Advogados com mindset diferenciado são essenciais para os ecossistemas de inovação

“No Brasil até o passado é incerto”. Esse é um dito popular comumente usado quando encaramos certos fenômenos em nosso país, principalmente no mundo da economia e dos negócios. O curioso é que até a autoria desse provérbio é incerta. Muitos a atribuem ao economista Pedro Malan. Mas há quem diga que foi cunhada pelo também economista Gustavo Loyola.

Fenômenos recentes no Legislativo e no Judiciário trouxeram essa máxima à baila novamente, e seus efeitos certamente se desdobrarão sobre o ambiente de investimentos em startups. O primeiro envolve a publicação do Marco Legal das Startups e do Empreendedorismo Inovador.

Já o segundo diz respeito a uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que estabeleceu uma nova orientação jurisprudencial para o critério de cálculo do valor da sociedade, usualmente denominado valuation, especificamente para as hipóteses em que o sócio se retira do quadro.

Enquanto o Marco Legal aponta para um futuro promissor e um ambiente de maior previsibilidade para as investidores e empreendedores, prevendo, dentre outros temas, um regramento legal para instrumentos de investimento em inovação, a decisão do STJ aponta para uma mudança na interpretação jurisprudencial que vinha se firmando como critério de avaliação das empresas nas hipóteses de saída do sócio das sociedades. Em suma, enquanto o primeiro fenômeno se propõe a trazer maior segurança jurídica, o segundo surpreende e traz como consequência um sentimento geral de insegurança jurídica ao mercado.

Justamente para fazer frente a essa incerteza é que se resgata um outro dito popular. Esse vem do Vale do Silício, onde é comum fazer menção aos advogados, de forma positiva, como “engenheiros de custos de transação”.

Nesse caso, o objetivo da sentença é se apresentar um contraponto à corriqueira imagem negativa que a profissão do advogado carrega, sendo visto como um “tubarão”, mais preocupado em se apresentar como um obstáculo à solução dos problemas do que como um construtor de soluções, o que seria feito, segundo a crença popular, com o objetivo egoístico de obtenção de maiores ganhos, decorrentes de litígios entre as partes.

É nesse sentido que Ronald Gilson destaca que “o advogado do Vale do Silício não apenas trabalha com engenheiros, ele vê a si mesmo como uma espécie de engenheiro, um engenheiro jurídico. Seu trabalho é resolver problemas, pegar um princípio, uma tarefa, e engenhá-la legalmente”.

Esse segundo provérbio, em uma primeira leitura, é aparentemente dissociado do primeiro. Mas ao final perceberemos que, na verdade, no ambiente de startups e investimentos, e ainda em outros ambientes de negócio, estamos diante de provérbios de complementaridade essencial.

Para se compreender essa conexão, é preciso, inicialmente, entender a mudança na tendência jurisprudencial do STJ e seus efeitos para as startups, para, em seguida, observar a importância da atuação do advogado como apoio na mitigação dos potenciais cenários de insegurança jurídica, valendo-se, para tanto, da própria lei.

Nesse sentido, antes de falarmos dos dois pontos acima indicados, é oportuno o trazer o alinhamento conceitual a respeito de um outro elemento necessário para a compreensão do provérbio norte-americano.

Os “custos de transação” correspondem àqueles existentes em qualquer relação contratual, podendo ser agrupados em custos para a negociação e elaboração dos contratos, organização das suas atividades, mensuração e fiscalização dos direitos das partes entre si e, por fim, os esforços para a sua exigibilidade ou sanção nas hipóteses de descumprimento.

A teoria dos custos de transação foi cunhada por Ronald Coase e aprofundada por diversos autores. Vale mencionar o trabalho de Oliver Williamson como referência para a compreensão desse conceito nas relações contratuais. Dito isso, lançando mão da teoria coaseana, quando se atribui ao advogado do Vale do Silício a alcunha de engenheiro de custos de transação, o que se busca é enfatizar, sobretudo, que o papel desse profissional está no desenho de cláusulas contratuais para as etapas mencionadas da forma mais simples e eficaz possível para as partes.

Feito esse alinhamento, pode-se avançar na compreensão do fenômeno recente decorrente da decisão do STJ, que nos trouxe à lembrança a ideia de que até o passado é incerto. Em 14 de maio de 2021, a corte decidiu que nas sociedades limitadas, tipo societário mais usado no país, “[a] metodologia do fluxo de caixa descontado, associada à aferição do valor econômico da sociedade, utilizada comumente como ferramenta de gestão para a tomada de decisões acerca de novos investimentos e negociações, por comportar relevante grau de incerteza e prognose, sem total fidelidade aos valores reais dos ativos, não é aconselhável na apuração de haveres do sócio dissidente.” (STJ, Resp nº 1.877.331 – SP).

