bit.ly/2LwJ43J | “Eu me sentia como uma escrava”, é com essa frase que Solange define os quase 30 anos em que passou na casa de uma família na Zona Sul de São Paulo. Em entrevista exclusiva ao G1, em parceria com o Fantástico, ela contou sobre as humilhações que viveu e quando tomou coragem de buscar seus direitos na Justiça, onde conseguiu uma indenização de R$ 1 milhão por ter sido submetida a situação análoga à escravidão.
O advogado da família condenada disse que esse tipo de relação "jamais aconteceu entre as partes" e que vai recorrer da decisão. Ainda cabe recurso da decisão ao Tribunal Superior do Trabalho.
(...)
Solange tinha apenas 7 anos quando deixou sua casa em Curitiba para viver em São Paulo. Hoje, aos 39 anos, ela conta que foi oferecida à irmã da dona da casa em que sua tia fazia faxina. “Ela prometeu para mim escola, boa casa, e que eu ia morar em São Paulo, com boa residência, família e acho que a minha mãe deve ter acreditado, aí me deu. Ela me trouxe aqui em 1987”, relata Solange.
Quando o assunto é a mãe, os olhos de Solange se enchem de lágrimas, apesar de ela não querer voltar a ter contato, ela diz que ainda sofre com o que aconteceu. “Quando eu fui virar as costas para ver minha mãe, ela já tinha ido, eu não vi a minha mãe ir embora. Nesse dia eu senti um vazio, que até hoje eu sinto, uma dor no coração. É uma coisa que até hoje me dói saber”.
Assim que entrou no carro para começar a viagem para São Paulo, Solange passou mal e já começou a sentir que as coisas não sairiam conforme o prometido. Apesar de ter partido de Curitiba com todos os documentos, antes mesmo de chegar em São Paulo, Solange se tornou Karina.
“Ela disse assim para mim: ‘Como eu não lembro seu nome, eu uso o Laquê Karina e não vou esquecer jamais. Seu nome de hoje em diante vai ser Karina’”, conta Solange.
Não foi uma adoção oficial, de papel passado. Solange foi apresentada aos membros da família como um misto de filha e empregada. “Eu me senti muito ‘acoadinha’, parecendo um ratinho perdido ali em um monte de gente. Nesse dia eu não trabalhei não, porque eu estava com medo, nem saí do lugar”.
As sete primeiras noites de Solange foram em um banheiro. Ela conta que dormia entre o box e o vaso sanitário. Lavou suas roupas no banheiro e a patroa levou para a empregada estender. Segundo ela, não era permitido que a ela tivesse contato com a funcionária que trabalhava lá.
(...)
Solange conta que itens básicos de higiene como absorventes e papel higiênico eram restritos na casa. “Eu não usava papel higiênico, papel higiênico era da família, eu usava jornal”, conta ela. Solange ainda cortava o absorvente da patroa para poder usar.
Ela diz também que sempre utilizava roupas largas e que não podia ter cabelo comprido, pois a família achava que era falta de higiene. “Ela falava que cabelo grande era falta de higiene, mas eu via as netas dela ter cabelo grande e não entendia. Eu fiquei revoltada uma vez que eu raspei na máquina zero”.
Uma vizinha de Solange, que não quis se identificar, confirma a versão dela e diz que a conheceu ainda adolescente e que ela sempre utilizava roupas muito grandes e cabelo curto. “Ela se vestia com roupas maiores que o número dela, sapatos maiores, porque eu acho que essas roupas eram doadas”, diz a vizinha.
Ela conta também que tentava se aproximar de Solange, mas era impedida. Quando a patroa saía de casa ela batia na porta para tentar falar com a menina, mas Solange falava que estava trancada.
