Súmula 630 do STJ (confissão no tráfico de drogas) e a inversão do ônus probatório

bit.ly/2VKTzH2 | No dia 24 de abril deste ano, a Terceira Seção do STJ aprovou a Súmula 630, a qual possui a seguinte redação:

"Súmula 630 do STJ – A incidência da atenuante da confissão espontânea no crime de tráfico ilícito de entorpecentes exige o reconhecimento da traficância pelo acusado, não bastando a mera admissão da posse ou propriedade para uso próprio. (Súmula 630, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 24/04/2019, DJe 29/04/2019)

O fundamento legal pode até ter sentido, afinal, o réu não confessou a prática do delito imputado. Mas, como ocorre frequentemente no Direito, a prática forense revela quão maligno é este entendimento. A Súmula aprovada é mais uma ferramenta para inverter o ônus probatório. Caso o réu queira ser beneficiado pela atenuante, não basta confessar que a droga era sua, deve reconhecer também a intenção de vender.

A maior perversidade desse entendimento consiste na análise simplória que muitos magistrados fazem. A quantidade de droga apreendida é um indício quase absoluto de traficância.

Entretanto, frequentemente essa análise deixa de considerar que estamos falando de uma substância proibida por lei. Ou seja, quando os usuários compram droga, muitas vezes preferem comprar uma grande quantidade para evitar o risco ao qual se submetem na compra. Além disso, muitos usuários pedem para uma única pessoa comprar a droga para depois dividi-la, sem que seja auferido qualquer lucro por esta pessoa.

Por esse motivo, alguns magistrados consideram que quantidades ínfimas de droga, considerando um consumo mensal ou semanal, denotam traficância. Contra esse argumento-rei, raramente a palavra do réu é o suficiente para demonstrar o contrário.

Lembra-se que o interrogatório é um meio de prova e de defesa. É a única oportunidade que o réu tem de olhar nos olhos do juiz e dizer o que aconteceu, da forma que melhor lhe aprouver. Nesse sentido, a atenuante da confissão espontânea busca recompensar o réu que auxilia o esclarecimento dos fatos e aceita responsabilidade pelo crime que cometeu.

Ou seja, o réu se prejudica para auxiliar o esclarecimento dos fatos e é beneficiado por ter produzido provas contra si mesmo. Não é prejuízo suficiente reconhecer a propriedade da droga? Uma das questões centrais do processo é solucionada, restando apenas a necessidade de comprovar a traficância. Porém, entende-se que é justa a inaplicabilidade da atenuante. Afinal, o réu não fez todo o trabalho do Ministério Público, só uma parte. Réu bom é o réu que repete, uma a uma, as palavras da Polícia e do Ministério Público.

Frequentemente, a palavra do réu é o único meio de provar que a droga seria para consumo. Pois, assim como a presunção de inocência é aplicada como uma presunção de culpabilidade, a presunção que ocorre no processo de tráfico de drogas é a de traficância.

A jurisprudência deve ser revista para estabelecer critérios objetivos que diferenciem o traficante e o usuário, de forma a evitar condenações injustas. Porém, a Súmula 630 direciona justamente para o lado oposto, ou seja, mais condenações injustas. Demanda-se do réu inocente uma escolha diabólica: confessar que é traficante, mesmo não sendo; ou receber uma pena maior.

Não deveria ser função do Ministério Público comprovar que o réu é de fato um traficante? E, existindo dúvida, não deveria o réu ser beneficiado pela mesma? Como derrubar a prova-rainha da quantidade e a presunção de traficância? Infelizmente, nem com a palavra do acusado poderemos contar mais. Em um sistema onde impera o in dubio pro hell no lugar do in dubio pro reo (ROSA; KHALED JR., 2018, p. 17), isso é extremamente perigoso.

A Súmula 630 serve o único propósito de cercear a defesa do réu. Uma das maiores dores de um advogado criminalista é ter que dizer ao seu cliente que, apesar de sua inocência, é melhor confessar. É difícil e desestimulante ter que explicar que o juiz não vai acreditar na sua palavra e que ele provavelmente será condenado por um crime que não cometeu.

Com a propagação do entendimento sumular, o réu do tráfico de drogas viverá a experiência de Mersault, protagonista da obra O Estrangeiro, de Albert Camus: tendo algo a dizer e, ao mesmo tempo, não tendo nada a dizer.

"Mas, afinal, quem é o acusado? É importante ser o acusado. E tenho algo a dizer.” Mas, pensando bem, nada tinha a dizer. (CAMUS, 2014, p. 91)

A principal voz do processo penal será obrigada a confessar, mas confessar a verdade que o juiz inquisidor demanda. A verdade só é a real quando corresponde às expectativas do Inquisidor. E assim, é criada mais uma engrenagem do processo penal das aparências, onde impera o princípio do “finge que está se defendendo e eu finjo que estou te ouvindo”.

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REFERÊNCIAS

CAMUS, Albert. O Estrangeiro. 5. ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2014

ROSA, Alexandre Morais da; KHALED JR., Salah H. In dubio pro hell: profanando o sistema penal. 3. ed. Florianópolis: EMais, 2018.

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Felipe Rocha de Medeiros
Pós-Graduando em Ciências Criminais. Advogado criminalista.
Fonte: Canal Ciências Criminais
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