Trata-se de uma mudança relevante na tendência jurisprudencial que vinha se consolidando no país até então. O assunto, sob a perspectiva técnica, envolve um dos temas de histórica controvérsia no âmbito do direito societário, com posições fortemente fundamentadas para vários possíveis posicionamentos.

Em uma apertada síntese, esclarece-se que o posicionamento geral que vinha se consolidando no Brasil seguia (e ainda segue) no sentido de que, nas sociedades limitadas, (i) o exercício de direito de retirada do sócio pode ser exercido a qualquer tempo, sujeitando-se a sociedade a esse pedido de forma automática, ou seja, sem poder se opor a esse pedido (art. 1.029, CC); e (ii) retirando-se da sociedade, o sócio tem direito a receber da sociedade valores correspondentes à parcela do patrimônio da empresa, proporcional à sua participação no capital social mediante uma apuração de haveres, cujo critério de avaliação deve ser obtido por um balanço de determinação, o qual deve corresponder ao valor patrimonial real dessa sociedade (art. 1.031, CC).

Em verdade, como destacado acima, esses entendimentos se mantêm. Recentemente, inclusive, no tocante ao primeiro posicionamento, o STJ reforçou a interpretação de que os sócios de limitadas podem exercer o direito de retirada a qualquer tempo, mediante simples comunicação à sociedade (REsp nº 1.839.078-SP, 26 de março de 2021).

Muitos juristas entendem que essa interpretação não é a mais adequada, tanto sob o aspecto jurídico formal quanto sob o aspecto negocial, pois essa possibilidade de saída da sociedade de forma imotivada, a qualquer momento, pode gerar situações de dificuldade financeira para a continuidade da empresa, que terá que realizar o pagamento dos valores decorrentes do crédito que esse sócio retirante passa a ter perante a sociedade, o que representará uma perda de caixa para fazer frente à operação. Como visto, contudo, apesar dessa consequência negativa para o negócio, prevalece o entendimento no sentido de priorizar o direito do sócio em se retirar.

Em relação ao segundo posicionamento, mantém-se a interpretação de que o valor a ser pago ao sócio retirante deve corresponder ao valor patrimonial real da sociedade, avaliado por meio de balanço de determinação. A mudança, no entanto, ocorre na interpretação sobre qual seria, efetivamente, o critério para a aferição do valor patrimonial real.

Na visão da Ministra Nancy Andrighi, relatora do Recurso Especial em questão (Resp nº 1.877.331 – SP), a orientação do STJ que já vinha sendo consolidada no tribunal deveria ser a interpretação prevalecente, no sentido de que “a apuração de haveres seja levada a efeito mediante elaboração do balanço de determinação – que, repise-se, compreende os bens intangíveis da sociedade – sinaliza a possibilidade de utilização do fluxo de caixa descontado.” Segundo a julgadora, não é possível se desconsiderar que a saída do sócio “não difere da alienação de sua participação societária. (...) Com a única diferença de que a adquirente é a própria sociedade (ou os sócios remanescentes).”

Nessa perspectiva, a realização da avaliação da empresa com base na metodologia do fluxo de caixa descontado, para fins de definição do valor a ser pago ao sócio retirante, seria o critério adequado, de acordo com o previsto pela lei brasileira, quando preconiza a realização de um balanço de determinação para esse levantamento, considerando ativos tangíveis e intangíveis da empresa. Tratar-se-ia, em verdade, de um direito conquistado pela participação desse sócio na construção da realidade patrimonial da sociedade até a sua decisão pela saída do quadro societário.

Em sentido diverso, o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, com um voto de vista nesse mesmo recursou, abriu divergência sobre o tema. Pautando-se também em decisões anteriores do STJ, o julgador trouxe para o debate a preocupação da Corte em se ter, na apuração de haveres, o levantamento de um montante representativo do valor patrimonial real da empresa, mas enfatizando a interpretação de que a forma de avaliação, nos casos de saída de sócio, deveria ter como base critérios equivalentes aos que seriam empregados na hipótese de uma dissolução total da sociedade. Em outros termos, o critério de avaliação da sociedade seria o mesmo que seria usado se a sociedade encerrasse suas atividades e tivesse seus ativos partilhados entre os sócios, considerando-se, naturalmente, seus ativos tangíveis e intangíveis.

Reforça Ricardo Villas Bôas Cueva os argumentos no sentido de que não é adequado o uso de uma metodologia para o cálculo do valor econômico da sociedade, caso do fluxo de caixa descontado, para a definição do valor da sociedade na saída do sócio, pelo fato de que os interesses envolvidos entre as partes na compra e venda de uma participação societária não seriam coincidentes aos existentes na saída de um sócio da sociedade.