“Eu pensava, mas a Karina pode pedir ajuda, a janela é próxima da rua, eu ficava imaginando”, diz a vizinha. “É muito triste nos dias de hoje uma pessoa ser prisioneira e ninguém fazer nada para ajudar, ela ficou muito tempo presa, não dá para acreditar que nessa situação que a gente está hoje uma pessoa viver isso, é triste de encarar”, completa ela.
Solange conta que itens básicos de higiene como absorventes e papel higiênico eram restritos na casa. “Eu não usava papel higiênico, papel higiênico era da família, eu usava jornal”, conta ela. Solange ainda cortava o absorvente da patroa para poder usar.
Ela diz também que sempre utilizava roupas largas e que não podia ter cabelo comprido, pois a família achava que era falta de higiene. “Ela falava que cabelo grande era falta de higiene, mas eu via as netas dela ter cabelo grande e não entendia. Eu fiquei revoltada uma vez que eu raspei na máquina zero”.
Uma vizinha de Solange, que não quis se identificar, confirma a versão dela e diz que a conheceu ainda adolescente e que ela sempre utilizava roupas muito grandes e cabelo curto. “Ela se vestia com roupas maiores que o número dela, sapatos maiores, porque eu acho que essas roupas eram doadas”, diz a vizinha.
Ela conta também que tentava se aproximar de Solange, mas era impedida. Quando a patroa saía de casa ela batia na porta para tentar falar com a menina, mas Solange falava que estava trancada.
“Eu pensava, mas a Karina pode pedir ajuda, a janela é próxima da rua, eu ficava imaginando”, diz a vizinha. “É muito triste nos dias de hoje uma pessoa ser prisioneira e ninguém fazer nada para ajudar, ela ficou muito tempo presa, não dá para acreditar que nessa situação que a gente está hoje uma pessoa viver isso, é triste de encarar”, completa ela.
O trabalho sempre esteve presente na vida de Solange. Mesmo em Curitiba, ela conta que já trabalhava, pois a família era muito humilde. “Na época, eu morava na favela e o Ceasa era perto, eu ia no Ceasa para carregar uma moedinha dos idosos e dava para minha mãe”.
Assim que chegou na casa de sua patroa em São Paulo, ela disse que começou a ajudar em trabalhos domésticos. Com o tempo as responsabilidades foram aumentando. Ela lavava, passava, cozinhava, cuidava da casa e no fim cuidou dos patrões que eram idosos.
Porém, nunca recebeu qualquer tipo de salário por isso. Aos 18 anos ela foi registrada como empregada doméstica para que o INSS fosse pago. Ela disse que na carteira possuía um salário, mas que o valor nunca chegou em sua mão, pois eram debitados descontos como convênio médico, objetos quebrados ou quando ela queria comprar algo, como por exemplo, um walkman e uma máquina fotográfica que guarda até hoje.
“Na época, e me lembro que foi em 1998, o salário mínimo era de R$ 130. Foi descontado o convênio, o INSS e não sobrava nada para mim. Sobrava o que? R$ 0,20? R$ 1? Você quer na sua mão?”, disse ela.
Solange guarda até hoje a caderneta onde eram feitos os cálculos de seu salário. “Uma vez eu quebrei uma jarra sem querer, foi lá no mercado e descontou R$ 3 de jarra. Manchei a calça branca, descontou R$ 42 de calça. Era tudo descontado, tudo o que eu quebrava era descontado. Nunca o dinheiro chegava na minha mão”, conta ela.
Em entrevista, o advogado da família Carlos Eduardo Quintieri, disse que o registro se destinou à Previdência Social. “Ela teve um registro da carteira de trabalho dela quando ela completou 18 anos, mas esse registro foi para fins previdenciários. A preocupação da família era com o futuro dela perante a Previdência Social”, disse ele.
Quanto ao dinheiro, o advogado disse que Solange tinha acesso ao que queria. “Ela tinha dinheiro em mãos que ela podia comprar produtos de higiene, CD de cantor sertanejo que ela gostava, ela escolhia o que ela fazia com o dinheiro dela. Muitas vezes, ela pedia que fosse comprado, outras vezes, ela mesma adquiria, sem qualquer cerceamento por parte da família”, disse Quintieri.
