bit.ly/2Dfd8vK | Com a expressão “Indignai-vos”, homenageio o velho Sthefanes Hessel, remanescente da segunda guerra, morto há pouco tempo.
Cena 1. Ano de 1981. Manhã fria em uma pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul. Um jovem advogado, carteira da OAB fresquinha, terninho surrado, tem seu primeiro cliente cível. Casualmente, o cliente era seu professor. Um professor doutor em antropologia. Estudara na França. Nunca havia entrado em um fórum. Algumas ovelhas de sua fazendola haviam sido devorados pelos cachorros do vizinho. Audiência. Oitiva do autor.
O professor senta-se à frente do juiz. Cruza as pernas. Sua camisa estava com um botão aberto, mostrando sua medalhinha e alguns pelos já esbranquiçados (o “embranquiçados” é licença poética do contador). O juiz diz, em tom ríspido: “Descruze as pernas e feche sua camisa. O senhor está em um fórum na presença de um juiz.”
Antes que eu pudesse intervir (não sei se o faria, mesmo, porque jovenzinho), o professor surpreende e diz: “O que o senhor está pensando? Sou professor. Vim buscar a prestação jurisdicional do Estado. Fui lesado. Tenho argumentos, provas e um advogado. No que minhas pernas e minha camisa têm a ver com isso?”
O juiz quedou-se silente. O constrangimento foi geral. Dele, juiz. Vibrei. Meu cliente fora genial. Como, aliás, eram seus textos. O professor foi minha inspiração para os meus estudos sobre tribunal do júri. Ganhei fácil a ação, porque o advogado da parte contrária esqueceu que o então artigo 1.527 do Código Civil invertia o ônus da prova.
Naquele dia, aprendi mais do que em cinco anos de faculdade. Mais que seu advogado, eu fiquei seu fã. Seu nome era Sérgio. Como na música em que o filho Sérgio homenageia seu pai, Jacó do Bandolim. “Mas que seu filho, eu fiquei seu fã”. Dele tenho muita saudade.
Cena 2. Ano 2019. Interior de Minas Gerais. Uma testemunha, bastante educadamente, ao ser inquirida, pergunta se pode contar “dois fatos que ocorreram”. O juiz interfere, dizendo-lhe que responda somente à pergunta “do doutor”. Muito bem, até aí, tudo muito bem.
Só que, quando a testemunha tenta dizer que estava fazendo exatamente isso, o juiz dá um murro na mesa. “Não discute comigo não”.
“O senhor acha que o senhor tá onde? O senhor sai daqui preso também!” [sic]
“Quem impõe ordem aqui dentro sou eu. Não é o senhor não. Dentro da sua empresa o senhor manda. Na sua casa, o senhor manda.”
A testemunha, sem levantar a voz, diz: “Não estou discutindo”. Ouve de volta que não deve vir com “sarcasmo” (?), e que deve sentar-se “direito” [sic]. O juiz diz: “Não fale comigo”. Por quê? Porque isso seria “desacato” (!).
(Aos Santos Tomases que precisam ver para crer – não os culpo; é inacreditável mesmo –, aqui está.)
Ao trabalho. Como disse o velho partizam Stephane Hessel, “indignai-vos”.
Vejam quantas coisas dizemos com as palavras. Retomo uma das frases d’Ele, O Juiz: “Dentro da sua empresa o senhor manda. Na sua casa, o senhor manda.” Ali, quem “manda” é Ele, O Juiz.
Quer dizer que o Tribunal, o Fórum, o que for, equivale-se à casa do magistrado? À sua empresa? Estamento burocrático-jurídico é isso. A fala é paradigmática: traz às claras que Ele, O Juiz, torna privado o que é público: torna privado o órgão jurisdicional, que é público... e torna privada a linguagem, que é pública.
Porque é isso. O juiz que se vê autorizado a agir dessa forma – conferindo, portanto, a si mesmo uma autorização que a função não lhe dá – privatiza a linguagem. Ele diz aquilo que não poderia dizer em nenhum outro lugar. O que ele fala no fórum – que é sua casa, sua empresa – não está submetido aos critérios de verificação do mundo exterior. (Ou melhor: pensa não estar. Insiste em não estar. Porque está na sua casa. Na sua empresa.)
O direito brasileiro está preso ao paradigma do sujeito moderno. Se alguém tinha dúvida, veja de novo a gravação. E quantas vezes coisas desse tipo acontecem Brasil afora?
Ora, quem manda não é O Senhor, Juiz. Quem manda é... o Direito. O juiz solipsista recusa, portanto, as regras do próprio jogo de linguagem. Esse é o ponto. É como o jogador de futebol que pega a bola com as mãos fora da área. A diferença é que o jogador que insiste em fazer isso vai pra rua. Por que no Direito o juiz pode pegar a bola com a mão fora da área?