Desse modo, permitir que o sócio retirante tenha a definição do valor que lhe deve ser pago em sua saída da sociedade, levando em conta essa perspectiva de resultados futuros, pode se caracterizar, em certa medida, potencial enriquecimento ilícito, eis que esse raciocínio de avaliação lhe propicia um ganho com base em resultado projetado futuro sem que seja necessário a esse sócio retirante se submeter ao risco de que esse resultado não se concretize. Ademais, considerando que a sociedade vai precisar se descapitalizar para pagar o devido ao sócio retirante, a probabilidade de que aquele resultado projetado se realize para que os sócios remanescentes possam obter as margens de resultado esperadas é, em verdade, baixíssima. Em suma, o uso do fluxo de caixa descontado como critério de avaliação da empresa na saída de um sócio, em certa medida, dá a esse sócio retirante o prêmio pelo potencial sucesso futuro da empresa, em momento presente, sem que seja necessário, por parte desse sócio, sujeitar-se ao risco de que essa projeção não se concretize.

Diante desses fundamentos, o voto divergente do Ministro Ricardo Vilas Bôas Cueva acabou prevalecendo no julgamento do Resp nº 1.877.331 – SP, tendo sido o posicionamento acompanhado pelos demais julgadores.

Não se pode deixar de observar como é belo e estimulante esse embate de argumentos jurídicos tão bem construídos, com base na cooperação e compreensão mútua de julgadores de diversos tribunais do país, cujos estudos, aliados ao trabalho de professores e pesquisadores do direito, busca consolidar o pensamento brasileiro a respeito de um tema de tal relevância.

Ainda, sob o enfoque jurídico, é possível se destacar que existem outras nuances nesse debate que podem levar os julgadores a um novo posicionamento no futuro. Essa beleza existente na mutação da interpretação jurídica, contudo, tem um alto preço, assumido por investidores e empreendedores, que observam a mudança de sua posição estratégica na sociedade na qual são interessados, em muitas oportunidades, da noite para o dia, conforme os argumentos prevalecentes na interpretação judicial sofrem essas mutações.

Em uma visão simplista, não é difícil imaginar uma disputa societária na qual um dos sócios possa finalizar uma semana de negociações, para a sua saída de sua sociedade, considerando a expectativa de recebimento de valores em uma monta representativa, calculada com base no fluxo de caixa descontado projetado para os próximos cinco anos, para iniciar a semana seguinte sabendo que a sociedade não está mais disposta ao pagamento daquele valor, mas sim do montante bem menor, calculado com base no valor patrimonial real dos seus ativos tangíveis e intangíveis. O gatilho da mudança substancial do valor entre uma semana e outra teria sido a mudança de posicionamento do Poder Judiciário durante as tratativas em andamento.

Nesse momento, faz-se importante uma breve ressalva, no sentido de que esses movimentos de mudança de interpretação judicial são importantes se não se caracterizam como uma patologia do sistema. Muito pelo contrário, essas mudanças de interpretação decorrem da correlação entre sociedade civil e Judiciário, e se trata de um elemento importante para a constância do amadurecimento da cultura empresarial de um país.

Qual o impacto no Marco Legal das Startups

Uma vez esclarecido como a decisão em questão representa um clássico exemplo de aplicação do provérbio sobre a incerteza quanto ao passado, apesar da mudança em questão se mostrar justificável, pergunta-se: qual seria a relação dessa mudança de interpretação judicial com a visão do advogado como um engenheiro de custos de transação? Ainda, qual seria a relação dessa decisão judicial com o futuro promissor preconizado para o Marco Legal das Startups e para o ecossistema do empreendedorismo inovador?

Essa segunda questão está ligada ao fato de que a sociedade limitada representa uma espécie de contrato de sociedade altamente flexível e com acesso a uma gama de regimes tributários diferenciados que tendem a reduzir os custos de operação das empresas. Diante disso, dentro do ciclo de vida econômica da startup, é pouquíssimo provável que em um determinado estágio de sua trajetória não seja ideal o emprego da sociedade limitada como veículo jurídico contratual para o desenvolvimento da atividade econômica. Como consequência, certamente deve estar na pauta das startups o cuidado sobre o possível exercício do direito de retirada por um de seus sócios, cujos efeitos para a sociedade e, por consequência, para os sócios remanescentes pode ser crucial, inclusive, para a sobrevivência do negócio.