Solange conta que dos 7 aos 36 anos, período em que viveu na casa, ela não chegou a construir qualquer tipo de vínculo, nem amigos, nem namorado, que ‘era algo de outro mundo’. Ela diz que nunca foi à escola, nem se aproximou de vizinhos. “Namorado era coisa de outro mundo, outro planeta, eu não podia namorar”, relembra ela.
Ela conta que até mesmo acesso ao telefone era proibido. “Antigamente tinha aquele telefone que discava. Ela tinha um cadeadinho que ela colocava quando ela saia. Mesmo assim, ela não garantia porque quando o telefone tocava eu ia lá e atendia, aí ela começou a tirar do fio e esconder. Ela fez uma chave no quarto dela aí ela trancava tudo quando ela saia, até a agenda de telefone”.
Solange relata que não podia sair para resolver suas coisas sozinha, sempre era acompanhada por algum familiar. “Não saía, quando eu saía eu ia com a nora, com os dois netos, com ela, mas grudada assim, como se tivesse em uma cadeia e tivesse que ter uns carcereiros atrás de mim”.
Solange conta que começou a montar quebra-cabeça quando cuidava do seu patrão que teve Alzheimer. “Eu fazia quebra-cabeça até às 3h e acordava de novo às 6h”, diz ela, um dos jogos que ela montou possuía 1.500 peças e ela levou 1 ano e nove meses para completar.
“A minha cabeça estava meio neurótica daí eu disse eu vou ter que fazer alguma terapia. Aí eu optei por quebra-cabeça, o meu primeiro foi um Homem-Aranha de 500 peças demorei uns três meses para montar”.
Quando comenta sobre a sua saída, Solange diz “tudo poderia ter sido diferente”, para ela a conquista da liberdade se deu em um momento em que ela não aguentava mais as humilhações das netas de sua patroa, que já estava doente.
A decisão para deixar o lar em que morou durante 30 anos de sua vida, não foi fácil. Meses antes de ir embora ela guardava um celular em bolsinha e lá se comunicava com enfermeiros, fisioterapeutas e outros empregados de sua patroa com quem desenvolveu relações de amizade.
Uma dessas pessoas era a fisioterapeuta Suely Kanigai que prestou serviços para a família onde Solange morava durante 4 meses. A fisioterapeuta conta que durante os atendimentos Solange começou a contar sua história.
“A princípio eu fiquei bem assustada, eu achei até que não era possível o que estava acontecendo ali com ela, aí aos poucos eu fui vendo que tudo o que ela falava realmente era verdade e eu comecei a ter um apego por ela e eu disse que ela poderia sempre contar comigo. Ela me contou que ela tinha um celularzinho e pediu para me ligar. Todas as noites ela me ligava”, diz Suely.
Solange decidiu sair de casa no dia em uma das netas de sua patroa a acusou de estar fazendo orgia com o enfermeiro que frequentava a casa. “A neta gritou que eu estava fazendo orgia dentro do quarto. Ela disse enquanto o enfermeiro estiver aí você não volta mais. E chamou o sobrinho dela”, conta Solange.
Para a mulher aquilo foi a gota d’água, ela deixou a casa durante a madrugada com a roupa do corpo e um walkman. “Eu chorei muito, chorei até ás 3h da manhã. Eu não esperava que fosse acontecer isso. Eu imaginei qualquer coisa, menos essa cena”, disse ela.
Assim que saiu da casa, Solange dormiu na casa de uma amiga e no dia seguinte procurou Suely. Ela ficou na casa da fisioterapeuta por 1 ano. Suely conta que ficou sensibilizada ao ver o modo como Solange chegou em sua casa. “Ela estava em choque, porque eu acho que nem ela estava acreditando no que tinha acontecido, que ela tinha tomado coragem de sair de lá, mas ela estava firme”.
