O caso Neymar deve ser analisado livre de emoções e idolatria – Por Jean Paulo Pereira

bit.ly/2XyKiyr | Como é do conhecimento de muitos, a Polícia Civil do estado do Rio de Janeiro, no exercício de suas atribuições, instaurou inquérito policial contra o futebolista Neymar Jr., por, supostamente, ter praticado o crime previsto no artigo 218-C, código penal (“divulgação de cena de estupro ou de cena de estupro de vulnerável, de cena de sexo ou de pornografia”).

E em que consiste tal tipo penal? Em curta análise de sua redação, apenas ao se observar o caput, se extrai:

"Art. 218-C.  Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio – inclusive por meio de comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática -, fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha cena de estupro ou de estupro de vulnerável ou que faça apologia ou induza a sua prática, ou, sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia:

(negrito nosso).

A parte final do crime em comento fora negritada, obviamente, por ser a parte que interessa ao presente estudo, afinal, em apertado resumo, fora em razão da divulgação das conversas entre o jogador Neymar Jr., e a suposta vítima do crime de estupro, que tal inquérito policial foi instaurado, porque, em dito diálogo, constatou-se o envio de fotos íntimas da mulher para o esportista.

E aqui começamos uma análise mais dogmática sobre o tema. Primeiramente, é muito perigoso falarmos em eventual atipicidade da conduta sob o argumento de que o jogador teria, ao divulgar tal conversa, ofuscado o rosto da outra interlocutora, sem qualquer intenção de denigrir sua imagem.

Mas, por qual razão perigoso? De forma muita precisa (e sem qualquer intenção de esgotar o tema, até porque seria impraticável), precisamos entender, de acordo com a teoria tripartida do crime (aquela que diz que crime consiste em fato típico, antijurídico/ilícito e culpável), o último elemento do substrato “fato típico”, qual seja, a tipicidade. Nas belas lições do sempre atual BITENCOURT (2017, p. 356),

"tipicidade é a conformidade do fato praticado pelo agente com a moldura abstratamente descrita na lei penal […] Um fato para ser adjetivado de típico precisa adequar-se a um modelo descrito na lei penal, isto é, a conduta praticada pelo agente deve subsumir-se na moldura descrita na lei.

Em outras palavras, para que a conduta praticada pelo agente seja enquadrada como crime, deve, em um primeiro momento, se enquadrar na exigência do tipo penal, isto é, se amoldar ao descrito em lei.

E, senhores, talvez para infelicidade de muitos (inclusive deste que esta escreve), a conduta do jogador se enquadra sim no artigo 218-C, Código Penal, razão pela qual, não há que se falar em qualquer hipótese de atipicidade.

E como derrubar o argumento de que a intenção do jogador, em momento algum, foi de identificar a vítima? Simples. Por infelicidade, ou talvez para garantir a aplicação do princípio da vedação à proteção deficiente (assunto que foge ao presente objetivo), o legislador não inseriu na descrição do crime em tela um especial fim de agir –, o qual, dogmaticamente, chamamos de “dolo específico” no direito penal –, como bem o fez em outros crimes que atentam contra a dignidade sexual, como por exemplo nos crimes de estupro (artigo 213, CP), importunação sexual (artigo 215-A, CP), escrito ou objeto obsceno (artigo 234, CP), etc.

Ora “especial fim de agir”, acima exposto, compreende-se no que chamamos de “elemento subjetivo do tipo”. Mas, como diferenciá-lo do “elemento objetivo do tipo”? Na melhor doutrina de Juarez CIRINO DOS SANTOS (2017, p. 84), aprendemos:

"[…] É importante saber que os elementos constitutivos do tipo se entrecruzam: elementos objetivos podem ser descritivos (coisa) ou normativos (alheia); elementos subjetivos também podem ser descritivos (o dolo) ou normativos (a intenção de apropriação, na expressão para si ou para outrem, do furto). Em alguns tipos legais as dimensões subjetiva e objetiva estão entrelaçadas: assim, o artifício, ardil ou fraude, no estelionato (art. 171), referem acontecimento externos impensáveis sem a consciência interna do engano […].

