A força normativa da memória constitucional – Artigo de Guilherme M. Pires

goo.gl/fypvxa | Nota introdutória: Na coluna da Comissão de Estudos Direcionados em Direito & Literatura do Canal Ciências Criminais, apresentamos aos leitores um pouco daquilo que vem sendo desenvolvido pela comissão nessa terceira fase do grupo. Além da obra que será produzida, a comissão se dedica a pesquisa e ao debate sobre questões presentes na temática “Direito & Literatura”. Em 2019, passamos a realizar abordagens mais direcionadas nos estudos. Daí que contamos dois grupos distintos que funcionam concomitantemente: um focado na literatura de Franz Kafka e outro na de George Orwell. Assim sendo, alguns artigos foram selecionados e são estudados pelos membros, propiciando uma salutar discussão entre todos. Disso se resultam as ‘relatorias’ (notas, resumos, resenhas, textos novos e afins), uma vez que cada membro fica responsável por “relatar” determinado texto por meio de um resumo com seus comentários, inclusive indo além. É o que aqui apresentamos nessa coluna, almejando compartilhar com todos um pouco do trabalho da comissão. O texto da vez, formulado pelo colega Guilherme Moreira Pires, foi feito com base no artigo “A força normativa da Memória Constitucional: uma análise da trivialização das reformas na Constituição de 1988 a partir da obra A Revolução dos Bichos de George Orwell”, de Ernane Salles Cota Jr. e Marcelo Campos Galuppo – publicado nos anais do XVIII Encontro Nacional do CONPEDI. Vale conferir! (Paulo Silas Filho – Coordenador das Comissões de Estudos Direcionados de Direito & Literatura – Orwell e Kafka – do Canal Ciências Criminais)

Força normativa da memória constitucional


O artigo a seguir analisado, foi intitulado “A força normativa da memória constitucional: uma análise da trivialização das reformas na Constituição de 1988 a partir da obra ‘Revolução dos Bichos’ de George Orwell”, de autoria de Ernane Salles da Costa Junior. O trabalho organiza e produz uma série de considerações críticas ao incumbir-se de pensar a relação da memória constitucional na fundamentação de limites do poder de reforma na CF de 88.

Articula autores como Ronald Dworkin, François Ost, Hans-Georg Gadamer, Konrad Hesse e Marcelo Neves, valorizando o papel da Literatura na produção de visões menos ingênuas do âmbito jurídico, com analíticas mais abertas a reflexões críticas, assim dissolvendo a fetichização da lei nos termos expostos; contrariando a pretensão de pureza do Direito (com menção a Kelsen).

Nessa esteira, fomenta linhas de fuga, com aberturas que não se esgotam no âmbito jurídico, reiterando a importância de outras áreas de conhecimento. E, notadamente, a Literatura, crucial na dessacralização do Direito, que não pode olhar somente para si, como não pode esbanjar um significado somente encontrado em si próprio, recobrando Chueiri, bem como sublinhando a importância de olhares complexos.

Olhares dispostos, inclusive, a reconhecerem as potencialidades da Literatura, com características atreladas à importantíssima capacidade de criação e mesmo experimentação de liberdades, sendo a narrativa literária de uma riqueza singular para o Direito, expandindo suas possibilidades e horizontes com uma diversidade de acessos.

De um lado, tem-se a universalidade da lei, geral e abstrata, ligada ao âmbito jurídico e suas artificialidades. De outro, deparamo-nos com o potencial da narrativa literária, articulada no particular, tecida na concretude do singular, o que é relevante, inclusive na subversão de uma ordem injusta ligada à universalidade da lei, questionando o Direito em seus limites, com abertura para o reconhecimento da arte ligada ao potencial crítico e emancipador.

O texto sublinha com George Orwell a questão do “propósito político” entre as motivações que envolvem a produção de uma obra literária, sendo entendido por Orwell, em texto “Porque eu escrevo” (1947), como o intuito de fazer certas palavras alcançarem certas direções.