Depois de 30 anos sendo conhecida como Karina, o primeiro passo de Solange foi mudar a maneira como era chamada.
“Depois que eu sai da lá eu já falei para todo mundo que meu nome é sol que brilha que saiu das trevas. Saiu para brilhar que esses anos todos eu estava no escuro, agora eu quero só brilhar, eu acho que eu tenho esse direito”.
Ela diz que ainda quer estudar e realizar os seu sonho de tratar os dentes. “Eu estou começando a engatinhar, estou começando a viver como uma criança. Sabe quando uma criança nasce? Sai da barriga da mãe? É assim que eu me sinto. Eu saí da barriga agora, faz dois anos e nove meses”.
Hoje, Solange vive em Diadema com o namorado. Ela trabalha e é vinculada a uma empresa que oferece faxinas. Porém, ela ainda faz faxina para os antigos patrões. Ela diz que atualmente eles pagam a ela corretamente pelos serviços prestados e que ser analfabeta dificulta a busca por emprego.
Quando questionado sobre o motivo de fazer faxina no lugar onde ela diz ter sido humilhada, ela defende que é por necessidade. “Eu não vou lá porque eu gosto de ver eles, eu vou lá para trabalhar, ganhar meu salário, eu sai de lá sem nada. Nem R$ 0,50 no bolso eu não tinha. Eu tinha que me virar. Depois que eu entrei com o processo que ela me chamou de volta”, diz Solange.
Em uma mala trancada com cadeado Solange guarda parte dos trinta anos que viveu na casa da família. Entre os objetos, estão: sua cartilha, os bonecos de Zezé de Camargo e Luciano, um livro de receitas de uma novela que gostava, seus documentos, a caderneta com seus salários, fotos e um walkman. Todos esses objetos ela recuperou depois que saiu da casa em que morava.
Foi escutando o seu rádio que ela conheceu os advogados Estácio Moraes e Fernando Zanellato que falavam sobre Direito do Trabalho em um programa. Solange já havia passado por três profissionais que não acreditaram em sua história, até encontrar Estácio e Fernando.
Fernando conta que durante o programa Solange começou a mandar diversos áudios para o telefone divulgado, mas, como ele não podia ouvir naquele momento, ele pedia para ela escrever, mas ela continuava a mandar áudios e ligar para ele. Devido a insistência, ele resolveu ouvir a história da mulher.
“Eu pensei ou é grave ou é uma pessoa qualquer inventando, também de outro lado que inventam na sociedade e agendamos com ela aqui no escritório para fazer uma triagem”, conta Zanellato.
Os advogados contam que, em primeira instância, o juiz entendeu que não havia trabalho análogo ao escravo, mas, sim, um trabalho proibido porque Solange era menor de idade durante um período em que realizou o serviço.
Em segunda instância a decisão foi diferente “O Tribunal Regional de São Paulo através de três juízes, após analisarem todas as provas e todos os fatos, se convenceram da existência de um trabalho análogo ao escravo”, diz Estácio Moraes.
O Tribunal fixou um valor de R$ 1 milhão de indenização que será pago em 21 anos. A decisão ainda cabe recurso ao Tribunal Superior do Trabalho. “Nós entendemos que os fatos e as provas não podem ser mais reexaminados o que pode ser discutido é em relação ao valor”, diz Estácio.
O advogado da família, Carlos Eduardo Quintieri, defende que nunca houve relação análoga à escravidão entre Solange e a família. Ele disse que a decisão é “injusta e divorciada da realidade dos fatos”. O advogado disse que a defesa irá recorrer da decisão.
A decisão foi tomada pelo TRT da 2ª Região considerou que Solange vivia em condição análoga a escravidão na casa onde viveu por quase 30 anos. Cabe recurso ao TST. Advogado da família disse que vai recorrer.
