Advogado pode receber honorário com dinheiro que é produto de crime? Por Marcelo Batlouni

bit.ly/2YSeiWh | O traficante recebe muitos milhões de reais da venda de drogas. Se é apanhado, paga o advogado com o dinheiro do tráfico. O funcionário público corrupto aceita propina durante toda uma vida de carreira pública. Se é apanhado, paga o advogado com o dinheiro da corrupção. Da mesma forma, o empresário que pagou o funcionário público para vencer licitações superfaturadas, se é apanhado, paga o advogado com aquele dinheiro ilícito do excesso dos contratos superfaturados. O marido mata a esposa e retira o dinheiro da conta bancária dela com o cartão cuja senha ele possuía. Se é apanhado, paga o advogado com o dinheiro que era dela.

Os advogados, justamente, cobram, quanto querem, e recebem quanto pagam pelos seus honorários para atuarem na defesa técnica das pessoas acusadas. Justo! Quem quer e pode pagar por uma defesa técnica especializada de excelentes advogados, pode fazê-lo, sem qualquer problema. Estes brilhantes Causídicos também têm todo o Direito de receber pelo seu inestimável serviço de Advocacia. A questão duvidosa começa, entretanto, quando deixam de realizar qualquer verificação a respeito da origem do dinheiro dos seus honorários. Muitos já se manifestaram em defesa do entendimento de que o advogado não é obrigado a investigar qualquer operação ou valor que envolva seu cliente, seja pela aplicação do princípio da ampla defesa, ou por limitar as suas prerrogativas funcionais, pela proteção do sigilo profissional ou por falta de previsão legal expressa.

O juiz, o promotor ou o policial da pequena comarca, fora dos exercícios das suas funções, qualquer um deles pode comprar um carro de uma pessoa que ele sabem estar sendo processado por pertencer a uma quadrilha que rouba veículos? Um médico cirurgião pode aceitar receber um rim através de uma pessoa que ele sabe que é traficante de órgãos? O proprietário de uma farmácia pode receber um lote de remédios que chegue através de ladrões de carga? O corretor de imóveis pode receber a sua comissão de um conhecido estelionatário? O Estado pode contratar alguém que sabe estar sendo processado por fraude em licitação? Se a resposta a essas perguntas é “não”; então por que somente o advogado pode receber os honorários de origem que sabe ou deveria saber serem de origem criminosa?

Ocorre que “receber”, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, configura crime de receptação previsto no artigo 180 do Código Penal. E dirão alguns, mas o advogado não necessariamente saberá que o dinheiro é produto de crime – então inexiste receptação nesse contexto. Mas a configuração exsurge facilmente na consideração do dolo eventual. O advogado do traficante, do corrupto etc. podem e devem supor que o dinheiro que lhes paga tenha origem criminosa. Para além da prática da receptação, conforme seja a forma utilizada para o recebimento do dinheiro, o fato também pode configurar crime de lavagem de dinheiro.

Se um corrupto paga o advogado com o dinheiro criminoso, na verdade não é ele quem paga, mas a sociedade ou a vítima de quem ele subtraiu aqueles valores. Então, a vítima e/ou sociedade pagam, tanto o dinheiro da corrupção, quanto o dinheiro da defesa do corrupto. É correto que isso aconteça? É moral?

Criada pela Suprema Corte dos Estados Unidos, chamada de “Willful Blindness Doctrine” (Doutrina da cegueira intencional), “Ostrich Instructions” (instruções de avestruz), “Conscious Avoidance Doctrine” (doutrina do ato de consciente ignorância), e outros, exige que o agente profissional tenha um mínimo de cuidado ao discernir a respeito da possibilidade da origem de bens, direitos e/ou valores, ao invés de, tal como a avestruz, enterrar a sua cabeça na terra para, propositadamente, ficar alheio à situação que o rodeia. Em resumo, parece conclusivo que o bom senso comum exige que todo profissional, não só os advogados, mas também eles, tenham o dever de se informar e verificar a respeito da origem dos valores que lhe são entregues a título de honorários, ou então deverão suportar e se explicar no âmbito de uma investigação criminal.

“É inútil dizer “estamos fazendo o possível”.
Precisamos fazer o que é necessário.” Winston Churchill

*Marcelo Batlouni Mendroni, promotor de Justiça/SP
Fonte: Estadão
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