz, para o bem ou para o mal. É por isso que representa um perigo sério de imprevisibilidades na arte de produzir decisões, sobretudo ao nível da mais elevada instância da Administração da Justiça e nada obstante a universalização da matéria relacionada aos Direitos Humanos, porque, doravante, em certos casos já não cabe ao Supremo Tribunal Federal o monopólio da "última palavra", o direito de "errar por último", conforme uma célebre locução atribuída ao gênio de Rui Barbosa, pelo seu maior discípulo, João Mangabeira.
É o caso, por exemplo, das cláusulas fundamentais estabelecidas pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, assinada em Nova York em 2006 e ratificada no Brasil pelo Decreto Legislativo nº 186, de Decreto Federal de nº 6.949, de 25 de agosto de 2009.
Toda essa chancela não exclui, além de tudo, o denominado Protocolo Facultativo à Convenção de Nova York que, pela mesma introjeção normativa, dispõe sobre a competência do Comitê sediado na ONU (Tribunal Internacional) para dicção final acerca das violações às disposições da Convenção respectiva pelo Estado-parte correspondente, esgotados todos os recursos internos disponíveis (artigos 1 e 2 do protocolo).
Matérias não previstas constitucionalmente como a exclusão de ilicitude para a prática de aborto em decorrência de deficiência (anencefalia, zika vírus etc) podem ser, ao fim e ao cabo, desaguadas naquele Tribunal Internacional com a finalidade de resgatar a Convenção de Nova Iorque de eventuais malversações produzidas no âmbito interno dos Estados-partes. Observe-se que as disposições da referida Convenção são, ademais, cláusulas pétreas no Brasil (artigo 5°, § 3°, da Constituição Federal).
No mesmo sentido, toda manifestação judicial que cria tipo penal à revelia do Congresso, ou aplica lei penal preexistente por extensão analógica e mediante artifícios hermenêuticos que não respondem ao sistema jurídico em vigor, é frontalmente contrária ao paradigma constitucional da reserva legal estabelecida como cláusula pétrea na Carta Política (artigo 5°, inciso XXXIX).
Essa conduta disfuncional, além do mais, pode revelar ação dirigida a subverter o sistema jurídico com espeque na ordem constitucional expressa da qual juiz algum tem o poder de negligenciar. Antes o contrário, é seu dever funcional guarnecê-la e aplicá-la incondicionalmente, jamais revogá-la, no todo ou em parte, pela razão de algum contorcionismo interpretativo de ocasião que, sobre extrapolar os limites formais do que lhe fora autorizado pelo ordenamento jurídico, reflete também uma clara conveniência política substitutiva do poder constituinte.
A propósito disto, toda falta de consciência de limites é vício radical que torna imprestável o agente de Estado quanto ao exercício das atribuições de competência que lhe foram confiadas igualmente. Um tal exercício é, no sentido de Norberto Bobbio (“Teoria do Ordenamento Jurídico”), antinônimo da ordem jurídica e atenta contra a estabilidade das Instituições da República, quer a atuação resulte de ignorância técnica, quer provenha de motivação decidida nessa mesma direção antinômica da ordem constitucional e legal.
Nesses casos, parece evidente que ou o sistema jurídico se corrige autopoieticamente, chamando à razão os responsáveis pelas variações incompatíveis com a ordem constitucional (“impeachment”, procedimentos disciplinares, substituições...) e reorientando suas decisões atípicas (recursos, decretos-legislativos, denúncia internacional...), ou se estará desconstruindo a passos largos o Estado de Direito sob o qual a Nação supõe estar submetida.
Fora da previsão constitucional, portanto, todo ativismo é um exercício arbitrário de razões próprias (metajurídicas) e as suas decisões, efeitos dessa espiritualização que não podem ser tomados como produto de Estado.
Jamais esquecer que a interpretação comporta duas fases distintas que formam as atribuições de um julgador: a) reconhecer e identificar um problema, conforme a sua própria natureza e valores associados; b) aplicar a Ordem Jurídica ajustando esse fato ao modelo preexistente, subsumindo-o a este.
Desse modo, na identificação do problema, o juiz emprega uma plêiade de conhecimentos, conforme a natureza dos fatos descritos no mesmo problema e em nada que lhe seja estranho ou sobreexcedente do ponto de vista lógico: na subsunção o juiz, outrossim, desproblematiza-o. O positivismo jurídico, pois, não é somente o mero emprego de um raciocínio reprodutivo (lógico-formal), baseado na literalidade das normas jurídicas.
Para ser bom juiz basta ser escravo das leis. Elas formam o "círculo de giz" dentro do qual é permitido ao juiz substancialmente atuar. E deve fazê-lo com liberdade e motivação técnica. Fora disso, sua corporiedade assume o destino da própria autossuficiência e deixa de servir ao Estado, desnaturado-se a si mesmo enquanto agente político próprio.
Quem as produz, todavia, tem outro papel no Estado de Direito baseado no sistema da tripartipação dos poderes. Não fosse para resultar de um exercício organizado e autocontrolado, o poder seria como que messiânico. E, ainda que embalados por algum "revival" ou modismo coimbrão, os juízes não são deuses!
Observa-se da realidade institucional e cultural brasileira que estamos num momento em que o Direito se esfacelou por falta de reverência do Poder Judiciário à lei. É uma impossibilidade lógica o magistrado em ofício se arrogar dono do sentido da lei. A linguagem, como bem se sabe, é uma construção sociocultural, que nos impele a segui-la enquanto indivíduos dotados de razão (inteligência objetiva).
Lamentavelmente, o Poder Judiciário perdeu esse escrúpulo há muito, e vem fazendo escola. A culpa disso é induvidosamente da doutrina e do ensino jurídicos, que são superficiais e caudatários da jurisprudência dos tribunais, cada vez mais envolvidos nos modismos da hora, nos ideologismos sociais e de costumes e nas idiossincrasias do poder político, ao invés de se lhe servirem de controle epistemológico, quando é o caso.
De fato, juízes têm responsabilidade política, além de jurídica e social (Mauro Capelletti), mas no sentido de entregar a concretização das escolhas do legislador, sobretudo do constituinte, a quem tem seus direitos violados ou ameaçados de violação. É nessa atitude em que repousa a legitimidade e a razão de ser da atividade judicial.
Essa lição já é velha, contudo. Ocorre que, no Brasil, o poder dos estamentos/corporações é enorme, inclusive o das carreiras jurídicas, circunstância que corrompe o Direito em prejuízo da isonomia e da segurança jurídica de que tanto necessita o país, em tudo.
Assim sendo, é sempre arbitrária a atitude hermenêutica que não encontra limites no seu próprio objeto, assim material quanto instrumentalmente. Que não se encontra na plataforma jurídico-normativa precedente, mal dissimulada pela vacuidade de expressões do tipo "interpretação conforme" a Constituição, esta que é sua razão e fundamento mesmo de ser e de agir.
É desse modo que o Estado de Direito há de prevalecer também às idiossincrasias e caprichos de seus próprios agentes.
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Roberto Wanderley Nogueira é juiz federal em Recife, doutor em Direito pela UFPE, professor da Faculdade de Direito do Recife (UFPE) e da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap).
Fonte: Conjur