*Imagem TV Globo/Reprodução
Por Beatriz Magalhães
Fonte: G1
O advogado da família condenada disse que esse tipo de relação "jamais aconteceu entre as partes" e que vai recorrer da decisão. Ainda cabe recurso da decisão ao Tribunal Superior do Trabalho.
(...)
Solange tinha apenas 7 anos quando deixou sua casa em Curitiba para viver em São Paulo. Hoje, aos 39 anos, ela conta que foi oferecida à irmã da dona da casa em que sua tia fazia faxina. “Ela prometeu para mim escola, boa casa, e que eu ia morar em São Paulo, com boa residência, família e acho que a minha mãe deve ter acreditado, aí me deu. Ela me trouxe aqui em 1987”, relata Solange.
Quando o assunto é a mãe, os olhos de Solange se enchem de lágrimas, apesar de ela não querer voltar a ter contato, ela diz que ainda sofre com o que aconteceu. “Quando eu fui virar as costas para ver minha mãe, ela já tinha ido, eu não vi a minha mãe ir embora. Nesse dia eu senti um vazio, que até hoje eu sinto, uma dor no coração. É uma coisa que até hoje me dói saber”.
Assim que entrou no carro para começar a viagem para São Paulo, Solange passou mal e já começou a sentir que as coisas não sairiam conforme o prometido. Apesar de ter partido de Curitiba com todos os documentos, antes mesmo de chegar em São Paulo, Solange se tornou Karina.
“Ela disse assim para mim: ‘Como eu não lembro seu nome, eu uso o Laquê Karina e não vou esquecer jamais. Seu nome de hoje em diante vai ser Karina’”, conta Solange.
Não foi uma adoção oficial, de papel passado. Solange foi apresentada aos membros da família como um misto de filha e empregada. “Eu me senti muito ‘acoadinha’, parecendo um ratinho perdido ali em um monte de gente. Nesse dia eu não trabalhei não, porque eu estava com medo, nem saí do lugar”.
As sete primeiras noites de Solange foram em um banheiro. Ela conta que dormia entre o box e o vaso sanitário. Lavou suas roupas no banheiro e a patroa levou para a empregada estender. Segundo ela, não era permitido que a ela tivesse contato com a funcionária que trabalhava lá.
(...)
Regras da casa
Solange conta que itens básicos de higiene como absorventes e papel higiênico eram restritos na casa. “Eu não usava papel higiênico, papel higiênico era da família, eu usava jornal”, conta ela. Solange ainda cortava o absorvente da patroa para poder usar.
Ela diz também que sempre utilizava roupas largas e que não podia ter cabelo comprido, pois a família achava que era falta de higiene. “Ela falava que cabelo grande era falta de higiene, mas eu via as netas dela ter cabelo grande e não entendia. Eu fiquei revoltada uma vez que eu raspei na máquina zero”.
Uma vizinha de Solange, que não quis se identificar, confirma a versão dela e diz que a conheceu ainda adolescente e que ela sempre utilizava roupas muito grandes e cabelo curto. “Ela se vestia com roupas maiores que o número dela, sapatos maiores, porque eu acho que essas roupas eram doadas”, diz a vizinha.
Ela conta também que tentava se aproximar de Solange, mas era impedida. Quando a patroa saía de casa ela batia na porta para tentar falar com a menina, mas Solange falava que estava trancada.
“Eu pensava, mas a Karina pode pedir ajuda, a janela é próxima da rua, eu ficava imaginando”, diz a vizinha. “É muito triste nos dias de hoje uma pessoa ser prisioneira e ninguém fazer nada para ajudar, ela ficou muito tempo presa, não dá para acreditar que nessa situação que a gente está hoje uma pessoa viver isso, é triste de encarar”, completa ela.
