Procedimento do júri: o fair play processual na expectativa da tréplica – Por Eliakin Tatsuo

bit.ly/2CUpt8w | Durante a segunda fase do procedimento previsto para julgar os crimes dolosos contra a vida, o polo defensivo não raro se depara com uma situação que, se à primeira vista pode parecer uma decorrência lógica, substancialmente solapa as noções de paridade de armas e de plenitude de defesa, as quais são indissociáveis ao exercício da tréplica como uma faculdade da defesa e não da acusação.

Neste sentido, preceitua o artigo 476, caput, do Código de Processo Penal, que uma vez:

"Encerrada a instrução, será concedida a palavra ao Ministério Público, que fará a acusação, nos limites da pronúncia ou das decisões posteriores que julgaram admissíveis a acusação, sustentado, se for o caso, a existência de circunstância agravante.

Em ato contínuo, o parágrafo 3º do mesmo dispositivo, prevê que:

"Finda a acusação terá a palavra a defesa.

Tem-se com isto, portanto, o momento dos debates orais travados entre acusação e defesa perante o plenário do júri, aos quais é permitido, via de regra, a exposição das respectivas teses ao corpo de jurados, dentro do intervalo de tempo de 1 hora e 30 minutos para cada (artigo 477, caput, do Código de Processo Penal). Por conseguinte, de forma bem sucinta o artigo 476, parágrafo 4º, do mesmo diploma legal, prevê que:

"A acusação poderá replicar e a defesa treplicar.

Neste ponto, suscita a delicada questão aqui versada, concernente se a réplica é uma prerrogativa da acusação, sendo a tréplica um eventual desdobramento, ou se inexiste relação de dependência entre estas, cabendo unicamente a cada parte decidir quanto o exercício ou não desta nova oportunidade de exposição de teses.

Partindo de uma premissa reducionista, a qual considera que o ato de treplicar demanda logicamente uma réplica antecedente, predomina amplamente o entendimento que só é dado à defesa fazer uso da tréplica se houver réplica do acusador (LOPES JÚNIOR, 2017, pp. 826-827).

Somado a este argumento, enxerga-se também no dispositivo em comento um impeditivo de ordem gramatical, no sentido de que o verbo “poderá” carreia um valor semântico de faculdade, sobre o qual o exercício do ato seguinte, na espécie a tréplica, estaria intrinsecamente vinculada.

De fato, a terminologia de “réplica” e “tréplica” se mostra infeliz para expressar a par conditio que, além de prevista no plano ideal, deve haver no caso concreto. Além disso, sua leitura estritamente formal acarreta em um insanável problema de contraposição dialética.

Ainda que se avente um empecilho de carácter formal no exercício da tréplica com ausência de réplica, esta se mostra inteiramente absorvida pela análise material, substanciada na violação da paridade de armas, de modo que a única leitura que se admite na matéria é que a

"tréplica somente se chama tréplica porque a Defesa sempre tem a palavra por último e, portanto, por uma questão lógica, o que vem antes, enquanto oportunidade processual da acusação, chama-se réplica (KUHN, 2019).

Do contrário, a discricionariedade do acusador em ter a réplica como uma faculdade, traz a lume na prática a posição privilegiada em que poderá dirigir sua argumentação sabendo a priori se haverá ou não tempo adicional, como também lhe será oportunizado avaliar se a defesa não logrou expor satisfatoriamente seus argumentos no tempo inicialmente conferido e se precisará reforçar sua tese, podendo, ao final, silenciar deliberadamente a fim de impedir ou mesmo surpreender a outra parte de ter acesso ao embate em sua plenitude (MARQUES, 2008).

Na temática das provas – no tocante a introdução de novos elementos outrora ignorados deliberadamente -, este fator surpresa que objetiva apanhar a parte adversária para obter alguma vantagem, é igualmente refutada, recebendo doutrinariamente a terminologia de “carried in the dark” (PRADO, 2014).

É importante que se diga no que versa a referenciada plenitude de defesa (art. 5º, XXXVIII, da Constituição Federal), que longe de mera variação terminológica, exige um grau ainda maior do que o da ampla defesa, especialmente por se tratar de um tribunal popular, em que os jurados decidem mediante íntima convicção, com base notadamente nos debates orais travados[1].