(Reparem ainda no dano menos óbvio que isso ainda traz ao Direito. Quando se reforça a lógica de que o juiz manda, coloca-se em risco todo juiz de boa-fé, que aceita os limites que lhe impõe o Direito, e toma uma decisão dura porque, bem, it’s the law. Quando se aceita a tese de que o fórum é a empresa do magistrado, também está aceita a tese de que o juiz “soltou o bandido” porque ele assim “quis”. E isso fragiliza o Direito. Prejudica os juízes corretos. E impõe a tese da voz das ruas.)
Sigo.
O que há em comum entre a Cena 1, 1981, e a Cena 2, 2019? Parece óbvio, mas vou explicar exatamente a partir daquilo que elas não têm em comum: o constrangimento.
Meu professor conseguiu, filosoficamente, elucidar para o juiz à época a maior das trivialidades: há uma realidade externa. Você, viciado em si mesmo, não é o único neste mundo no qual caiu.
Você não pode dizer o mundo; você não pode dizer o que quer. Há critérios. E esses critérios são públicos. Porque para você dizer, o que for, você só consegue fazê-lo por já estar inserido num paradigma intersubjetivo. O mundo e o direito não é que você quer ou acha que é.
Por que, em 2019, O Juiz (ainda) diz o que quer? Exatamente pela ausência de constrangimento. Porque nós falhamos e fomos incapazes de construir uma doutrina responsável por constranger epistemologicamente aquele que decide.
Lá em 1981, quando eu ainda era jovenzinho, quem constrangeu o juiz? Um professor. E que professor. E se a Cena 2 revela um verdadeiro estamento jurídico (lembremos Faoro), a Cena 1 já mostrou ex ante que a saída está no constrangimento epistemológico. E que um professor é capaz de fazer isso. Penso que, inconscientemente, aprendi o sentido de “constrangimento epistemológico” (hoje é verbete do meu Dicionário de Hermenêutica) naquela fria manhã no pequeno fórum da pequena cidade do interior do interior do Rio Grande do Sul.
Diz muito sobre a necessidade de uma doutrina que volte a doutrinar.
Rule of law, e não rule of judge.
Que aquela fria manhã de abril de 1981 sirva de lição para compreendermos o que ocorreu no dia de muito calor no fórum da cidade do interior de Minas Gerais.
Talkei?
Post scriptum: mesmo que o contexto de toda a gravação venha, na investigação, a mostrar alguma atitude inadequada da testemunha, nada justifica a humilhação e o escracho dado pelo juiz.
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Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.
Fonte: Conjur
Cena 1. Ano de 1981. Manhã fria em uma pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul. Um jovem advogado, carteira da OAB fresquinha, terninho surrado, tem seu primeiro cliente cível. Casualmente, o cliente era seu professor. Um professor doutor em antropologia. Estudara na França. Nunca havia entrado em um fórum. Algumas ovelhas de sua fazendola haviam sido devorados pelos cachorros do vizinho. Audiência. Oitiva do autor.
O professor senta-se à frente do juiz. Cruza as pernas. Sua camisa estava com um botão aberto, mostrando sua medalhinha e alguns pelos já esbranquiçados (o “embranquiçados” é licença poética do contador). O juiz diz, em tom ríspido: “Descruze as pernas e feche sua camisa. O senhor está em um fórum na presença de um juiz.”
Antes que eu pudesse intervir (não sei se o faria, mesmo, porque jovenzinho), o professor surpreende e diz: “O que o senhor está pensando? Sou professor. Vim buscar a prestação jurisdicional do Estado. Fui lesado. Tenho argumentos, provas e um advogado. No que minhas pernas e minha camisa têm a ver com isso?”
O juiz quedou-se silente. O constrangimento foi geral. Dele, juiz. Vibrei. Meu cliente fora genial. Como, aliás, eram seus textos. O professor foi minha inspiração para os meus estudos sobre tribunal do júri. Ganhei fácil a ação, porque o advogado da parte contrária esqueceu que o então artigo 1.527 do Código Civil invertia o ônus da prova.
Naquele dia, aprendi mais do que em cinco anos de faculdade. Mais que seu advogado, eu fiquei seu fã. Seu nome era Sérgio. Como na música em que o filho Sérgio homenageia seu pai, Jacó do Bandolim. “Mas que seu filho, eu fiquei seu fã”. Dele tenho muita saudade.
Cena 2. Ano 2019. Interior de Minas Gerais. Uma testemunha, bastante educadamente, ao ser inquirida, pergunta se pode contar “dois fatos que ocorreram”. O juiz interfere, dizendo-lhe que responda somente à pergunta “do doutor”. Muito bem, até aí, tudo muito bem.
Só que, quando a testemunha tenta dizer que estava fazendo exatamente isso, o juiz dá um murro na mesa. “Não discute comigo não”.