Regras da casa
Solange conta que itens básicos de higiene como absorventes e papel higiênico eram restritos na casa. “Eu não usava papel higiênico, papel higiênico era da família, eu usava jornal”, conta ela. Solange ainda cortava o absorvente da patroa para poder usar.
Ela diz também que sempre utilizava roupas largas e que não podia ter cabelo comprido, pois a família achava que era falta de higiene. “Ela falava que cabelo grande era falta de higiene, mas eu via as netas dela ter cabelo grande e não entendia. Eu fiquei revoltada uma vez que eu raspei na máquina zero”.
Uma vizinha de Solange, que não quis se identificar, confirma a versão dela e diz que a conheceu ainda adolescente e que ela sempre utilizava roupas muito grandes e cabelo curto. “Ela se vestia com roupas maiores que o número dela, sapatos maiores, porque eu acho que essas roupas eram doadas”, diz a vizinha.
Ela conta também que tentava se aproximar de Solange, mas era impedida. Quando a patroa saía de casa ela batia na porta para tentar falar com a menina, mas Solange falava que estava trancada.
“Eu pensava, mas a Karina pode pedir ajuda, a janela é próxima da rua, eu ficava imaginando”, diz a vizinha. “É muito triste nos dias de hoje uma pessoa ser prisioneira e ninguém fazer nada para ajudar, ela ficou muito tempo presa, não dá para acreditar que nessa situação que a gente está hoje uma pessoa viver isso, é triste de encarar”, completa ela.
Trabalho
O trabalho sempre esteve presente na vida de Solange. Mesmo em Curitiba, ela conta que já trabalhava, pois a família era muito humilde. “Na época, eu morava na favela e o Ceasa era perto, eu ia no Ceasa para carregar uma moedinha dos idosos e dava para minha mãe”.
Assim que chegou na casa de sua patroa em São Paulo, ela disse que começou a ajudar em trabalhos domésticos. Com o tempo as responsabilidades foram aumentando. Ela lavava, passava, cozinhava, cuidava da casa e no fim cuidou dos patrões que eram idosos.
Porém, nunca recebeu qualquer tipo de salário por isso. Aos 18 anos ela foi registrada como empregada doméstica para que o INSS fosse pago. Ela disse que na carteira possuía um salário, mas que o valor nunca chegou em sua mão, pois eram debitados descontos como convênio médico, objetos quebrados ou quando ela queria comprar algo, como por exemplo, um walkman e uma máquina fotográfica que guarda até hoje.
“Na época, e me lembro que foi em 1998, o salário mínimo era de R$ 130. Foi descontado o convênio, o INSS e não sobrava nada para mim. Sobrava o que? R$ 0,20? R$ 1? Você quer na sua mão?”, disse ela.
Solange guarda até hoje a caderneta onde eram feitos os cálculos de seu salário. “Uma vez eu quebrei uma jarra sem querer, foi lá no mercado e descontou R$ 3 de jarra. Manchei a calça branca, descontou R$ 42 de calça. Era tudo descontado, tudo o que eu quebrava era descontado. Nunca o dinheiro chegava na minha mão”, conta ela.
O que diz o advogado da família
Em entrevista, o advogado da família Carlos Eduardo Quintieri, disse que o registro se destinou à Previdência Social. “Ela teve um registro da carteira de trabalho dela quando ela completou 18 anos, mas esse registro foi para fins previdenciários. A preocupação da família era com o futuro dela perante a Previdência Social”, disse ele.
Quanto ao dinheiro, o advogado disse que Solange tinha acesso ao que queria. “Ela tinha dinheiro em mãos que ela podia comprar produtos de higiene, CD de cantor sertanejo que ela gostava, ela escolhia o que ela fazia com o dinheiro dela. Muitas vezes, ela pedia que fosse comprado, outras vezes, ela mesma adquiria, sem qualquer cerceamento por parte da família”, disse Quintieri.
