Projeto defende direitos de mulheres grávidas em situação de rua

Via @consultor_juridico | Sob a alegação de primar pelo “melhor interesse e bem-estar da criança”, muitos bebês perdem o direito à convivência familiar quando as mães se encontram em situação de rua. O estigma e o preconceito são o principal motivo para que separações sumárias aconteçam desde a maternidade, desrespeitando, assim, não apenas os direitos do recém-nascido, como também os da mãe.

Segundo relatos de profissionais que trabalham com a população de rua, muitas mulheres perdem seus filhos para o entendimento generalizado de que não têm condição de criar a criança nesse contexto. Contudo, quais os cuidados efetivos que o Estado oferece para a proteção da maternidade em situações de vulnerabilidade?

Essa pergunta norteou o estudo realizado pela Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama, extensão da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, que mapeou o fluxo de atendimento a essas mães e bebês para compreender quais os direitos e as violações sofridas por essa população. Também verificou a falta de políticas públicas existentes nesse cenário, o que contribui para esse afastamento.

Os diálogos realizados com profissionais da rede de serviços, como o Consultório na Rua (que realiza o atendimento e acompanhamento médico dessas pessoas), a Defensoria Pública do Estado de São Paulo e o Serviço Especial de Abordagem Social, entre outros, foram reunidos no relatório “Primeira Infância e Maternidade nas Ruas” .

A partir desse trabalho, a Clínica desenvolveu o projeto “Oficinas Primeira infância e maternidade nas ruas de São Paulo”, que venceu a primeira edição do Prêmio Prioridade Absoluta do Conselho Nacional de Justiça, na categoria Poder Público, Eixo Protetivo. Com o objetivo de capacitar os profissionais sobre as normas legais existentes, promover um espaço de escuta e mostrar por meio da humanização dos serviços que é possível fazer diferente. 

Levando em conta cada situação, as oficinas promovem o debate e a empatia, por meio de um jogo que conta a trajetória de uma mulher grávida em situação de rua. Para uma das pesquisadoras responsável pelo projeto, a doutoranda Janaína Gomes, as oficinas têm se mostrado efetivas para mostrar caminhos melhores para os profissionais.

“Pela pesquisa, descobrimos que as mães não eram as únicas afetadas, mas também os profissionais envolvidos, especialmente as mulheres, que demonstraram angústia frente à falta de políticas de encaminhamento em relação a essas pessoas e aos atravessamentos judiciais, que têm decidido pela separação da criança e da mãe, e que vêm de instâncias que muitas vezes não mantêm vínculos de fato com as famílias envolvidas.”

O projeto defende que a maternidade é possível mesmo em situação de rua, desde que haja o desejo da mulher em assumir essa filiação e o apoio para esse exercício por meio de políticas públicas de moradia, geração de renda, educação, saúde, entre outras.

Janaína Gomes, que também foi a coordenadora pedagógica da Clínica entre 2014 e 2021, explica que muitas mulheres não procuram ajuda nos serviços assistenciais por medo de perder a criança, como pode já ter acontecido outras vezes; ou por dificuldades do sistema: muitas vezes, não faz o pré-natal, por exemplo.

Isso porque não tem como comprovar o endereço de residência; tem uma vaga garantida no Centro de Acolhida, mas que não permite a permanência do companheiro; pode já ter sido maltratada em outros atendimentos nos serviços de saúde, e várias outras situações que impedem que a mulher seja cuidada.

Mesmo que ela faça tudo certo, no entanto, não há garantias de que não vai perder seu bebê na maternidade, porque a intervenção, mesmo à revelia, se tornou uma prática: se é uma mulher em situação de rua, é feita a notificação para a Vara de Infância e Juventude, que vai determinar o acolhimento do recém-nascido.

“O argumento utilizado é que estão primando pelo melhor interesse e bem-estar da criança, retirando-a das dificuldades que terá ao viver na rua, mas, ao mesmo tempo, mantêm a mãe na mesma condição. Dessa forma, vários direitos são violados, como o de convivência familiar e de amamentação, por exemplo, além de punir a mulher por uma condição de pobreza que não necessariamente é sua culpa”, ressalta Janaína.

A especialista ressalta a inversão de valores quando se trata de pessoas em situação de rua: há uma situação de indignidade, de vulnerabilidade, de violência, de violação a direitos. “Em alguns casos, as mulheres não têm como ou não querem, realmente, cuidar dessas crianças. Mas, e quando elas têm condições mínimas para isso, condições mentais, físicas e emocionais, não fazem uso de droga (ou fazem pouco uso), por exemplo, o que o Estado tem a oferecer para ela?”

A resposta que os pesquisadores da USP encontram, no entanto, é que as políticas de cuidado da família são muito precárias. “Não há política de moradia, de transferência de renda, de vagas em creches, questões de saúde. Dessa forma, percebe-se que a questão não é a mulher, já que ela tem condições de criar a criança, mas uma falha nas políticas públicas que não dão conta do conjunto de vulnerabilidades a que essas mulheres estão expostas.”

O reconhecimento do CNJ ao projeto, além de fortalecer a prática, traz visibilidade à necessidade de se rediscutir as políticas públicas, além de sustentar as ações de cuidado com a população de rua, que o Conselho também está desenvolvendo.