Em decorrência da plenitude de defesa, torna-se possível, inclusive, não só o exercício da tréplica sem réplica, como se deve extirpar qualquer limitação probatória sobre o acusado, sendo-lhe permitido ouvir número maior de testemunhas previsto em lei, requerer tempo sobressalente para expor tese defensiva e, porque não, inovar na tréplica (BADARÓ, 2017)[2].

Ao lado da plenitude de defesa, a qual constitui fator mais do que suficiente para permitir que a defesa vá à tréplica independente do cenário posto, o conteúdo da negativa da réplica por parte da acusação merece igualmente um olhar mais atento.

Muito embora prevaleça que, ao se oportunizar o direito de réplica, o membro do parquet deve se limitar a declinar “sim” ou “não”, sob pena de quaisquer acréscimos serem interpretados como conteúdo de tal (BADARÓ, 2017. p. 714), não há como negar que o ato de não apresentar uma réplica importa substancialmente em um juízo de valoração consubstanciada na avaliação concreta de qual tese restou melhor assimilada pelos jurados.

Veja, mesmo sem qualquer consideração, o simples “não” carrega simbolicamente uma manifestação da acusação, ainda que implícita, sobre o andamento do júri, sendo a mensagem então absorvida pelo corpo de jurados como a materialização de que o processo se encontra maduro para julgamento (MARQUES, 2019); de outro lado, em desequilíbrio, nem ao menos é oportunizado que em seguida a defesa se manifeste como ato derradeiro, o que é a lógica que deve imperar no processo penal.

Aliás, sobre esta lógica de oportunidade, é que a Lei nº 11.719/08 veio para adequar o sistema acusatório democrático, integrando-o de forma mais harmoniosa aos ditames constitucionais, consagrando com maior efetividade seus princípios, notadamente, os do contraditório e da ampla defesa.

Por consectário da escolha do sistema acusatório[3], é cediço que o acusado abandona a posição de objeto do processo, epistemologicamente um inimigo do inquisidor, para se converter em sujeito processual com direito de defesa, sem o qual não há que se falar verdadeiramente em processo.

Com efeito, entre as variadas classificações feitas pela literatura especializada (ZILLI, 2003, p. 38), quanto às características do sistema acusatório, sobreleva-se aqui a noção de que o acusado é considerado como sujeito de direito e ocupante de posição de igualdade perante o acusador.

Assim, o processo acusatório é essencialmente um processo de partes, cuja paridade de armas se materializa na espécie pelo tratamento isonômico conferido a estas[4], não ingenuamente na acepção de igualdade, dada a pluralidade de capacidades e do aparato à disposição do Estado em face do privado, mas sim no sentido de se buscar possibilitar o contraditório, em igualdade de tratamento, dentro do fair play processual (ROSA, 2018, p. 87).

Por assim dizer, o princípio da isonomia consiste no reconhecimento de que as partes, embora ocupem polos distintos, situam-se no mesmo plano de direitos. O princípio em comento, também conhecido como de igualdade de oportunidades, encontra fundamentação constitucional (art. 5º, caput, da Constituição Federal), revelando para sistemática processual que sua sobrevivência se assenta na atribuição de meios jurídicos igualmente eficazes às partes para tornar efetivos os direitos de intervenção processual (SILVA, 2000, p. 65).

Impende registrar, por oportuno, o entendimento de TOURINHO FILHO ( 2013, pp. 60-61), que vai além ao tratar a paridade de armas (par conditio ou equality of arms) como aspecto específico da noção de igualdade, no sentido de que os poderes instrumentais conferidos à acusação não podem ser furtados da defesa.

É nodal também destacar – um aparte, já que se estar a tratar de júri – que o princípio da isonomia não impede em absoluto o tratamento diferenciado das partes, sendo justificável com critérios de razoável discriminação que visam, por mais paradoxal que seja, conferir tratamento desigual para retirar a parte do seu estado natural e colocá-las em situação de igualdade (2017, pp. 128-129).