Solidão
Solange conta que dos 7 aos 36 anos, período em que viveu na casa, ela não chegou a construir qualquer tipo de vínculo, nem amigos, nem namorado, que ‘era algo de outro mundo’. Ela diz que nunca foi à escola, nem se aproximou de vizinhos. “Namorado era coisa de outro mundo, outro planeta, eu não podia namorar”, relembra ela.
Ela conta que até mesmo acesso ao telefone era proibido. “Antigamente tinha aquele telefone que discava. Ela tinha um cadeadinho que ela colocava quando ela saia. Mesmo assim, ela não garantia porque quando o telefone tocava eu ia lá e atendia, aí ela começou a tirar do fio e esconder. Ela fez uma chave no quarto dela aí ela trancava tudo quando ela saia, até a agenda de telefone”.
Solange relata que não podia sair para resolver suas coisas sozinha, sempre era acompanhada por algum familiar. “Não saía, quando eu saía eu ia com a nora, com os dois netos, com ela, mas grudada assim, como se tivesse em uma cadeia e tivesse que ter uns carcereiros atrás de mim”.
Quebra-cabeça
Solange conta que começou a montar quebra-cabeça quando cuidava do seu patrão que teve Alzheimer. “Eu fazia quebra-cabeça até às 3h e acordava de novo às 6h”, diz ela, um dos jogos que ela montou possuía 1.500 peças e ela levou 1 ano e nove meses para completar.
“A minha cabeça estava meio neurótica daí eu disse eu vou ter que fazer alguma terapia. Aí eu optei por quebra-cabeça, o meu primeiro foi um Homem-Aranha de 500 peças demorei uns três meses para montar”.
Liberdade
Quando comenta sobre a sua saída, Solange diz “tudo poderia ter sido diferente”, para ela a conquista da liberdade se deu em um momento em que ela não aguentava mais as humilhações das netas de sua patroa, que já estava doente.
A decisão para deixar o lar em que morou durante 30 anos de sua vida, não foi fácil. Meses antes de ir embora ela guardava um celular em bolsinha e lá se comunicava com enfermeiros, fisioterapeutas e outros empregados de sua patroa com quem desenvolveu relações de amizade.
Uma dessas pessoas era a fisioterapeuta Suely Kanigai que prestou serviços para a família onde Solange morava durante 4 meses. A fisioterapeuta conta que durante os atendimentos Solange começou a contar sua história.
“A princípio eu fiquei bem assustada, eu achei até que não era possível o que estava acontecendo ali com ela, aí aos poucos eu fui vendo que tudo o que ela falava realmente era verdade e eu comecei a ter um apego por ela e eu disse que ela poderia sempre contar comigo. Ela me contou que ela tinha um celularzinho e pediu para me ligar. Todas as noites ela me ligava”, diz Suely.
Solange decidiu sair de casa no dia em uma das netas de sua patroa a acusou de estar fazendo orgia com o enfermeiro que frequentava a casa. “A neta gritou que eu estava fazendo orgia dentro do quarto. Ela disse enquanto o enfermeiro estiver aí você não volta mais. E chamou o sobrinho dela”, conta Solange.
Para a mulher aquilo foi a gota d’água, ela deixou a casa durante a madrugada com a roupa do corpo e um walkman. “Eu chorei muito, chorei até ás 3h da manhã. Eu não esperava que fosse acontecer isso. Eu imaginei qualquer coisa, menos essa cena”, disse ela.
Assim que saiu da casa, Solange dormiu na casa de uma amiga e no dia seguinte procurou Suely. Ela ficou na casa da fisioterapeuta por 1 ano. Suely conta que ficou sensibilizada ao ver o modo como Solange chegou em sua casa. “Ela estava em choque, porque eu acho que nem ela estava acreditando no que tinha acontecido, que ela tinha tomado coragem de sair de lá, mas ela estava firme”.
