O Supremo Tribunal Federal e a (sua) nova modalidade híbrida de prisão

É inegável que o exercício da liberdade de expressão — assim como a imunidade parlamentar — não pode servir de abrigo para a prática de crimes de qualquer natureza, pois, na condição de garantia individual, o direito à liberdade (de expressão) deve sofrer certa temperança a ponto de se acomodar a outras garantias fundamentais de idêntica importância, dispondo o próprio direito de mecanismo de otimização (ponderação).

Estabelecida tal premissa, tem-se que a prisão do deputado federal Daniel Silveira, ordenada pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF, no bojo do inquérito (nº 4.781/DF) instaurado para apurar a propagação de notícias fraudulentas, é absolutamente ilegal. E é ilegal não pela ausência violação a direito material, já que na fala postada pelo deputado na plataforma virtual YouTube sobram ataques, ofensas e ameaças contra a honra dos ministros da Suprema Corte, contra as instituições e contra a própria ordem democrática.

Em verdade, a prisão carece de legalidade justamente na sua forma, na medida em que o ministro destaca requisitos previstos no artigo 312 do Código de Processo Penal, como garantia da ordem constitucional, conjugados com a ocorrência do estado de flagrância, posto que, em sua visão, "ao postar e permitir a divulgação do referido vídeo, que repiso, permanece disponível nas redes sociais, encontra-se em infração permanente e consequentemente em flagrante delito, o que permite a consumação de sua prisão em flagrante".

Ocorre que, não obstante os ataques tenham sido proferidos através de vídeo publicado na internet, permitindo, assim, que fosse visto, difundido e propagando para seguidores — e não seguidores —, o fato é que o crime se consumou no momento em que Silveira liberou o conteúdo na rede virtual, pouco importando o tempo de sua permanência online, o que a ciência penal classifica como sendo crime instantâneo de efeito permanente.

Ou seja, o crime instantâneo (ainda que com efeito permanente) não se confunde propriamente com o crime permanente, como faz crer a decisão do ministro Alexandre de Moraes. Enquanto no primeiro a consumação se realiza em momento único, podendo os seus efeitos se prolongarem no tempo, no segundo é a consumação do delito em si que perdura no tempo, e enquanto houver a manutenção da conduta criminosa pode haver a prisão em flagrante do agente.

Por outro lado, não caberia ao ministro articular — ainda que de forma perfuctória — os requisitos da prisão preventiva em sua decisão, isso porque a sistemática processual adotada pela Constituição Federal veda a prisão de ofício, revelando-se tamanha afronta ao sistema processual acusatório, o qual pressupõe a existência de partes (acusador e acusado) e de um terceiro imparcial e garante da legalidade, o juiz. Em outra palavras, o ministro ocupou a função de acusador, juiz e até mesmo de vítima, na medida em que ele também ostenta a condição de alvo dos ataques e ofensas.

Independentemente do delito imputado e do clamor que ele possa provocar na sociedade, é garantido a todo investigado/acusado o due process of law, o que significa dizer que no monopólio da jurisdição penal não há atalho até eventual punição do sujeito, devendo ser estritamente observada as regras e garantias constitucionalmente como a ampla defesa, o contraditório, a garantia de não ser julgado por um tribunal de exceção, o duplo grau de jurisdição etc.

Na ânsia por preservar a corte, os pares e as instituições democráticas, acabou-se por criar uma nova forma de prisão no Direito brasileiro: a prisão híbrida. Diz-se hibrida porque tem cara e cheiro de flagrante, mas não é. Diz-se híbrida porque trabalha com pressupostos da prisão preventiva, como a ordem constitucional, embora lhe falte o elemento de todo essencial informador da sistemática acusatória, que é justamente a divisão de tarefas entre juiz e os atores processuais (acusador e acusado), sendo esses últimos os verdadeiros responsáveis pela gestão da prova.

A história já demonstrou, na era medieval, as agruras sofridas em decorrência da concentração de funções em um só sujeito e, na atualidade, nos dá uma nova chance de rechaçar qualquer método de acusação pervertida, autoritária ou previamente ajustado entre acusador e julgador. Assim, é função primordial do STF zelar pela guarda da Magna Carta e das instituições. Contudo, não pode fazê-lo a qualquer custo, editando modos especiais de prisão para chamar de sua, sob pena de incorrer em inevitável autofagia.

Eduardo Samoel Fonseca é advogado, mestre em Processo Penal pela PUC/SP, especialista em Ciências Criminais pela PUC Minas e em Direito Penal pela Universidade de Salamanca – Espanha. É presidente da Comissão de Direito Penal e Processo Penal da OAB-SP – Subseção Penha de França.

Gilney Batista de Melo é advogado criminal, especialista em Ciências Criminais pela PUC/MG e diretor auxiliar da OAB-SP – Subseção Penha de França.

Fonte: ConJur
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