Neste sentido, em várias oportunidades, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal[5] e o Superior Tribunal de Justiça[6], atentos à inversão da lógica do acusado falar por último, criaram mecanismos para restabelecer o equilíbrio, possibilitando que este possa contestar por completo os fatos que lhe são imputados.

No caso da acusação penal, em que este atua em nome do Estado, a premissa não pode caminhar em ritmo diverso, sendo o dever de “boa-fé” fator que não permite conceber a réplica como uma faculdade ou prerrogativa da acusação, sem a qual a tréplica não exista, a fim de admitir um desequilíbrio que instrumentaliza o tempo como estratégia e permite que uma das partes possa ditar o destino do procedimento.

Como imperativo de justiça, se faz imprescindível, portanto, à aplicação do Princípio da Lealdade Processual, o qual encontra esteio analógico no artigo 5º do Código de Processo Civil de 2015, que impõe:

"Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com boa-fé.

Aos mais céticos quanto ao conteúdo da “boa-fé”, são oportunos os escólios de Rui PORTANOVA (1999, p. 157), advertindo no sentido de que:

"Não se trata de exigir ingenuamente que as partes ofereçam argumentos para que a outra parte triunfe. Trata-se de evitar que a vitória venha através de malícia, fraudes, espertezas, dolo, improbidade, embuste, artifício, mentiras ou desonestidades.

Nesta esteira, a conformação sistemática do Direito impõe que seu raciocínio jurídico seja feito com base apenas em uma leitura meramente formal das normas, como também em princípios, os quais são de fundamental importância – quanto mandamento de otimização, que obrigam que algo seja realizado na maior medida do possível – (SILVA, 2002, p. 25), no processo de orientação.

No caso da tréplica, o princípio da isonomia – aqui qualificado pela plenitude de defesa – orienta que dentro do fair play processual as partes saibam de antemão o procedimento que será seguido. Não se trata, portanto, na transparência da escolha das teses como estratégia, mas no maneio unilateral do tempo em que as partes discorrerão..

Afinal, a ideia de processo como meio de solução de conflitos pressupõe que os sujeitos, no caso acusação e defesa, sejam tratados de forma igualitária, sendo a isonomia um ideal na dinâmica processual a ser sempre buscado, motivo pelo qual o exercício da tréplica, segundo os ditames constitucionais ventilados alhures, não pode ser relegado aos interesses exclusivos da acusação, conferindo-lhe o privilégio de frustrar expectativas legítimas da defesa, manipulando ilegitimamente o procedimento, ainda que despropositadamente.

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REFERÊNCIAS

BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 5. ed. rev., atual. ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017.

BISSOLI FILHO, Francisco. Linguagem e Criminalização: a constitutividade da sentença penal condenatória. Curitiba: Juruá, 2011.

DEZEM. Guilherme Madeira. Curso de processo penal. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017.

KUHN, Guilherme. Disparidade de armas e o supremo poder da acusação. Disponível aqui. Acesso em: 25/03/2019.

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

MARQUES, Jader. A Réplica e a Tréplica nos Debates do Tribunal do Júri. Revista IOB de Direito Penal e Processual Penal, n. 52, out./nov. 2008.

MARQUES, Jader. Lealdade e paridade de armas: tréplica sem réplica no Tribunal do Júri. Disponível aqui. Acesso em: 25/03/2019.

PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.

PRADO, Geraldo. Prova Penal e Sistemas de Controles Epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. São Paulo: Marcial Pons, 2014.

ROSA, Alexandre Morais da. Procedimentos e nulidades no jogo processual penal: ação, jurisdição e devido processo legal. Florianópolis: Empório Modara, 2018.

SILVA, Germano Marques da. Curso de processo penal. 4. ed. Lisboa: Editorial Verbo, 2000. vol. I.

SILVA, Luis Virgilio Afonso da. O proporcional e o razoável. RT 798, 2002.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 16. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013.

ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória o juiz no processo penal. São Paulo: Ed”. RT, 2003.

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NOTAS

[1] Para ilustrar a maior extensão havida na plenitude de defesa em face da tradicional ampla defesa, o artigo 497, inciso V, do Código de Processo Penal, permite que ao Juiz Presidente do Tribunal do Júri: “nomear defensor ao acusado, quando considera-lo indefeso, podendo, neste caso, dissolver o Conselho e designar novo dia para o julgamento, com a nomeação ou a constituição de novo defensor”.

