Mirtes, que passeava com um cachorro enquanto a patroa cuidava da criança, virou um rosto conhecido no país e mais ainda na comunidade onde vive. Entre as longas ladeiras e as ruas estreitas do Barro, na periferia da zona sul do Recife, foi fácil encontrar a mãe que teve o rosto e o desespero estampados nos jornais, redes sociais e programas de TV. Qualquer morador por lá a conhece e aponta para a casa onde mora, ainda que não saiba afirmar se ela está em casa, já que a rotina tem sido puxada.
Mirtes nos deu boas-vindas com um sorriso no rosto e apontou para a entrada da casa, pedindo que a reportagem do TAB aguardasse um pouco. Ao telefone, ela conversava com uma repórter sobre tudo que aconteceu depois da morte do filho. "Resolvi estudar Direito para entender melhor a Justiça e o processo", contava Mirtes à pessoa que estava do outro lado da linha.
Volta às aulas
Mirtes ligou um computador pela última vez em 2013, quando terminou o curso técnico em segurança do trabalho. Era seu retorno aos estudos depois de terminado o ensino médio, em 2005, numa escola pública da Região Metropolitana da cidade.
Quando cruzou os portões da Escola Sofrônio Portela, Mirtes não imaginava que faria faculdade, tampouco que ingressaria em um curso de Direito. Os livros de muitas páginas estão numa estante, ao lado das fotos do menino Miguel e de alguns brinquedos. As apostilas, livros e papéis mostram que ela tem se dedicado. O material, doação de advogados, delegados e colegas que ela tem feito nas audiências, está sendo devorado nas incontáveis horas de estudo, complementadas com um curso de inglês online, terapia uma vez por semana e academia no começo da manhã. Se desse tempo, ela ainda iria encontrar mais uma atividade para fazer.
Por causa da pandemia, as aulas da faculdade são remotas — como ela imaginou que seria, se voltasse a estudar um dia, já que não tinha tempo para isso porque dedicava parte do dia para cuidar de Miguel. Na frente do computador que ganhou de uma ONG, Mirtes é atenta, curiosa e participativa. Interage, questiona e tira dúvidas do que não entende, já que desconhecia os inúmeros termos jurídicos que ouve nas conversas virtuais com os professores. Ela diz que precisa conhecer tudo porque quer uma justiça acessível para todos, inclusive para quem não tem acesso ao conhecimento.
Retrato de Miguel, filho de Mirtes Renata que caiu de uma altura de 35 metros no RecifeMirtes começou a estudar em fevereiro. Participou da aula inaugural com câmera ligada e notou a dúvida no rosto dos colegas e dos professores. "'Será que é ela, hein?' Dava pra notar que eles estavam se perguntando isso. A cada aula, uma surpresa, até que um dia um professor falou sobre a importância da minha presença ali", conta.
Ela ganhou bolsa de estudos integral numa universidade particular do Recife. Com os olhos cheios de lágrimas e sem qualquer vergonha diante da emoção, manifesta um orgulho bonito, ao mesmo tempo que treme os lábios quando diz que é a primeira pessoa da família a entrar numa universidade.
Filha de pais separados, nunca precisou trabalhar até que terminasse a escola. O único irmão morreu aos 14 anos e também estudava muito para obedecer às ordens de Marta Maria Alves, exigente com os estudos dos filhos. Marta, inclusive, só terminou o ensino médio aos 51 anos pelo programa EJA (Ensino de Jovens e Adultos). A também ex-empregada doméstica acompanhou nossa conversa na sala da sua casa em silêncio.
A casa onde Mirtes mora com a mãe é simples. Fica no alto de uma ladeira. O menino dormia com a mãe em um dos quartos. Neste cômodo, ela ainda guarda roupas e pertences do filho — uma maneira de continuar sentindo o cheiro do menino. Marta dorme no segundo quarto da casa. Durante as inúmeras aparições de Mirtes na televisão, ela chegou a ler comentários, nas redes sociais, de que estava ficando rica com toda a exposição. Apesar da maledicência, nada mudou no lugar onde Mirtes mora. Há um sofá e uma TV na sala, e poucos objetos na cozinha, itens básicos como geladeira e fogão.
