STJ condena Dallagnol a indenizar Lula por caso do PowerPoint

Via @consultor_juridico | A precisão, certeza, densidade e coerência que se exige da denúncia impõe-se igualmente ao ato de divulgar essa denúncia à imprensa e à sociedade. Se na peça de acusação não há adjetivações atécnicas, sua divulgação deve também evitar o enviesamento do caso, sob pena de gerar danos morais.

Com esse entendimento, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça deu provimento ao recurso especial do ex-presidente Lula para condenar o ex-procurador da República Deltan Dallagnol a indenizá-lo pelos danos morais causados na entrevista na qual divulgou denúncia oferecida pela extinta "lava jato" contra o petista, que ficou famosa pela exibição de um gráfico em PowerPoint.

Deltan, que chefiou a extinta "lava jato" curitibana, deverá pagar indenização de R$ 75 mil a Lula, valor que será corrigido a partir da publicação do acórdão, e com juros de mora desde o evento danoso, que ocorreu em agosto de 2016. Com isso, a soma vai ultrapassar a marca de R$ 100 mil.

O resultado na 4ª Turma foi alcançado por maioria de votos, conforme a posição do relator, ministro Luis Felipe Salomão. Ele foi acompanhado pelos ministros Raul Araújo, Antonio Carlos Ferreira e Marco Buzzi.

Ficou vencida a ministra Isabel Gallotti, para quem a ação de Lula só poderia ser ajuizada contra a União, já que Dallagnol teria cometido os abusos no exercício de sua função pública de procurador-geral da República.

O famoso Power Point

O caso que gerou a ação ocorreu em 2016, quando a "lava jato" curitibana reuniu a imprensa em um hotel na capital paranaense para apresentar a denúncia que seria oferecida contra o petista pelo caso do tríplex do Guarujá.

Foi o processo que levou à condenação de Lula em 2017 e o tirou da corrida eleitoral no ano seguinte. Essa decisão foi derrubada pelo Supremo Tribunal Federal, que reconheceu a incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba para julgar a ação. Em 2021, o Ministério Público Federal reconheceu a prescrição.

Na ocasião, Deltan preparou apresentação em Power Point com slide que se tornaria notório, no qual ligava termos à figura de Lula para justificar a ação penal. Ele chamou o ex-presidente de "comandante máximo do esquema de corrupção" e de "maestro da organização criminosa". E ainda fez menção a fatos que não constavam da denúncia: afirmou que a análise da "lava jato", aliada ao caso do "mensalão", apontaria para Lula como comandante dos esquemas criminosos. O "mensalão" foi julgado pelo STF na Ação Penal 470 e não contou com o petista como réu.

Assim, o ministro Luis Felipe Salomão concluiu que as falas de Deltan configuraram abuso de direito, pois resultado de postura inadequada do procurador da República, com o uso de expressões e qualificações desabonadoras da honra e da imagem de Lula e afastadas da tecnicidade adotada no texto da denúncia.

"É imprescindível, para a eficiente custódia dos direitos fundamentais, que a divulgação do oferecimento da denúncia se faça de forma precisa, coerente e fundamentada. Assim como a peça acusatória deve ser o espelho das investigações, sua divulgação deve ser o espelho de seu estrito teor", afirmou o relator.

"Se na peça de acusação não foram incluídas adjetivações atécnicas, evidente que sua anunciação deveria resguardar-se daquelas qualificadoras, que enviesam a notícia e a afastam da impessoalidade necessária, retirando o tom informativo", acrescentou ele.

O alvo certo

Segundo o ministro Raul Araújo, o episódio mostra que o ex-procurador atuou com excesso de poder, indo além do que suas atribuições determinavam, dentro do que definiu como "atuação empolgada" de agentes públicos a partir das ações penais da "lava jato".

Abriu a divergência a ministra Isabel Gallotti, para reconhecer a ilegitimidade passiva do ex-procurador da República, que deixou o MPF em 2021 e hoje pretende se candidatar a deputado federal pelo Paraná.

Ela aplicou ao caso a tese definida pelo STF no RE 1.027.633, segundo a qual "a ação por danos causados por agente público deve ser ajuizada contra o Estado ou a pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço público, sendo parte ilegítima para a ação o autor do ato".

Assim, se Dallagnol fez a apresentação no Power Point e deu a entrevista na função de procurador da República, não poderia ser processado diretamente por Lula. Caberia ao petista processar a União e esta, se condenada, poderia mover ação de regresso para cobrar do lavajatista os danos eventualmente causados.

A ilegitimidade passiva foi apresentada pela defesa de Deltan nas contrarrazões do recurso especial. No entanto, o relator julgou o pedido precluso. Ele destacou que o tema foi suscitado no primeiro grau em preliminar, que restou afastada pelo juiz. Na apelação, o Tribunal de Justiça de São Paulo não se pronunciou sobre o assunto. Logo, a ação transitou em julgado nesse ponto.