Logo, em não havendo no presente tipo analisado a presença de um elemento subjetivo específico – além do dolo, que é genérico –, não há qualquer fundamento para se sustentar a atipicidade da conduta, pois, apenas a ação de ofuscamento do rosto da vítima, não é o suficiente para se afirmar que não houve dolo na ação do jogador, pois, como já bem explicado, o crime exige apenas o dolo genérico, sem qualquer especial fim de agir.

Porém, avancemos a discussão. O próprio artigo em questão traz em seu bojo uma causa de exclusão de ilicitude, conforme se analisa:

"Exclusão de ilicitude 

§ 2º  Não há crime quando o agente pratica as condutas descritas no caputdeste artigo em publicação de natureza jornalística, científica, cultural ou acadêmica com a adoção de recurso que impossibilite a identificação da vítima, ressalvada sua prévia autorização, caso seja maior de 18 (dezoito) anos.

(negrito nosso).

Tal divulgação se encaixa em alguma das hipóteses de exclusão da ilicitude abraçadas pela lei? Ora, pois, evidente que não. Por lógico que tal divulgação das conversas, apesar de ter o legítimo intuito de defesa da própria honra (fato que este autor compreende), não envolve publicação de natureza jornalística, científica, cultural ou acadêmica.

Mas, ainda não podemos parar de falar das causas de exclusão do segundo substrato do crime, a ilicitude. Pode haver quem defenda que o jogador, ao expor tais conversas, agiu em legítima defesa da própria honra.

O que é o instituto da “legítima defesa”? Como bem extraímos do próprio Código Penal, significa:

"Legítima defesa

Art. 25 – Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.

(negrito nosso).

Em uma interpretação literal e, em respeito ao princípio da legalidade (norte do direito penal), tem-se que, para haver a ocorrência do instituto da “legítima defesa”, é importante que a injusta agressão ocorra de forma atual ou esteja na iminência de sua ocorrência. Assim, não se pode mencionar tal excludente de ilicitude para se salvaguardar de casos pretéritos.

Para melhor compreensão do estudado, é crucial mencionar os ensinamentos de Paulo César BUSATO (2017, p. 467), o qual leciona:

"A situação de agressão injusta que permite a atuação em legítima defesa deve manter uma relação de tempo presente para com a atitude legitimada. Isso quer dizer que a agressão sofrida, que permite a atuação em legítima defesa, há de estar acontecendo (atual), ou em vias de acontecer (iminente). Assim, não se pode repelir licitamente agressões já cessadas, nem se antecipar repelindo as que ainda não aconteceram. Não se encontra em legítima defesa aquele que, após ser agredido, dirige-se à sua residência para armar-se e retorna ao local da agressão para revidar o ataque.

Diante de todo o explanado, cumpre refutar ainda que as mensagens trocadas entre o jogador e a outra interlocutora tiveram início no mês de março do presente ano, tendo sido essas expostas a público no dia 1º de junho de 2019. Portanto, não podemos afirmar que houve legítima defesa da própria honra, haja vista não ter sido a injusta agressão (suposta extorsão) atual ou iminente.

Aqui cabe um pequeno contraponto do autor. Em tempos globais, onde a era digital já não é mais um prenúncio, mas, sim uma contemporaneidade, é de pensar, quiçá, em uma nova espécie de legítima defesa, a qual contemple, além dos clássicos exemplos trazidos pelos manuais de direito penal, meios digitais de repreensão da atual e iminente agressão, como por exemplo print screens ou alguma forma de armazenamento de dados, etc. Todavia, esta é uma discussão para uma outra ocasião.

Caro leitor que até aqui me concedeu sua confiança, peço que, antes do martírio, tenha um pouco mais de paciência. O presente autor, diferente do que pode estar pensando, não defende um estado democrático de direito pautado em um amplo e desenfreado poder punitivista. Pelo contrário. É necessário se ter como ponto de partida, antes de qualquer discussão acadêmica, que o direito penal representará sempre a ultima ratio do nosso ordenamento jurídico.

Contudo, o presente artigo, como bem sugere seu título, pede que as emoções e a idolatria sejam deixadas de lado. O escopo aqui é simples: analisar o caso aos olhos de um jurista, de forma cética, porém, cautelosa.

