O caso aconteceu em 1992, no município de Guaratuba, litoral do Paraná, quando Evandro, que tinha 6 anos de idade na época, foi encontrado morto e com o corpo mutilado. Na mesma época, várias crianças estavam desaparecendo no estado, gerando um ambiente de pânico social e pressão política, o que levou a uma investigação, paralela à da Polícia Civil, promovida pelo Grupo Águia da Polícia Militar.
A partir disso começaram a ser disseminados discursos macabros e anunciada a prisão daqueles que foram taxados como os "bruxos de Guaratuba": Beatriz Abagge, Celina Abagge, e outras cinco pessoas, por terem supostamente praticado um "ritual de sacrifício" contra o menino.
Após a instrução preliminar, os acusados, com fundamento central nas suas confissões dadas à PM, foram pronunciados. Beatriz e Celina foram absolvidas pelo júri em 1998. Em setembro de 2003, porém, o TJ-PR determinou que as acusadas fossem submetidas a novo julgamento. Em 2011, Beatriz foi condenada por homicídio.
Osvaldo Marcineiro, Davi dos Santos Soares e Vicente de Paula foram condenados em 2004 pelo crime de homicídio qualificado. Na época dos fatos, todos os condenados recorreram das sentenças, alegando que as confissões foram obtidas mediante tortura.
Provas originais
Segundo os sentenciados, após a ordem de prisão da juíza de Guaratuba, eles foram levados pelo Grupo Águia para local desconhecido, onde, à custa de "bárbaras torturas", lhes foi extraída uma confissão gravada em fita magnética, amplamente divulgada pela imprensa e utilizada no processo.
Na petição inicial da revisão, os advogados dizem recordar que, nessa primeira prisão, os réus ficaram horas com a policiais militares, sem dormir, beber e comer. Prestaram interrogatórios repletos de contradições, internas e externas, sem qualquer voluntariedade ou espontaneidade, sem guardar conformidade ou coerência com qualquer um dos laudos ou demais provas. Além disso, não havia advogado presente.
Osvaldo relatou, em uma carta escrita em 1993, que durante o período de prisão temporária, um dos policiais teria mostrado um papel que continha o depoimento de Celina, o qual deveria ser repetido integralmente por ele. Ele disse que transitou entre os cômodos da casa em que estavam e ouvia os gritos de socorro de Davi, Celina e Beatriz.
Após retornarem dos interrogatórios com a PM, os réus foram levados para a sede do Instituto Médico Legal e expostos a imprensa para uma entrevista chocante, na presença dos policiais, que horas antes os havia torturados. "Foram submetidos a um interrogatório público, a fim de que contassem uma história mentirosa", afirma a defesa.
Durante os interrogatórios e acareações seguintes, teriam usado termos técnicos, como "asfixia mecânica" ou "corte transversal", o que, para a defesa, demonstra que reproduziam um texto que foi previamente ensaiado, uma espécie de "ditado" no qual os interrogados eram meros repetidores daquilo que lhes foi imposto sob coação e tortura.
Por fim, a defesa alegou que nenhuma das perícias feitas na época dos julgamentos ou testemunhas ouvidas conseguiram demonstrar que os fatos ocorreram da forma narrada nas confissões. Embora os acusados tenham confessado para a PM que teriam feito o uso de faca e serrote, assim como a denúncia tenha se valido de tal premissa, as perícias juntadas aos autos não encontraram nenhum vestígio de sangue humano nos instrumentos referidos.
Também houve imprecisão nas provas testemunhais. Uma testemunha, que residia a aproximadamente 5 metros do local onde teria ocorrido o sacrifício, afirmou não ter visto nenhum dos acusados lá e que seria impossível uma criança ter lá estado sem que ela tomasse conhecimento.
Assim, ainda segundo a defesa, ela deveria ter sido a principal testemunha do processo, porém seu depoimento foi desprezado pelas autoridades.
"A prova testemunhal produzida em favor da acusação, por outro lado, mesmo sendo contraditória e inconsistente, foram usadas como fundamento para levar os acusados à condenação", seguem os advogados.
Desse modo, a defesa argumenta que as decisões dos conselhos de sentença encontram-se absolutamente divorciadas do arcabouço probatório dos autos, razão pela qual não há como sustentar a manutenção das condenações.