“O senhor acha que o senhor tá onde? O senhor sai daqui preso também!” [sic]
“Quem impõe ordem aqui dentro sou eu. Não é o senhor não. Dentro da sua empresa o senhor manda. Na sua casa, o senhor manda.”
A testemunha, sem levantar a voz, diz: “Não estou discutindo”. Ouve de volta que não deve vir com “sarcasmo” (?), e que deve sentar-se “direito” [sic]. O juiz diz: “Não fale comigo”. Por quê? Porque isso seria “desacato” (!).
(Aos Santos Tomases que precisam ver para crer – não os culpo; é inacreditável mesmo –, aqui está.)
Ao trabalho. Como disse o velho partizam Stephane Hessel, “indignai-vos”.
Vejam quantas coisas dizemos com as palavras. Retomo uma das frases d’Ele, O Juiz: “Dentro da sua empresa o senhor manda. Na sua casa, o senhor manda.” Ali, quem “manda” é Ele, O Juiz.
Quer dizer que o Tribunal, o Fórum, o que for, equivale-se à casa do magistrado? À sua empresa? Estamento burocrático-jurídico é isso. A fala é paradigmática: traz às claras que Ele, O Juiz, torna privado o que é público: torna privado o órgão jurisdicional, que é público... e torna privada a linguagem, que é pública.
Porque é isso. O juiz que se vê autorizado a agir dessa forma – conferindo, portanto, a si mesmo uma autorização que a função não lhe dá – privatiza a linguagem. Ele diz aquilo que não poderia dizer em nenhum outro lugar. O que ele fala no fórum – que é sua casa, sua empresa – não está submetido aos critérios de verificação do mundo exterior. (Ou melhor: pensa não estar. Insiste em não estar. Porque está na sua casa. Na sua empresa.)
O direito brasileiro está preso ao paradigma do sujeito moderno. Se alguém tinha dúvida, veja de novo a gravação. E quantas vezes coisas desse tipo acontecem Brasil afora?
Ora, quem manda não é O Senhor, Juiz. Quem manda é... o Direito. O juiz solipsista recusa, portanto, as regras do próprio jogo de linguagem. Esse é o ponto. É como o jogador de futebol que pega a bola com as mãos fora da área. A diferença é que o jogador que insiste em fazer isso vai pra rua. Por que no Direito o juiz pode pegar a bola com a mão fora da área?
(Reparem ainda no dano menos óbvio que isso ainda traz ao Direito. Quando se reforça a lógica de que o juiz manda, coloca-se em risco todo juiz de boa-fé, que aceita os limites que lhe impõe o Direito, e toma uma decisão dura porque, bem, it’s the law. Quando se aceita a tese de que o fórum é a empresa do magistrado, também está aceita a tese de que o juiz “soltou o bandido” porque ele assim “quis”. E isso fragiliza o Direito. Prejudica os juízes corretos. E impõe a tese da voz das ruas.)
Sigo.
O que há em comum entre a Cena 1, 1981, e a Cena 2, 2019? Parece óbvio, mas vou explicar exatamente a partir daquilo que elas não têm em comum: o constrangimento.
Meu professor conseguiu, filosoficamente, elucidar para o juiz à época a maior das trivialidades: há uma realidade externa. Você, viciado em si mesmo, não é o único neste mundo no qual caiu.
Você não pode dizer o mundo; você não pode dizer o que quer. Há critérios. E esses critérios são públicos. Porque para você dizer, o que for, você só consegue fazê-lo por já estar inserido num paradigma intersubjetivo. O mundo e o direito não é que você quer ou acha que é.
Por que, em 2019, O Juiz (ainda) diz o que quer? Exatamente pela ausência de constrangimento. Porque nós falhamos e fomos incapazes de construir uma doutrina responsável por constranger epistemologicamente aquele que decide.
Lá em 1981, quando eu ainda era jovenzinho, quem constrangeu o juiz? Um professor. E que professor. E se a Cena 2 revela um verdadeiro estamento jurídico (lembremos Faoro), a Cena 1 já mostrou ex ante que a saída está no constrangimento epistemológico. E que um professor é capaz de fazer isso. Penso que, inconscientemente, aprendi o sentido de “constrangimento epistemológico” (hoje é verbete do meu Dicionário de Hermenêutica) naquela fria manhã no pequeno fórum da pequena cidade do interior do interior do Rio Grande do Sul.
Diz muito sobre a necessidade de uma doutrina que volte a doutrinar.
Rule of law, e não rule of judge.
Que aquela fria manhã de abril de 1981 sirva de lição para compreendermos o que ocorreu no dia de muito calor no fórum da cidade do interior de Minas Gerais.
Talkei?
Post scriptum: mesmo que o contexto de toda a gravação venha, na investigação, a mostrar alguma atitude inadequada da testemunha, nada justifica a humilhação e o escracho dado pelo juiz.
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Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.
Fonte: Conjur