Quem entende de tecnologia será um profissional jurídico ainda melhor

bit.ly/2wVv5fh | Nas últimas semanas, profissionais e acadêmicos do campo jurídico dedicaram-se à discussão sobre transformações do Direito e da tecnologia. Não sem razão, já que o mundo, as rotinas de trabalho e os problemas jurídicos estão mudando em ritmo exponencial, evidência de que algo substancial está acontecendo nesta era tecnológica.

Neste cenário, podemos e devemos indagar sobre qual é ou deveria ser o papel do conhecimento jurídico tradicional no processo de inovação e das novas tecnologias na nossa profissão. Para tanto, estruturo minha exposição segundo três eixos: as profissões jurídicas, o ensino jurídico e, por fim, o Direito como área de saber.

As profissões jurídicas e tecnologia


O Direito está presente no exercício de várias profissões não jurídicas, assim como os profissionais jurídicos realizam diversas atividades que não são da sua área de formação. Uma administradora, por exemplo, precisa conhecer minimamente as regras jurídicas a que uma empresa está submetida para não cometer nenhum crime ou pensar estratégias de atuação; o inverso é um advogado que precisa conhecer com certo domínio as transações contábeis de uma empresa para compreender seu objeto e analisar a regulação jurídica a que está submetida.

Essas situações retratam quão importante é, atualmente, trabalhar de modo interdisciplinar. Esse não é um imperativo apenas para o profissional do Direito, mas para todos em relação ao contexto em que atuam.

Por essas razões, as transformações sociais fazem com que o exercício das profissões jurídicas hoje, principalmente em plena 4ª Revolução Industrial, seja bem distinto do século XIX. Além de profissões jurídicas que nem existiam antigamente, o Poder Judiciário não é mais o mesmo depois dos litígios de massa e da necessidade de dar conta de volumes enormes de processos. Se no início do século XX, 15 ministros do STF proferiam 800 decisões num ano[1], hoje os 11 gabinetes proferem 125 mil decisões num ano devido à otimização de fluxos de trabalho e do processo eletrônico[2].

Não há como imaginar hoje um advogado escrevendo uma peça sem utilizar um computador e um programa de edição de texto, não é mesmo? Muito menos pensar em um mundo sem a internet, que agilizou e encurtou muitas distâncias na rotina do profissional jurídico. Por meio dela é que a maioria acessará e lerá este artigo. São caminhos sem volta.

Enfim, a advocacia não é mais a mesma depois dos litígios de massa ou de áreas de atuação cada vez mais relacionadas com outras áreas do conhecimento. Vejam o Direito Digital, o Direito Econômico, entre outros. O mercado de trabalho no Direito se modificou e se diversificou bastante: há advogados que trabalham em grandes escritórios, em escritórios de boutique, em departamentos jurídicos ou em órgãos públicos. Por isso, não falamos na profissão jurídica, senão nas profissões jurídicas.

Devido a essa enorme gama de atuação, diversificada, especializada e interdisciplinar, o mercado exige que o profissional se atualize e corte custos operacionais, o que tem feito com que ele acabe incorporando a tecnologia no seu dia a dia. Se antes ele fazia tarefas repetitivas, hoje há máquinas que fazem com menos risco de erro as mesmas rotinas. Também surgem mais possibilidades de mensurar e combinar dados, permitindo análises e otimização do trabalho. Enfim, uma série de fatores são impactados pela chamada “tecnologização”.

Não traria mais competitividade que atividades repetitivas e padronizadas não sejam mais realizadas por uma pessoa, liberando-o para atuar na atividade fim e estratégica? Ou mesmo uma pesquisa de argumentos em uma base, na qual é possível buscar por palavras-chave, filtrando resultados, uma vez que os arquivos são digitais e a tecnologia permite auxiliar humanos nessa pesquisa?

Em relação especificamente a tarefas que a tecnologia pode afetar, temos:

  • tarefas mecânicas repetitivas, como identificar e qualificar as partes em peças de um processo já constituído. O software Sapiens, por exemplo, executa o processo administrativo da Advocacia-Geral da União, arquivando, controlando prazos e fluxos e integrando os sistemas do Poder Judiciário e do Poder Executivo;
  • tarefas cognitivas repetitivas, como preencher checklists em atividades de compliance ou fazer a triagem de ações conforme as questões jurídicas envolvidas. O software Victor, do STF, é um exemplo disso, pois, na fase inicial de sua implantação, ele lê todos os recursos extraordinários e identifica quais estão vinculados a temas de repercussão geral, aumentando a velocidade e eficiência da tramitação do seu processo;
  • tarefas cognitivas não repetitivas, como construir uma tese jurídica. Exemplos não faltam, como a aplicação da teoria do domínio do fato na seara penal ou a construção do estado de coisas inconstitucionais, no domínio constitucional.