Sonhos
Depois de 30 anos sendo conhecida como Karina, o primeiro passo de Solange foi mudar a maneira como era chamada.
“Depois que eu sai da lá eu já falei para todo mundo que meu nome é sol que brilha que saiu das trevas. Saiu para brilhar que esses anos todos eu estava no escuro, agora eu quero só brilhar, eu acho que eu tenho esse direito”.
Ela diz que ainda quer estudar e realizar os seu sonho de tratar os dentes. “Eu estou começando a engatinhar, estou começando a viver como uma criança. Sabe quando uma criança nasce? Sai da barriga da mãe? É assim que eu me sinto. Eu saí da barriga agora, faz dois anos e nove meses”.
Hoje, Solange vive em Diadema com o namorado. Ela trabalha e é vinculada a uma empresa que oferece faxinas. Porém, ela ainda faz faxina para os antigos patrões. Ela diz que atualmente eles pagam a ela corretamente pelos serviços prestados e que ser analfabeta dificulta a busca por emprego.
Quando questionado sobre o motivo de fazer faxina no lugar onde ela diz ter sido humilhada, ela defende que é por necessidade. “Eu não vou lá porque eu gosto de ver eles, eu vou lá para trabalhar, ganhar meu salário, eu sai de lá sem nada. Nem R$ 0,50 no bolso eu não tinha. Eu tinha que me virar. Depois que eu entrei com o processo que ela me chamou de volta”, diz Solange.
Processo
Em uma mala trancada com cadeado Solange guarda parte dos trinta anos que viveu na casa da família. Entre os objetos, estão: sua cartilha, os bonecos de Zezé de Camargo e Luciano, um livro de receitas de uma novela que gostava, seus documentos, a caderneta com seus salários, fotos e um walkman. Todos esses objetos ela recuperou depois que saiu da casa em que morava.
Foi escutando o seu rádio que ela conheceu os advogados Estácio Moraes e Fernando Zanellato que falavam sobre Direito do Trabalho em um programa. Solange já havia passado por três profissionais que não acreditaram em sua história, até encontrar Estácio e Fernando.
Fernando conta que durante o programa Solange começou a mandar diversos áudios para o telefone divulgado, mas, como ele não podia ouvir naquele momento, ele pedia para ela escrever, mas ela continuava a mandar áudios e ligar para ele. Devido a insistência, ele resolveu ouvir a história da mulher.
“Eu pensei ou é grave ou é uma pessoa qualquer inventando, também de outro lado que inventam na sociedade e agendamos com ela aqui no escritório para fazer uma triagem”, conta Zanellato.
Os advogados contam que, em primeira instância, o juiz entendeu que não havia trabalho análogo ao escravo, mas, sim, um trabalho proibido porque Solange era menor de idade durante um período em que realizou o serviço.
Em segunda instância a decisão foi diferente “O Tribunal Regional de São Paulo através de três juízes, após analisarem todas as provas e todos os fatos, se convenceram da existência de um trabalho análogo ao escravo”, diz Estácio Moraes.
Indenização
O Tribunal fixou um valor de R$ 1 milhão de indenização que será pago em 21 anos. A decisão ainda cabe recurso ao Tribunal Superior do Trabalho. “Nós entendemos que os fatos e as provas não podem ser mais reexaminados o que pode ser discutido é em relação ao valor”, diz Estácio.
O advogado da família, Carlos Eduardo Quintieri, defende que nunca houve relação análoga à escravidão entre Solange e a família. Ele disse que a decisão é “injusta e divorciada da realidade dos fatos”. O advogado disse que a defesa irá recorrer da decisão.
A decisão foi tomada pelo TRT da 2ª Região considerou que Solange vivia em condição análoga a escravidão na casa onde viveu por quase 30 anos. Cabe recurso ao TST. Advogado da família disse que vai recorrer.
*Imagem TV Globo/Reprodução
Por Beatriz Magalhães
Fonte: G1