Novas provas
A Polícia Militar e o Ministério Público usaram as gravações feitas nos citados interrogatórios, que continham confissões dos acusados, como base para a acusação, e o Judiciários a utilizou como fundamento para as condenações. No pedido de revisão, a defesa diz buscar não só demonstrar que as confissões foram obtidas mediante tortura como também que as gravações apresentadas na época foram adulteradas.
"Do modo como foram obtidas e utilizadas, os registros revelam gravíssimas lesões à autonomia e ao livre desenvolvimento da personalidade, devendo ser tratadas como provas ilícitas, aptas a anular toda a persecução penal", enfatizou a defesa.
Para demonstrar a ilicitude das confissões, os advogados utilizaram novas fitas obtidas, por meio de fonte anônima, pelo jornalista Ivan Mizanzuk, criador do podcast "Projeto Humanos: o Caso Evandro". Parte dessas fitas, gravadas por um integrante do Grupo Águia, continham gravações feitas com os presos e acusados do caso com evidentes indícios sonoros de tortura.
As fitas foram levadas para análise do perito Antônio César Morant Braid, especialista em fonética forense, áudio, vídeo e fotografia, que concluiu que o material de áudio dos arquivos apresentam interrupções nos fluxos dos sinais, que correspondem a pausas e paradas na gravação, aplicadas em tempo real pelo operador do equipamento, durante a gravação original, não se tratando, portanto, de edição no material.
Os registros apresentam descontinuidades que correspondem a supressões de trechos de fala que existiam na gravação original. Além disso, os interlocutores interrogados apresentaram respiração ofegante, que pode ser o resultado de vários fatores, dentre eles, o esforço físico exagerado, a submissão do falante a violência física e emocional e a situações de estresse e ansiedade intensos.
O perito observou também que, associado ao esforço respiratório, os momentos de fala dos interlocutores eram pouco articulados e repetitivos e, em alguns deles, acompanhados de choro, o que denota afetação psicológica. Há falas e eventos sonoros que evidenciam a prática de violência física.
O psiquiatra forense Talvane Marins de Morae confirmou que Osvaldo, Beatriz, Celina, Davi e Vicente foram submetidos a tratamento degradante, desumano e violento, caracterizado como tortura, que lhes causou intenso sofrimento psicoemocional, aniquilando sua capacidade de cognição e vontade, a fim de fazerem narrativas confessionais, que não guardam relação e correspondência com os fatos investigados.
Para a defesa, as gravações acrescentam novas perspectivas sobre os fatos e provam aquilo que sempre alegaram os acusados: de que eram gravados enquanto torturados. Além disso, demonstra que não só que os inquisidores da Polícia Militar torturaram os réus, física e psicologicamente, a fim de obter confissão, mas também que o Estado cerceou a defesa ao subtrair provas importantíssimas dos autos.
Assim, os advogados afirmam que a mácula do processo está situada desde o início da instrução preliminar, quando as confissões obtidas mediante tortura — "prova" ilícita por excelência — foram apresentadas pela metade, privando os acusados de conhecerem elementos essenciais para exercer plenamente o direito de defesa em suas respostas escritas.
Pedidos
Os advogados dos quatro réus pedem que as condenações sejam desconstituídas, decretando nulidade ab initio, pois todas as provas do processo derivam das confissões obtidas mediante tortura. Ou seja, todas as provas derivam de prova ilícita; logo, estão contaminadas pela ilicitude, devendo os sentenciados serem absolvidos.
Por fim, pedem pelo reconhecimento do direito a uma justa e proporcional indenização, nos termos do artigo 5º, inciso LXXV, da Constituição, bem como determine a publicação do acórdão em jornal e revista de grande circulação no país, haja vista os enormes danos morais, materiais e existenciais suportados permanentemente pelos réus.
A defesa está sendo feita por Antonio Augusto Figueiredo Basto, Tomás Chinasso Kubrusly, Luis Gustavo Rodrigues Flores, Gabriela Preturlon, Omar Elias Geha, João Victor Stall Bueno, Eduardo Maines Breckenfeld e Giovana Menegolo, do Figueiredo Basto Advocacia.
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0073804-48.2021.8.16.0000
Fonte: ConJur