goo.gl/NqtMus | Inebriada com o ambiente formal e simbólico, a plateia aguarda inquieta e ansiosa; em seus postos, juiz, promotor e defensor projetam a pseudo alvura da Justiça; o olhar atento de todos se projeta em direção àquele ser humano sentado, de cabeça baixa, quase sempre ladeado por policiais, à espera do início do julgamento.
Isolado de seu defensor e em local de destaque naquele cenário dantesco, o sujeito sentado no banco dos réus é o protagonista de um autêntico espetáculo medieval, e sua exposição vexatória serve para rememorar a todos, em especial aos jurados, quem é o inimigo, quem deve ser punido, quem não merece compaixão.
Permissa venia, só pode ser esta a finalidade do banco dos réus – assim considerado como todo e qualquer local onde os acusados sejam ordenados a permanecer durante o transcorrer da sessão de julgamento que não a cadeira ao lado de seu defensor – pois nada mais há que justifique a sua existência no tribunal popular.
Seja com o propósito de manter a neutralidade do conselho de sentença, ou então com o objetivo de se preservar um mínimo de dignidade ao acusado, ou mesmo visando assegurar o exercício adequado da defesa, o fato é que, sobre qualquer ótica, não há mais como admitir a existência desse “instrumento” desmoralizante.
Trata-se, em verdade, de uma grotesca anomalia jurídica a existência prática em Plenários do Júri do denominado banco dos réus, figura esta – cumpre destacar – que é desprovida de previsão tanto na Constituição Federal quanto no Código de Processo Penal, no Código Penal, ou ainda em qualquer outra norma vigente.
Ao contrário, a Constituição Federal estabelece inúmeros direitos e garantias que justificam plenamente a exclusão do banco dos réus de todo e qualquer Plenário do Júri, tal como se constata em seu art. 5°, incs. II, III, XXXVIII, XLIX, LV e LVII, bem como no art. 1°, inc. II, que assegura a dignidade da pessoa humana.
O “banco dos réus” afronta abertamente o princípio da dignidade da pessoa humana – bem como a presunção da inocência – pelo fato de que expõe a pessoa incriminada ao ridículo, à desmoralização e ao constrangimento, além de lhe usurpar o direito – de que gozam todos os cidadãos – de ser julgada e tratada com respeito.
Esta situação se agrava ainda mais porque implica em prejuízo à plenitude de defesa. Ora, como é possível assegurar a plenitude de defesa ao réu que, em vez de estar sentado ao lado de seu defensor, foi posto em posição arbitrária e vexatória, recebendo tratamento degradante, tudo sem nem mesmo ainda ter sido julgado?
Se o acusado se sentar ao lado de seu advogado poderá com ele conferenciar reservadamente durante todo o julgamento, inclusive auxiliando-o a esclarecer ou tomar conhecimento de fatos que permitam à defesa enfraquecer e questionar as provas que estão sendo produzidas em plenário, especialmente a prova testemunhal.
No âmbito criminal o defensor e o acusado constituem, para fins da elaboração da defesa, uma só pessoa, pois a defesa técnica e a autodefesa se complementam, e caracterizam um todo incindível. Assim, a separação física entre defensor e acusado afronta abertamente a plenitude de defesa, princípio de alçada constitucional.
E mais, qual a utilidade do banco dos réus? Nenhuma, a não ser o fato de definir, dentro da posição espacial do tribunal, quem é o réu, e como já referido, impedir a plenitude de defesa, porquanto dificulta o contato, durante os trabalhos, entre o réu e o defensor, e assim abalroa a integração entre autodefesa e defesa técnica.