O que inclui a capacidade de mudança, com a alteração das ideias de outras pessoas, engendrando uma desestabilização e reorganização do que já estava sedimentado. Isso é mudança, tendo nessa acepção apontada por Orwell, a arte tudo a ver com a política (considerando-se ainda a historicidade do intérprete).

O que é articulado com Ost explicitando como, ao potencialmente interrogar nossos códigos e artificialidades, questioná-los, a Literatura redimensiona a liberdade, sendo exposto, nesse sentido, que uma liberdade através dela (Literatura) pressupõe desconstruir o formalismo jurídico, o que remete ao já exposto, sobre a dessacralização crítica desse campo.

Consequentemente, dissolvendo pretensões e certezas ingênuas confrontadas com a complexidade da vida, rumo à criação do novo com compromissos e responsabilidades que transcendam a fé limitante no sistema jurídico como suficiente referencial da vida.

O texto sublinha então, a partir de Ost, a preferência desse autor, não por um diálogo infrutífero dos que não se entendem, mas empréstimos recíprocos, em um contexto de trocas interessantes para Direito e Literatura. Se verifica um tom apaziguador e ao mesmo tempo castrador de uma Literatura rebelde, insurgente contra qualquer convenção, avaliando-se que não seria propício sua interação com o Direito codificado, o que segundo o autor constituiria um diálogo de surdos.

De todo modo, o trabalho explora possibilidades de aproximação entre a obra “Revolução dos Bichos” de Orwell no oferecimento de um viés crítico que atravesse o âmbito jurídico nas questões de justiça e relações de poder, de modo a fomentar olhares mais aguçados abrangendo a atribuição de papel narrativo acerca da construção legislativa e reformas na CF.

Como sabido, os 7 (sete) mandamentos referentes aos princípios do animalismo na obra de Orwell, a princípio fomentaram a experimentação de mais liberdades pelos animais, com a abertura de novos horizontes em que a igualdade é buscada, em oposição à verticalidade e opressão de outrora (o que tem correspondente na busca por uma sociedade mais igualitária e justa), sendo que os animais participavam diretamente da tomada de decisões da Granja dos Bichos.

Todavia, essa tentativa de horizontalidade foi logo arruinada, na medida em que os porcos passaram a exercer uma razão de governo sobre a Granja dos Bichos.

E os sete mandamentos, que em tese refletiriam o ideário e norte de uma nova sociedade, se deterioraram, em benefício de alguns e detrimento de outros, restaurando e refazendo as opressões, violências e os privilégios que no passado pretendiam abolir (motivando a criação dos mandamentos por uma vida mais justa).

As reformas corroeram os mandamentos, a ponto dos animais nem mais se lembrarem das motivações originárias de tudo isso, como uma amnésia.

E pouco a pouco foi se instalando e consolidando um totalitarismo com verniz de legalidade (o que é apontado no trabalho como uma constitucionalidade aparente, mas que rompe com o que foi registrado antes, no caso da obra de Orwell, pelos animais, assim apagando e deturpando sobremaneira o que foi antes inscrito).

Assim, o trabalho tensiona a perda da memória constitucional através da aludida obra de Orwell, “Revolução dos Bichos”.

É dialogando com a historicidade do intérprete já mencionada, que a fábula de Orwell fornece seu grande potencial crítico das relações de poder e princípio da autoridade, com críticas que não se esgotam em “esquerdas” ou “direitas”, e que lanceiam os totalitarismos.  

Nisso, se explicita também o potencial da Literatura, de atacar as próprias interações entre Direito e poder; o que o trabalho opta por fazer, particularmente, com foco nas reformas da CF de 1988, atreladas a uma ruptura da memória constitucional, valendo-se para tanto da obra de Orwell.

Dessa forma, é exposto que a interação entre Direito e Literatura pode ser útil à análise do presente na realidade brasileira (lembrando-se ainda que a atividade legislativa também se desenvolve narrativamente).
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Guilherme M. Pires
Doutorando em Direito Penal. Advogado.
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