Mulher trans, Neon não tinha seu nome social reconhecido pela instituição. Depois de várias tentativas para atualizar seu cadastro no banco, ela processou o Santander e, recentemente, a Justiça lhe concedeu uma indenização por danos morais no valor de R$ 15 mil.
Na decisão, a juíza Mônica Soares Machado, da 1º Vara do Juizado Especial Cível - Vergueiro, do Tribunal de Justiça de São Paulo, destacou que, além do "aborrecimento", Neon foi vítima do banco por ter problemas com comprovantes de pagamentos emitidos sem seu nome social.
"As pessoas conhecem a Neon e chega outro documento, com outro nome, e não reconhecem. Algumas vezes não identificaram o pagamento. Eu pedi [a retificação] várias vezes, em conversas com a gerência, central de atendimento e ninguém fazia nada", conta Neon.
Em nota a Universa, o banco Santander informou que reconheceu o nome de Neon em todos os canais de relacionamento. Segundo o banco, o uso do nome social "é estendido a todos os clientes que solicitem ser reconhecidos de acordo com sua identidade de gênero".
A primeira solicitação para a mudança do nome no sistema do Santander foi feita em 2016, depois de Neon ter vários problemas em projetos de trabalho. É pelo aplicativo do celular que ela realiza a maioria de suas transações bancárias. Ela já chegou a ser acusada de falsidade ideológica por pessoas que viam nomes diferentes em seu recibo bancário.
A publicitária também foi algumas vezes presencialmente ao banco para tentar resolver a questão. De acordo com ela, o gerente de sua conta também se recusava a chamá-la pelo nome.
"Todas as vezes que ligava para ele, ele me desqualificava. Uma vez fui à agência conversar com ele pessoalmente, ele disse que estava usando [meu nome] como estava no cadastro. Falei: olha bem para mim, o que você está vendo aqui à sua frente?", lembra.
Na nota enviada à reportagem, o banco não comentou o episódio da publicitária com o gerente da agência.
"A partir do momento que você fala: 'quero existir'. Qual a dificuldade de respeitarem quem eu sou?" - Neon Cunha, ativista e publicitária.
Esgotadas as tentativas de resolver o problema por conta própria, há um ano e meio Neon decidiu acionar o Judiciário. Até então, conta Neon, o banco justificava que uma empresa terceirizada era responsável pelo cadastro dos clientes e que o dela não havia sido atualizado por questões burocráticas.
A advogada da servidora, Mariana Serrano, explica que a primeira indenização foi fixada em R$ 2,5 mil. Mas a defesa recorreu por considerar o valor incompatível com "o caráter pedagógico da ação".
O recurso foi aceito e, no dia 16 de junho, os desembargadores Antônio Augusto Galvão de França, Camila Rodrigues Borges de Azevedo e Maria Cristina Ernandes Veiga Oliveira, fixaram a reparação em R$ 15 mil.
Outro processo
Pelo direito ao nome social, Neon também precisou recorrer à Justiça contra o IMASF (Instituto Municipal de Assistência à Saúde do Funcionalismo), da Prefeitura de São Bernardo do Campo (SP).
Com a mesma falta de atualização nos cadastros, apesar de a servidora ter solicitado a retificação e entregue a documentação necessária ao órgão, a carteira do plano de saúde não respeitava seu nome social, o que tornou as idas ao médico uma situação constrangedora. Por conta disso, Neon Cunha deixou de frequentar consultas médicas por dois anos.
Em primeira instância, em 1 de julho, foi determinado o pagamento de R$ 10 mil à servidora. Na decisão, a juíza Marta Oliveira de Sá, da 2º Vara de Fazenda Pública do Tribunal de Justiça de São Paulo, ressaltou que a não alteração do nome provocou transtornos e constrangimentos para Neon.
"Tal situação gerou ofensas do direito ao nome, à imagem e à identidade da autora, além de refletir em seu próprio direito à saúde, visto que dificultou, ou mesmo impossibilitou, que a autora utilizasse os serviços médicos mediante exibição de carteirinha do convênio em desconformidade com seus documentos pessoais", diz trecho da sentença.
O IMASF recorreu da decisão. A Prefeitura de São Bernardo, responsável pelo IMASF, afirmou que o pedido de alteração de nome foi atendido e que a empresa Greenline, contratada pela autarquia, demorou para realizar a alteração. A reportagem não conseguiu retorno da empresa terceirizada para comentar o caso.
Morte assistida
A luta de Neon Cunha pelo direito ao nome social teve um episódio emblemático. Em 2014, ela entrou com um pedido de morte assistida na OEA (Organização dos Estados Americanos), caso seu gênero e sua identidade não fossem reconhecidos pelo Estado brasileiro. Neon também foi a primeira mulher trans a falar na sede da instituição. O pedido foi negado, mas sua ação influenciou o debate em todo o país.
Na época, pessoas trans precisavam de um laudo médico atestando que eram, de fato, transgênero. A secretária de articulação política da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transsexuais), Bruna Benevides, explica que cerca de 35% das retificações eram recusadas no período.
"Precisávamos apresentar laudos médicos, psiquiátricos e psicológicos, todos compulsórios, a despeito da minha própria vontade. Só assim o processo tinha seguimento. Muitas vezes, juízes solicitaram perícias nos corpos das pessoas trans, o que é altamente abusivo, além de invasivo", explica.
Para Benevides, a atitude de Neon não deve ser romantizada, mas foi um marco na comunidade trans por abrir portas para a discussão sobre a obrigatoriedade de laudos para retificação. "É como dizer: 'prefiro não viver do que ter que existir sem ser reconhecida como a mulher que sou'. Essa narrativa é muito comum entre pessoas trans", explica.
"O caso dela [de Neon] é extremamente emblemático, porque foi o primeiro passo que sinalizava um processo de despatologização, de retomada de autonomia para a própria pessoa trans e não mais para psiquiatras, psicólogos ou um juiz", analisa Bruna.
Dois anos depois, em 2018, uma decisão do Superior Tribunal Federal (STF) facilitou a retificação de gênero e nome sem necessidade de cirurgia ou laudo. Com isso, o processo pode ser feito em cartório com base em uma autodeclaração. Em 2019, a transgeneridade também deixou de ser descrita na Classificação Internacional de Doenças (CID).
Neste mesmo ano, uma decisão do STF equiparou a transfobia ao crime de racismo. Para Bruna, esta espécie de "puxadinho" na lei é necessária, já que não existem leis pró-LGBTQI+ no Brasil.
Por Bruna Barbosa
Colaboração para Universa, de Cuiabá (MT)
Fonte: uol.com.br