É manifesto que o atleta Neymar Jr. em momento algum quis danificar a imagem da suposta vítima do crime de estupro, pois, como já bem explicado, fora ofuscado seu rosto.

E, apesar de o pai do jogador ter afirmado “preferir um crime de internet ao estupro”, é evidente que tal declaração se deu em razão da instauração do inquérito policial para apuração do, em tese, crime do artigo 218-C, Código Penal.

Neste raciocínio, é importante trazer à tona uma outra causa de exclusão da ilicitude, qual seja, o “estado de necessidade”, disciplinado também pelo Código Penal, em seu artigo 24, que assim dispõe:

"Estado de necessidade

Art. 24 – Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se.


De acordo com a literalidade da lei, constata-se o estado de necessidade quando há a presença de um conflito de bens jurídicos tutelados (bens esses que devem pertencer a pessoas distintas), que se soluciona com o sacrifício, diante de autorização da própria norma, de um bem em relação ao outro.

Ao relatarmos – novamente – o caso em apreço, lembramos que a divulgação das imagens da suposta vítima de estupro foi, a priori (aguardando futuros desfechos) para se defender de uma acusação de estupro que, ao que tudo indica, era, em verdade, uma investida no crime de extorsão.

A fim de se proteger de uma ameaça a seu patrimônio – assim como, por óbvio, a sua honra, afinal, houve uma notitia criminis de estupro –, o jogador Neymar Jr. optou por divulgar conversas com a suposta da vítima, escolhendo assim, sacrificar a dignidade sexual desta (pois é isto que o artigo 218-C tutela), para proteger seu patrimônio e sua honra.

Porém, nosso código penal, em sua literalidade (como já bem exposto), não ressalta a valoração entre os bens jurídicos a serem sacrificados, isto é, não traz uma escala de importância entre os bens jurídicos tutelados pelo ordenamento jurídico. A fim de sanar tal impasse, nossa legislação acabou por adotar a “teoria unitária” (MASSON, 2017, p. 438), que estabelece que o estado de necessidade, consistindo em uma causa de exclusão de ilicitude, exige que o bem a ser sacrificado seja de valor igual ou inferior ao bem jurídico preservado, além de cobrar razoabilidade na ação do agente.

Logicamente que tal análise deve levar em consideração todo o contexto atual. Em eventual extorsão, quanto foi cobrado? Com a divulgação das conversas, o jogador teve ciência que possui em sua conta pessoal da rede social “Instagram” mais de cem milhões de seguidores?

Tamanha repercussão internacional negativa em cima do jogador, às vésperas da competição sul-americana mais importante (Copa América), não afetará o rendimento do atleta em campo? Seria a publicitação das conversas íntimas uma forma de se blindar das manchetes jornalísticas do Brasil e do mundo? Por óbvio, tal análise, em uma eventual ação criminal para se apurar o crime do artigo 218-C, Código Penal, deverá ser analisada com estas e outras circunstâncias do caso concreto.

Em acréscimo, cumpre salientar que o presente autor ainda poderia se manifestar em relação a uma das hipóteses de exclusão do terceiro substrato do crime (culpabilidade), a falta da “potencial consciência da ilicitude”, porém, tal tema demandaria muito mais tempo e espaço e, por ora, já é de muito contento deste escritor que você, respeitado leitor, tenha-o dado voz até o momento.

Por fim, cumpre destacar ainda que o presente trabalho buscou trazer uma visão mais científica do direito penal, deixando de lado quaisquer simpatias, não realizando também um estudo processual, não citando, por exemplo, as hipóteses de não persecução penal. Porém, quem sabe numa próxima?

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REFERÊNCIAS

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral 1. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

BUSATO, Paulo César. Direito Penal: parte geral. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2017.

CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito penal: parte geral. 7. ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2017.

MASSON, Cleber. Direito penal esquematizado: parte geral, volume 1. 11. ed. São Paulo:  Método, 2017.

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Jean Paulo Pereira
Advogado criminalista. Pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal pela Academia Brasileira de Direito Constitucional. Pós-graduando em Direito Penal pela Faculdade Arnaldo (Belo Horizonte).
Fonte: Canal Ciências Criminais
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