Oficinas

O objetivo nas oficinas é que os profissionais se apropriem da legislação e compreendam que ela prevê, o oposto do que se tem sido feito, que é a proteção do vínculo mãe-bebê; além de saber como usar os conhecimentos técnicos para fazer valer esses direitos, mesmo quando a autoridade judiciária ou médica fala o contrário. “Como se organizar para garantir essa permanência? Nenhum profissional é obrigado a notificar a Vara da Infância quando não há, de fato, um motivo”, conta Janaína.

A Nota Técnica n. 001/2016 do Ministério da Saúde e do Desenvolvimento Social trata como deve ser a atenção para a mulher e defende um encaminhamento do cuidado e não de separação. Janaína lembrou que, em alguns estados, há relatos de juízes e juízas que determinaram a notificação da Justiça sempre que a mulher fosse usuária ou tivesse histórico de uso de drogas, para que, assim que o bebê nascesse fosse feita a destituição familiar. “Mas, nesse caso, a mulher tem que ser tratada e não punida com a separação.”

Além disso, ao compartilharem suas experiências, os profissionais relatam como é a rotina do trabalho em sua região, os problemas que enfrentam, e discutem formas de mudar esse fluxo de atendimento, de forma a impactar a maneira como a política pública é ofertada.

“As articulações entre os serviços são primordiais. Se existe uma rede, ela deve funcionar como rede, ou seja: se a maternidade recebe uma mulher em situação de rua, porque ela não pode informar o Centro de Referência de Assistência Social ou Centros de Atenção Psicossocial, saber sua situação, verificar se tem vaga em um Centro de Acolhida, ao invés de apenas e imediatamente notificar a Justiça?”

Para Janaína Gomes, esse espaço de escuta permite ainda que os profissionais percebam como é possível utilizar seus conhecimentos técnicos a favor da proteção da mãe e da criança, conjuntamente, e da família e entendam que a permanência com a mãe é um direito da própria criança.

“É isso o que a Constituição Federal diz em relação à proteção das famílias. Essas mulheres, inclusive, podem ter tido um histórico de violação de direitos ao longo de suas vidas. E quando vemos essas intervenções, que separam as mães das crianças, estamos ignorando essas ausências do Estado na proteção dessas mulheres.”

Jogo

Para despertar a empatia, o projeto também criou um jogo, chamado “História de Lurdes”, no qual participantes vão caminhando com a personagem e tomando as decisões que ela deveria tomar. O jogo se inicia com a leitura da carta, na qual o público conhece a trajetória comum de uma mulher em situação de rua e, a partir da carta seguinte, a carta “contexto”, a pessoa participante se implica com as decisões inerentes a uma gravidez não planejada, sem acesso a centros de acolhida, garantia dos direitos à saúde e alimentação.

Com isso, elas passam a debater as formas com que Lurdes deveria agir diante das situações. E, à medida que o jogo avança, são apresentados os elementos que estão envolvidos nos casos: as vagas no centros de acolhida são escassas, os tratamentos para a drogadição feminina são poucos e a importância da construção de vínculos de confiança entre a rede de atendimento, as equipes que atuam nas Defensorias Públicas, as equipes das Varas e demais serviços para o estabelecimento de um fluxo de acompanhamento e cuidados com crianças, mães e famílias.

“O jogo desloca os participantes para áreas novas e para o desconhecido. Passam ao engajamento, tomando decisões, muitas vezes baseadas no conhecimento diário. Por exemplo, o jogador pode dizer que ela não vai procurar a Unidade Básica de Saúde porque sabe que o atendimento vai ser ruim já que ela mora na rua e há preconceito, porque ele é da área de saúde e sabe que é assim que funciona”, afirma Janaína.

Essas experiências permitem que haja conversa, questionamentos e mudança de atitudes e rotinas na vida real. “Criamos uma oportunidade de facilitação de diálogo que permite a esses profissionais verem a situação de forma de diferente. Ao ver o que aconteceu com a personagem, começam a perceber o porquê de algumas decisões e saem do aspecto generalizante para entender que é preciso ir para o caso específico. Ver que elas precisam ser entendidas por suas potencialidades e não julgadas por suas fraquezas. E passam a olhar o que diz a lei como uma forma de proteção dessa criança.”

O jogo “História de Lurdes” está sendo desenvolvido no formato virtual, para poder ser utilizado por novos multiplicadores da prática.

Casos de sucesso

Além de realizar as oficinas, a Clínica também oferece acompanhamento aos órgãos e entidades para ajudar a construir soluções diferentes para cada caso. Houve situações em que, após a participação nas oficinas, profissionais de um CAPS, ao perceberem que uma gestante não estava comparecendo ao atendimento, começaram a fazer busca ativa nos hospitais para verificar se o bebê tinha nascido e informar que ela contava com o apoio para permanecer com sua criança; em outro local, as maternidades da cidade se mobilizaram e criaram um serviço para mudar rotinas de trabalho e criar uma Casa da Gestante para receber mulheres em situação de rua.

“O impacto das oficinas está chegando na agenda dos municípios, fomentando novos debates sobre as políticas públicas”, explica Janaína. Em Santos (SP), a Comissão de Álcool e Drogas pediu o acompanhamento do projeto para também criar uma Casa da Gestante; e a Clínica enviou uma nota técnica ao Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) para discutir o assunto. Segundo Janaína Gomes, “os profissionais são os primeiros multiplicadores. Dessa forma, melhoramos o serviço prestado pela Rede de Garantias de Direito”. Com informações da assessoria de imprensa do CNJ.

Fonte: ConJur

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