Tales Castelo Branco em seu tempo já redigia severas críticas ao abominável banco dos réus:
“Há usos e costumes que, apesar de maus, vão sendo tolerados, acabando por converterem-se em leis, decretos ou portarias. E, por isso, ficam, para sempre, ungidos pela santificação da legalidade. Passam a ser suportados, apesar de sua antipatia. Mais do que isso: obedecidos e respeitados, embora alguns desses maus hábitos não estejam registrados em qualquer norma escrita. Exemplo dessa rotina antidemocrática e contrária à isonomia processual pode ser retirado de dois extremos da vida diária dos pretórios criminais brasileiros, especialmente dos Tribunais do Júri. Num extremo isolado, acachapado e exposto à curiosidade dos olhos populares, está o réu. Às vezes, mesmo sem necessidade, algemado. Costumeiramente, embora em regime de liberdade provisória, escoltado por dois policiais fardados, numa presunção pública de periculosidade e culpa. Lá à frente, num tablado mais elevado, ao lado direito do Juiz-Presidente da Corte Popular, está o representante da acusação estatal: o dr. Promotor. Caberá a ela a tarefa de, ao levantar-se para falar, apresentar aos jurados – juízes leigos – todas as provas e argumentos que a sua competência conseguir reunir contra o réu. Sempre que os vejo assim – ambos partes no processo, mas em situação de notória desigualdade – fico a indagar de mim mesmo qual a razão originária dessa diferença. Por que, de um lado, o banco dos réus, degradando a dignidade do acusado, mesmo antes de ser julgado, e, de outro lado, a currul ministerial, concedendo à voz acusatória aparências de superioridade, de verdadeira força de fé pública? Por mais que revolva os textos legais, não encontro, em nenhum dispositivo de lei, justificativa para essa chocante diversidade, a não ser a jocosa pilhéria forense de que todos são iguais perante a lei, mas alguns são mais iguais…” (CASTELO BRANCO, 2015, p. 355/356).
A defesa não pode, jamais, se calar diante da omissão de alguns magistrados que ainda persistem em manter essa prática secular e, sobretudo, ilegal. Se o próprio defensor do réu não o tratar com dignidade, resguardando seus direitos, certo que a parte contrária e até mesmo os jurados não hão de fazê-lo, é algo até intuitivo.
Assim, a fim de se garantir a paridade de armas e a plenitude de defesa, o respeito aos direitos e garantias fundamentais do acusado, a prevalência do princípio da dignidade humana, é forçoso que o réu sente-se, livremente, em cadeira ao lado do seu defensor, local do qual nunca, em tempo algum, deveria ter sido separado.
Cumpre registrar que essa discussão não é nova, tanto que ainda em 1992 o Conselho Federal da OAB aprovou, por unanimidade, o parecer emitido no processo n° 3657/1992, no qual a Associação Paranaense dos Advogados Criminalistas suscitava a abolição do citado “banco dos réus” dos recintos dos edifícios forenses.
Porém, como alguns Magistrados atuantes nas Varas do Júri ainda insistem em preservar esse cenário ilegal, a praxe ainda necessita ser combatida.
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REFERÊNCIAS
CASTELO BRANCO; Tales; apud PAULO FILHO; Pedro. Grandes Advogados, Grandes Julgamentos (No Júri e Noutros Tribunais. 4. ed. São Paulo: JHMIZUNO, 2015.
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Por Ezequiel Fernandes
Advogado criminalista
Fonte: Canal Ciências Criminais
Isolado de seu defensor e em local de destaque naquele cenário dantesco, o sujeito sentado no banco dos réus é o protagonista de um autêntico espetáculo medieval, e sua exposição vexatória serve para rememorar a todos, em especial aos jurados, quem é o inimigo, quem deve ser punido, quem não merece compaixão.
Permissa venia, só pode ser esta a finalidade do banco dos réus – assim considerado como todo e qualquer local onde os acusados sejam ordenados a permanecer durante o transcorrer da sessão de julgamento que não a cadeira ao lado de seu defensor – pois nada mais há que justifique a sua existência no tribunal popular.
Seja com o propósito de manter a neutralidade do conselho de sentença, ou então com o objetivo de se preservar um mínimo de dignidade ao acusado, ou mesmo visando assegurar o exercício adequado da defesa, o fato é que, sobre qualquer ótica, não há mais como admitir a existência desse “instrumento” desmoralizante.
Trata-se, em verdade, de uma grotesca anomalia jurídica a existência prática em Plenários do Júri do denominado banco dos réus, figura esta – cumpre destacar – que é desprovida de previsão tanto na Constituição Federal quanto no Código de Processo Penal, no Código Penal, ou ainda em qualquer outra norma vigente.
Ao contrário, a Constituição Federal estabelece inúmeros direitos e garantias que justificam plenamente a exclusão do banco dos réus de todo e qualquer Plenário do Júri, tal como se constata em seu art. 5°, incs. II, III, XXXVIII, XLIX, LV e LVII, bem como no art. 1°, inc. II, que assegura a dignidade da pessoa humana.
O “banco dos réus” afronta abertamente o princípio da dignidade da pessoa humana – bem como a presunção da inocência – pelo fato de que expõe a pessoa incriminada ao ridículo, à desmoralização e ao constrangimento, além de lhe usurpar o direito – de que gozam todos os cidadãos – de ser julgada e tratada com respeito.