[2] Sobre a violação do contraditório no conteúdo inovador da tréplica, entende BADARÓ que: “No entanto, a plenitude de defesa deve prevalecer sobre o contraditório, podendo a defesa inovar na tréplica, o que somente ocorrerá se o Ministério Público não antevir as possíveis teses que, aliás, são questões jurídicas, e não questões de fato. (…) Além disso, a matéria poderá ser objeto de apartes do Ministério Público, contra-argumentando e expondo argumentos para refutar as novas alegações defensivas”. (BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 5. ed. rev., atual. ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 716).

[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADIn nº 5.104 MC-DF. Rel. Min. BARROSO: “2. A Constituição de 1988 fez uma opção inequívoca pelo sistema penal acusatório. Disso decorre uma separação rígida entre, de um lado, as tarefas de investigar e acusar e, de outro, a função propriamente jurisdicional. Além de preservar a imparcialidade do Judiciário, essa separação promove a paridade de armas entre acusação e defesa, em harmonia com os princípios da isonomia e do devido processo legal. Precedentes”.

[4] BISSOLI FILHO, Francisco. Linguagem e Criminalização: a constitutividade da sentença penal condenatória. Curitiba: Juruá, 2011. pp. 215-216: “O processo desprovido de mecanismos de ação e reação em igualdade de condições é desleal. Materializa-se pelo contraditório formal e material, pelo qual não basta apenas aparência de informação e reação, mas sim de igual possibilidades de exercício de poderes, com juiz garantidor do contraditório. Assim é que o juiz joga a favor de uma das partes – atividade probatória, por exemplo – o jogo é viciado”.

[5] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 115.530/PR. Relator Ministro Luiz Fux: “O art. 400 do Código de Processo Penal, com a redação dada pela Lei nº 11.719/2008, fixou o interrogatório do réu como ato derradeiro da instrução penal, sendo certo que tal prática, benéfica à defesa, deve prevalecer nas ações penais em trâmite perante a Justiça Militar, em detrimento do previsto no art. 302 do Decreto-Lei nº 1.002/69, como corolário da máxima efetividade das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa (CRFB, art. 5º, LV), dimensões elementares do devido processo legal (CRFB, art. 5º LIV) e cânones essenciais do Estado Democrático de Direito (CRFB, art. 1º, caput). Precedente do Supremo Tribunal Federal (Ação Penal nº 528 AgR, rel. Min. Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, j. em 24/03/2011, DJe-109 divulg. 07-06-2011)”.

[6] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº 403.730/RJ. Relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca. Ementa: “HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. PROCESSO PENAL. TRÁFICO DE DROGAS (LEI N. 11.343/06). RITO PROCEDIMENTAL. APLICAÇÃO DO RITO COMUM ORDINÁRIO. INTERROGATÓRIO AO FINAL DA INSTRUÇÃO. EFETIVIDADE DOS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA. ACÓRDÃO DO PLENÁRIO DO STF (HC-127.900). INCIDÊNCIA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL CONFIGURADO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. (…) 2. É certo que este Tribunal Superior vinha proferindo entendimento no sentido de que o procedimento previsto no artigo 57 e parágrafos da Lei n. 11.343/2006 prevalecia sobre a regra insculpida no artigo 400 do Código de Processo Penal, em observância ao princípio da especialidade. 3. No entanto, o plenário do Supremo Tribunal Federal, no exame do HC n. 127.900/AM, julgado em 3/3/2016, de relatoria do Ministro Dias Toffoli, assentou que “a norma inscrita no art. 400 do Código de Processo Penal comum aplica-se, a partir da publicação da ata do presente julgamento, aos processos penais militares, aos processos penais eleitorais e a todos os procedimentos penais regidos por legislação especial incidindo somente naquelas ações penais cuja instrução não se tenha encerrado“.

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Eliakin Tatsuo Yokosawa Pires dos Santos
Advogado Criminalista. Especialista em Direito Penal e Processual Penal.
Fonte: Canal Ciências Criminais
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