A ministra Isabel Gallotti afastou a preclusão. Isso porque Deltan foi vitorioso na ação em primeiro e segundo graus. Logo, ajuizar recursos para discutir sua ilegitimidade passiva não teria utilidade. Sem interesse processual, a pretensão seria fatalmente julgada improcedente. "Se não poderia recorrer, não se pode dizer que esteja preclusa a análise da questão agora".

Limites do cargo

Além da preclusão, o ministro Salomão também entendeu que seria possível a Lula processar Deltan de forma direta porque a atuação do procurador foi irregular, extrapolando os limites do cargo.

A ministra Isabel Gallotti mais uma vez discordou. Ela afirmou que essa posição tornaria letra morta a parte final da tese fixada pelo Supremo Tribunal Federal em repercussão geral, no ponto em que indica que é "parte ilegítima para a ação o autor do ato".

"Saber se houve excesso do agente público, se houve abuso, se a atuação foi regular ou irregular, isso vai ser discutido precisamente no mérito dessa ação de responsabilidade, que, segundo a jurisprudência atual e vinculante do Supremo Tribunal Federal, só pode ser ajuizada contra a União", afirmou a ministra.

Além disso, ela destacou que a atuação de Deltan não pode ser considerada irregular porque o regramento da época indicava aos membros do MPF oferecer publicidade de suas ações. Havia recomendação do Conselho Nacional do Ministério Público e portaria da Procuradoria-Geral da República nesse sentido.

"Não estou dizendo que acho isso certo. Mas havia normas internas. Ele poderia ter agido de forma irregular se tivesse dado entrevista para um órgão antes do outro. Isso, sim, seria irregular na época. Não vejo como divorciar a atividade de dar uma entrevista coletiva da atividade como procurador da República", argumentou no voto divergente vencido.

Comemoração

Em nota, a defesa do ex-presidente Lula comemorou a decisão do STJ, que classificou como "vitória do Estado de Direito".

"Lula não praticou qualquer ato ilegal antes, durante ou após o exercício do cargo de presidente da República e tem o status de inocente, conforme se verifica de 24 julgamentos favoráveis ao ex-presidente, realizados nas mais diversas instâncias. A indenização Lula é apenas um símbolo da reparação histórica que é devida", diz a nota.

O Grupo Prerrogativas também celebrou a decisão, afirmando que Deltan Dallagnol "foi condenado a — literalmente — pagar por parte de seus erros na lava jato".

"Ainda que se diga que 'justiça tardia não é justiça', e que nenhum dinheiro do mundo paga o sofrimento de alguém quando objeto de uma injustiça, trata-se de decisão que lava a alma e a honra do ex-presidente. 

Cumprimentos aos competentes advogados de Lula. E a todos aqueles que acreditaram, desde o inicio, que Lula era inocente", afirma trecho da nota divulgada pelo grupo.

Leia a seguir a íntegra da manifestação da defesa do ex-presidente:

"O reconhecimento hoje (22/03), pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), de que a 'coletiva do Power Point' configura ato ilegal e é apta a impor ao ex-procurador da República Deltan Dallagnol o dever de indenizar o ex-presidente Lula é uma vitória do Estado de Direito e um incentivo para que todo e qualquer cidadão combata o abuso de poder e o uso indevido das leis para atingir fins ilegítimos (lawfare).

Referida entrevista coletiva foi realizada em 16 de setembro de 2016, em um hotel localizado em Curitiba (PR), e fez uso de recurso digital (PowerPoint) contendo inúmeras afirmações ofensivas a Lula e incompatíveis até mesmo com a esdrúxula denúncia do 'triplex' que havia sido protocolada contra o ex-presidente naquela data. Naquela oportunidade Lula recebeu de Dallagnol o tratamento de culpado quando não havia sequer um processo formalmente aberto contra o ex-presidente — violando as mais básicas garantias fundamentais e mostrando que Dallagnol, assim como Sergio Moro, sempre tratou Lula como inimigo e abusou dos poderes do Estado para atacar o ex-presidente.

Lula foi absolvido da real acusação contida no PowerPoint de Dallagnol pelo Juízo da 10ª. Vara Federal de Brasília em sentença proferida em 04/12/2019 (Processo nº 1026137-89.2018.4.01.3400). Na decisão — que se tornou definitiva por ausência de qualquer recurso do Ministério Público — o juiz federal Marcus Vinícius Reis Bastos considerou que acusação de que Lula integraria uma organização criminosa 'traduz tentativa de criminalizar a política'.

O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), em 2020, ao analisar a mesma 'coletiva do PowerPoint' a partir de Pedido de Providências (Autos nº 1.00722/2016-20) que apresentamos em favor de Lula, já havia considerado o ato abusivo e com o objetivo de promover o julgamento pela mídia (trial by midia).

Lula não praticou qualquer ato ilegal antes, durante ou após o exercício do cargo de Presidente da República e tem o status de inocente, conforme se verifica de 24 julgamentos favoráveis ao ex-presidente, realizado nas mais diversas instâncias.

A indenização devida a Lula é apenas um símbolo da reparação histórica que é devida".

Assista ao julgamento da Turma (a partir da marca de 1h12):

REsp 1.842.613 

Fonte: ConJur

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