Esta situação se agrava ainda mais porque implica em prejuízo à plenitude de defesa. Ora, como é possível assegurar a plenitude de defesa ao réu que, em vez de estar sentado ao lado de seu defensor, foi posto em posição arbitrária e vexatória, recebendo tratamento degradante, tudo sem nem mesmo ainda ter sido julgado?
Se o acusado se sentar ao lado de seu advogado poderá com ele conferenciar reservadamente durante todo o julgamento, inclusive auxiliando-o a esclarecer ou tomar conhecimento de fatos que permitam à defesa enfraquecer e questionar as provas que estão sendo produzidas em plenário, especialmente a prova testemunhal.
No âmbito criminal o defensor e o acusado constituem, para fins da elaboração da defesa, uma só pessoa, pois a defesa técnica e a autodefesa se complementam, e caracterizam um todo incindível. Assim, a separação física entre defensor e acusado afronta abertamente a plenitude de defesa, princípio de alçada constitucional.
E mais, qual a utilidade do banco dos réus? Nenhuma, a não ser o fato de definir, dentro da posição espacial do tribunal, quem é o réu, e como já referido, impedir a plenitude de defesa, porquanto dificulta o contato, durante os trabalhos, entre o réu e o defensor, e assim abalroa a integração entre autodefesa e defesa técnica.
Tales Castelo Branco em seu tempo já redigia severas críticas ao abominável banco dos réus:
“Há usos e costumes que, apesar de maus, vão sendo tolerados, acabando por converterem-se em leis, decretos ou portarias. E, por isso, ficam, para sempre, ungidos pela santificação da legalidade. Passam a ser suportados, apesar de sua antipatia. Mais do que isso: obedecidos e respeitados, embora alguns desses maus hábitos não estejam registrados em qualquer norma escrita. Exemplo dessa rotina antidemocrática e contrária à isonomia processual pode ser retirado de dois extremos da vida diária dos pretórios criminais brasileiros, especialmente dos Tribunais do Júri. Num extremo isolado, acachapado e exposto à curiosidade dos olhos populares, está o réu. Às vezes, mesmo sem necessidade, algemado. Costumeiramente, embora em regime de liberdade provisória, escoltado por dois policiais fardados, numa presunção pública de periculosidade e culpa. Lá à frente, num tablado mais elevado, ao lado direito do Juiz-Presidente da Corte Popular, está o representante da acusação estatal: o dr. Promotor. Caberá a ela a tarefa de, ao levantar-se para falar, apresentar aos jurados – juízes leigos – todas as provas e argumentos que a sua competência conseguir reunir contra o réu. Sempre que os vejo assim – ambos partes no processo, mas em situação de notória desigualdade – fico a indagar de mim mesmo qual a razão originária dessa diferença. Por que, de um lado, o banco dos réus, degradando a dignidade do acusado, mesmo antes de ser julgado, e, de outro lado, a currul ministerial, concedendo à voz acusatória aparências de superioridade, de verdadeira força de fé pública? Por mais que revolva os textos legais, não encontro, em nenhum dispositivo de lei, justificativa para essa chocante diversidade, a não ser a jocosa pilhéria forense de que todos são iguais perante a lei, mas alguns são mais iguais…” (CASTELO BRANCO, 2015, p. 355/356).
A defesa não pode, jamais, se calar diante da omissão de alguns magistrados que ainda persistem em manter essa prática secular e, sobretudo, ilegal. Se o próprio defensor do réu não o tratar com dignidade, resguardando seus direitos, certo que a parte contrária e até mesmo os jurados não hão de fazê-lo, é algo até intuitivo.
Assim, a fim de se garantir a paridade de armas e a plenitude de defesa, o respeito aos direitos e garantias fundamentais do acusado, a prevalência do princípio da dignidade humana, é forçoso que o réu sente-se, livremente, em cadeira ao lado do seu defensor, local do qual nunca, em tempo algum, deveria ter sido separado.
Cumpre registrar que essa discussão não é nova, tanto que ainda em 1992 o Conselho Federal da OAB aprovou, por unanimidade, o parecer emitido no processo n° 3657/1992, no qual a Associação Paranaense dos Advogados Criminalistas suscitava a abolição do citado “banco dos réus” dos recintos dos edifícios forenses.
Porém, como alguns Magistrados atuantes nas Varas do Júri ainda insistem em preservar esse cenário ilegal, a praxe ainda necessita ser combatida.
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REFERÊNCIAS
CASTELO BRANCO; Tales; apud PAULO FILHO; Pedro. Grandes Advogados, Grandes Julgamentos (No Júri e Noutros Tribunais. 4. ed. São Paulo: JHMIZUNO, 2015.
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