Já a primeira questão, por sua vez, envolve a preocupação de se enfatizar a percepção de que o advogado atuante em ecossistema de empreendedorismo inovador deve perseguir sempre, em sua atividade, o empego de uma mentalidade de engenharia de custos de transação, focada na criação de melhores direções para o bom fluxo dos negócios.

Nesse sentido, quanto aos direitos de sócios e o exercício de retirada, vale observar que o artigo do Código Civil que trata dos critérios para a avaliação da empresa estabelece que “o valor da sua quota, (...) liquidar-se-á, salvo disposição contratual em contrário, com base na situação patrimonial da sociedade, à data da resolução, verificada em balanço especialmente levantado” (art. 1.031, CC).

Ora, como se pode perceber, o legislador estabelece, de forma expressa, que o cálculo do valor da sociedade com base na sua situação patrimonial deverá ser aplicado, tão somente, nas hipóteses em que o contrato social não tratar do tema. Em suma, a celeuma da interpretação judicial sobre a forma de definição dos critérios para cálculo do valor da empresa acima narrada tende a atingir apenas as sociedades que não tiverem seus critérios de cálculo e condições de pagamento previamente estabelecidos, por meio do próprio contrato social, ou, ainda, por meio de acordo de sócios.

Tem-se, assim, um exemplo em movimento da importância do advogado com mentalidade de engenheiro de custos de transação. Essa perspectiva, certamente, levaria aos sócios a terem a consciência da necessidade de pré-estabelecerem, entre si, os fatores relevantes para a saída de qualquer um deles da sociedade, a qualquer tempo, afastando-se ou, ao menos, mitigando-se os efeitos decorrentes da vontade do sócio em se retirar da sociedade e, sobretudo, os efeitos decorrentes de mudanças de posicionamento na interpretação judicial sobre o tema.

Por fim, conectando-se a incerteza do passado à promessa do futuro, é válido observar que contextos como os presentes podem determinar a propagação, ou mesmo, o desaparecimento de estruturas contratuais previstas em lei. Nesse sentido, observa-se que a decisão do STJ, de 14 de maio de 2021, pode ter determinado o ostracismo definitivo de um contrato típico para investimento em inovação mencionado no Marco Legal das Startups, publicado em 1° de junho de 2021.

Trata-se da modalidade contratual denominada “contrato de participação”, criada em 2016, com o objetivo de afastar a possibilidade do investidor anjo, em específico, ser considerado sócio da startup, afastando-se assim, os riscos que decorreriam dessa condição, principalmente o de responder com o patrimônio pessoal por dívidas da investida. Nesse caso, justamente buscando regular a possibilidade de desinvestimento, observa-se que uma das previsões legais obrigatórias dos contratos de participação é de que “[o] investidor anjo somente poderá exercer o direito de resgate depois de decorridos, no mínimo, dois anos do aporte de capital, ou prazo superior estabelecido no contrato de participação, e seus haveres serão pagos na forma do art. 1.031 (do Código Civil) (...), não podendo ultrapassar o investido devidamente corrigido” (art. 61-A, LC 123/2006).

O contrato de participação, que já não vinha sendo usado pelo mercado por razões de desestímulos tributários na sua adoção, passa agora, diante do posicionamento do STJ expresso no Resp nº 1.877.331 – SP, a ter mais um detrator para a sua escolha como veículo de investimento, representado pela previsão expressa que a base de cálculo do valor da participação deve se valer do artigo 1.031 do Código Civil.

A questão que se coloca, portanto, é sobre o critério de cálculo a ser usado para a avaliação da empresa no momento do exercício do direito de resgate. Seria o valor patrimonial real lastreado na metodologia do fluxo de caixa descontado? Segundo a posição recente do STJ, não. Dito isso, entende-se que dificilmente essa modalidade contratual vá atender aos interesses das partes em um investimento em uma startup, não obstante tenha sido criada por lei exatamente com esse objetivo.

Quais modalidades de contratos serão usadas, e como estimular a realização de negócios? A construção das melhores estruturas contratuais, certamente, é parte da mentalidade que deve nortear o trabalho de advogados em ecossistemas de inovação como verdadeiros engenheiros de custos de transação. Essa atuação, em países onde o passado é incerto é mais que necessária: é essencial. Isso para que o Brasil materialize o tão esperado país do futuro, para encerrarmos com mais um provérbio nacional.

Por Eduardo Agustinho*

*Eduardo Agustinho é diretor do Instituto iPUCPR Cidades Inteligentes, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), advogado atuante em Direito Empresarial e professor do Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) também na PUCPR. Graduado em Direito, é Doutor em Direito Econômico e Desenvolvimento pela PUCPR e pesquisador visitante na Universidade Paris I Panthéon-Sorbonne e na Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI).

Fonte: gazetadopovo.com.br

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