Com isso, não quero dizer que não haja perigo da tecnologia no terreno das profissões jurídicas. Todavia, devemos discutir as ameaças reais para a sociedade, e não temores individuais. Por exemplo, a tecnologia, por si só, irá gerar desigualdade nas profissões, criando uma massa de pessoas sem formação para atuar com as máquinas, e uma pequena elite de pessoas é que atuará com tarefas não repetitivas? Como a tecnologia impactará o dia a dia de trabalho dos profissionais, em que medida? Como ela influenciará a cultura organizacional e a construção de carreiras nos escritórios e departamentos jurídicos (estágio, advocacia júnior etc.)? Como a tecnologia poderá promover o acesso à Justiça de toda a população? Isso irá gerar mais ou reduzirá litígios e conflitos sociais?

Todos esses são dilemas ainda não respondidos, mas que devemos, enquanto acadêmicos e profissionais jurídicos, promover, debater, pesquisar, atuar. Portanto, se você acha que as profissões jurídicas, por exemplo, devam promover o acesso a direitos e a uma sociedade mais justa e igualitária, esforços devem ser direcionados para debater e construir um saber jurídico baseado nessas premissas. Enfim, a tecnologia em si não é uma ameaça, mas a forma como é usada, assim como outros recursos, sim.

Ensino jurídico


A tecnologia oferece instrumentos para melhor compreender e racionalizar os processos de produção jurídica. Isso aumenta a capacidade do profissional de compreender o Direito e de construir o pensamento jurídico a partir da relação entre teoria e prática, adaptando a técnica jurídica às necessidades do mundo real. Isso não implica renunciar ao conhecimento tradicional, mas, para preparar juristas a cumprirem esse papel nesse mundo moderno, é preciso mudar a forma como vemos o ensino jurídico.

Há quem esteja com preocupações dirigidas ao prestígio e utilidade do profissional jurídico, já que o medo é que as máquinas substituam inteiramente nossas funções. Aí é que está o ponto. O trabalho intelectual dos juristas pode e deve ser valorizado mais do que nunca a partir dessas mudanças, justamente porque estamos nos dando conta de que muito (muito mesmo) da carga de trabalho que vem sendo realizada pelos profissionais pode ser automatizada, liberando-nos para nos debruçar em funções mais específicas e estratégicas.

Por consequência, essas novas funções demandarão um conhecimento jurídico ainda mais sólido dos profissionais. Teoria e prática nunca caminharam tão juntas como agora. Por isso mesmo, o ensino jurídico deve ter uma base extremamente sólida de teoria e conteúdo, digamos assim, mas associada à realidade tecnológica que vivemos e ao desenvolvimento de competências e habilidades que preparem o profissional para lidar com as novas demandas desse contexto.

Daí a importância de se pensar sobre qual o papel das diferentes formações jurídicas. O curso de graduação não forma apenas profissionais do Direito ou pessoas que simplesmente desejam um diploma, pois um ensino superior profissionalizante deve considerar a dimensão humanística e reflexiva. Também na pós-graduação é fundamental que se formem profissionais com capacidade crítica e reflexiva sobre sua própria prática, conforme diz Donald Schön. Portanto, há necessidade de promover o desenvolvimento de habilidades (i) para o mercado profissional; (ii) para o pensamento jurídico; (iii) para a vida.

E tudo isso envolve mais do que somente saber Direito. Ter noção de programação e desenvolver soft skills (comunicação interpessoal, trabalho em equipe etc.) podem fazer parte dos objetivos de ensino, sim. Formar pessoas que saibam raciocinar juridicamente não se resume à predição da decisão de determinado juiz ou à repetição da jurisprudência, mas também à construção de um argumento e de soluções sólidas e adequadas para um problema.

O ensino baseado em manuais e em resumos esquematizados nada mais é do que uma tentativa de cobrir uma finalidade: preparação para concursos que exigem memorização, seja a OAB, sejam os concursos públicos — e deve ser discutido nessas bases: ele prepara as pessoas para os concursos? Serve para a finalidade a que se propôs?

Já um curso que se propõe a preparar pessoas para serem cidadãos críticos e lidarem com tecnologia não é praticar um ensino baseado em manuais — o objetivo é diferente, a forma de ensinar é diferente, tudo é diferente.