Encostada na parede e ouvindo tudo, dona Marta fazia vários gestos com a cabeça para confirmar o que a filha dizia, e só quebrou o silêncio quando se falou de escola. Fez questão de dizer que, já que não pôde se dedicar aos estudos como queria, porque precisava ajudar aos pais no sustento de casa, prometeu para si mesma que daria oportunidade diferente aos filhos. "Até dinheiro emprestado para a passagem da condução deles eu precisei pegar com vizinhos e amigos. Só queria que eles estudassem para terem uma vida melhor."
A mesa de estudo de MirtesA frase nunca saiu da cabeça de Mirtes. Hoje, a possível vida melhor está mais próxima do que distante. Mirtes quer ser promotora ou juíza, mas diz que nem pensa no salário que vai ganhar, embora saiba que as duas funções são muito bem remuneradas no Judiciário.
Mirtes demonstra insatisfação com a corrupção e afirma ter sofrido preconceito, desde que precisou entrar numa delegacia para depor sobre a morte do filho. "Se eu estivesse do outro lado da história, se eu tivesse deixado o filho da patroa dentro do elevador, talvez eu fosse presa logo após a audiência de custódia", afirma.
Sari Corte Real, a ex-patroa da Mirtes, foi indiciada por "abandono de incapaz com resultado morte". Segundo o inquérito da Polícia Civil, a primeira-dama do município de Tamandaré (PE) deixou, intencionalmente, a criança no elevador do edifício. A pena pode ser de quatro a 12 anos de prisão. No entanto, Sari responde o processo em liberdade.
A justiça trabalhista determinou que Sari Corte Real e o marido, Sérgio Hacker, paguem R$ 100 mil a Marta Alves e Mirtes Renata, por multas rescisórias. Mãe e filha trabalharam para a família durante 6 e 4 anos, respectivamente. O casal recorreu da decisão.
Algum futuro
Mirtes não pensa em advogar. Quer trabalhar como promotora para as causas coletivas ou assumir a postura de quem dá o veredito nos tribunais. Antes, ela quer ajudar outras mães injustiçadas a serem atendidas da maneira correta pela Justiça e até já discute esse assunto nos seminários da faculdade e nas lives de que participa.
Ela também debate o tema no trabalho que desenvolve na ONG Afro-Resistência, um projeto internacional de combate ao racismo, em que trabalha como produtora de projetos na instituição. Além desse trabalho, participa de atividades em outra entidade, e paga as contas com o dinheiro que recebe dos dois projetos. Mirtes não quis trabalhar mais como empregada doméstica após a morte de Miguel. Ela sustenta a casa e também não quer que a mãe trabalhe mais.
Enquanto o exercício da profissão nos tribunais não chega, ela segue focada no curso. Passou por uma semana de provas e confia que se saiu bem em todas. A futura promotora e juíza tem sete matérias nesse primeiro semestre: Português Jurídico, Introdução ao Estudo do Direito, Filosofia do Direito, Sociologia e Antropologia do Direito, Desenvolvimento e Empregabilidade, Economia e Ciências Políticas. Quando perguntei o que ela espera da faculdade, Mirtes me corrige e desabafa. "Não é o que espero da faculdade. É o que eu espero de mim. Daqui pra frente eu não quero ser apenas alguém de quem as pessoas sentem pena. Quero fazer barulho, fazer a diferença e ajudar outras pessoas como eu a não se calarem. Quem faz justiça precisa olhar para todos. Para isso eu preciso estudar."
Mirtes cai no choro antes de terminar a conversa. Não conseguiu esconder a dor da saudade, sobretudo por causa do primeiro dia das mães que vai passar sem o filho em casa. Para amenizar a tristeza, ela diz que tudo isso é por Miguel. Também por ele.
Por Marcelo Henrique Andrade
Fonte: tab.uol.com.br