Então, os questionamentos centrais de docentes e instituições deveriam ser: estamos formando alunos para realizarem tarefas que serão automatizadas? Se elaborar uma petição de litígio de massa que em breve será ou está sendo inserida num software, não estaríamos formando profissionais obsoletos? Estamos levando o Direito para outras pessoas, por exemplo, programadores que estão avançando a tecnologia? Os cursos jurídicos estão fomentando a desigualdade entre profissionais, criando uma massa de pessoas formadas que não encontrarão emprego nos escritórios no futuro? Eles estão inserindo os alunos na cultura das organizações? Estão levando o Direito para outras pessoas, por exemplo, os programadores responsáveis por avançar a tecnologia? E mais, estamos formando alunos para serem mais do que simples profissionais?

Enfim, a tecnologia é mais um fator basilar na consideração do tipo de profissional que se está formando. Logo, a nossa prática deve estar alinhada como que o ensino do Direito se quer, que tipo de egresso e de sociedade se almeja.

Pensar o Direito


A área do Direito pode ser vista como um sistema com raciocínio próprio, diferente dos demais. Contudo, vale ressaltar que o Direito não consiste em prever comportamentos e probabilidades de decisão do juiz de determinada comarca — há uma normatividade envolvida, por mais que predizer seja importante para poder aconselhar clientes e desempenhar bem a profissão; tampouco é uma prática apenas técnica e repetitiva, como saber fazer uma petição —, há uma prudência e um raciocínio intelectual crítico envolvido, por mais que uma pessoa que não saiba colocar seu raciocínio jurídico no formato determinado pela técnica estará desempenhando mal sua profissão.

Raciocínio jurídico não se limita a predizer como o juiz vai julgar. Entretanto, um jurista que dialoga com um programador para pensar em todas as possibilidades de litígio, antever possíveis soluções, pensar em interpretações e outras implicações a fim de programar um software está, também, desenvolvendo um raciocínio jurídico que servirá de sentido consolidado para os demais casos. E o melhor é que, com auxílio da tecnologia, precisará realizar esse trabalho de base apenas uma vez, aplicando-o de modo automatizado e poupando muito tempo. Com isso, torna-se possível, finalmente, o advogado debruçar-se no Direito em si.

Alertas


Já se fala em engenheiros jurídicos e arquitetos jurídicos, profissionais que estão sendo requisitados e absorvidos pelo mercado de trabalho para atender a demandas tecnológicas. Lawtechs e startups estão se expandindo mundo afora. Estão criando soluções que automatizam etapas do trabalho e propondo soluções inteligentes e tecnológicas, como softwares, para funções jurídicas que estão se tornando obsoletas.

Mas partindo de qual formação é que esses softwares estão sendo construídos se o profissional em questão não tem formação jurídica? Um administrador, engenheiro, matemático ou cientista de dados oferecerá um raciocínio limitado à sua área de formação. A pergunta que nos motiva: quem está pensando sobre o Direito nesse contexto? Que tipo de soluções essas pessoas estão construindo para os problemas jurídicos? Que tipo de sociedade essas escolhas estão moldando?

É de suma importância que profissionais jurídicos aptos estejam não somente participando, mas protagonizando os debates sobre Direito e tecnologia, e sobre a tal da “tecnologização” que tem sido tão falada.

Seria a “tecnologização” do Direito? Oras, o que há de mais novo é o que há de mais velho na estratégia dos advogados, como, por exemplo, prever a decisão do juiz. Com a tecnologia, isso tem sido possível de ser concretizado, o que nos impõe uma situação ainda mais desafiadora. A de ser um profissional jurídico melhor ainda, que entenda profundamente o conhecimento jurídico tradicional, além de áreas correlatas e, sem dúvida, de tecnologia.

Não haverá a substituição de todas as atividades jurídicas, mas, sim, das repetitivas e mecânicas. Para isso, a máquina estará a nosso favor e nos auxiliará quando necessitemos, como agora, enquanto escrevo este texto e o editor me ajuda a corrigir falhas de digitação. Mas, quem estará à frente das pessoas, de uma equipe interdisciplinar, com problemas complexos de diversas naturezas e impactos na sociedade? Um profissional jurídico, que terá melhores condições de lidar com todas as variáveis, tanto as jurídicas quanto as interpessoais.

Talvez o Direito é que andasse demasiadamente resumido a funções técnicas e meramente mecânicas e repetitivas, sendo o profissional jurídico absorvido por tarefas burocráticas. Já não mais, pois o futuro chegou.
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[1] Relatório de Atividades do STF de 1914, publicado na Revista do Supremo Tribunal, v. III, jan./jun. 1915, p. 173-174.
[2] Dados para 2017 e 2018, segundo estatísticas do STF, disponíveis no site do Tribunal: http://portal.stf.jus.br/textos/verTexto.asp?servico=estatistica

Por Marina Feferbaum
Fonte: Conjur
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