Graça a Silveira é inconstitucional e pode ser contestada no STF, diz Lenio Streck

Via @consultor_juridico | O decreto por meio do qual o presidente Jair Bolsonaro (PL) concedeu graça ao deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ) é inconstitucional, pois tem desvio de finalidade e viola a separação de poderes e a independência do Judiciário. Por isso, a norma pode ser contestada no Supremo Tribunal Federal via ação de descumprimento de preceito fundamental. 

É o que afirma o jurista Lenio Streck em parecer encomendado pelo presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Beto Simonetti, e pelo presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da entidade, Marcus Vinicius Furtado Coêlho.

O STF condenou Silveira, no último dia 20, a oito anos e nove meses de reclusão, em regime inicial fechado. Com isso, o Supremo determinou a perda do mandato de deputado federal de Silveira e a suspensão de seus direitos políticos enquanto durarem os efeitos da condenação. A corte entendeu que o parlamentar praticou os crimes de coação no curso do processo (artigo 344 do Código Penal) e tentativa de impedir o livre exercício dos poderes da União (artigo 23 da Lei de Segurança Nacional — Lei 7.170/1973).

No dia seguinte, Bolsonaro publicou um decreto concedendo o benefício da graça (perdão de pena judicial) ao deputado federal. No texto, o presidente determina que todos os efeitos secundários da condenação também ficam anulados, o que inclui a inelegibilidade, consequência da condenação de Silveira. Com isso, o deputado voltaria a poder ser candidato nas eleições de outubro deste ano.

Beto Simonetti e Marcus Vinicius Furtado Coêlho questionaram Lenio Streck, que é integrante da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB, sobre a constitucionalidade do decreto de graça. No parecer, Lenio afirma que, por um lado, o artigo 84, XII, da Constituição, autoriza o presidente a conceder indulto e cometer penas, mas, por outro, a Carta Magna como um todo estabelece um conjunto de freios e contrapesos, que garantem o livre exercício do Judiciário. Por exemplo, o artigo 5º, XLI, determina que "a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais".

"O Direito não é um apanhado de textos isolados, mas um corpo jurídico que almeja à coerência e à integridade. Todo e cada padrão normativo presente em um ordenamento jurídico deve ser lido, interpretado e aplicado dentro de um contexto maior a que pertence: um paradigma constitucional, fundado e fundamentado no Estado Democrático de Direito, pautado por poderes livres, independentes e harmônicos", aponta Lenio, ressaltando que as interpretações não podem ficar limitadas ao texto da lei.

"Decretando 'graça constitucional' a um aliado político, não apenas perdoando como, ainda, dizendo não ter havido crime, Bolsonaro ofende os mesmos princípios desrespeitados pelo criminoso. Para usar a linguagem shakespeariana (em Henrique IV, parte II), esbofeteia o juiz. E a República. Se quem ataca a democracia usa a democracia para fazer isso, de que modo a própria democracia poderá sair desse paradoxo?", questiona o jurista, que também é colunista da ConJur.

Segundo ele, o presidente, ao conceder graça a Silveira, enfrentou uma decisão soberana do STF e subscreveu as ofensas, ataques e ameaças à corte. Para Lenio, o decreto de Bolsonaro "é o ato mais afrontoso a um poder de Estado — o Judiciário — já feito desde a nova ordem constitucional (de 1988)".

Ao afirmar que o deputado não cometeu crime, Jair Bolsonaro se coloca na posição de "superintérprete da Constituição", algo inadmissível em uma democracia, avalia o jurista. "Quem guarda a Constituição Federal é o STF, não o presidente da República".

Desvio de poder

O indulto é concedido para obedecer princípios constitucionais, não desrespeitá-los. E o instituto historicamente foi usado com preocupações humanitárias, o que não se compatibiliza com o editado por Bolsonaro, que tem o objetivo de atingir o Judiciário, opina Lenio Streck.

E a publicação do decreto antes do encerramento do processo penal deixa claro o seu desvio de finalidade, diz ele. "Fazemos essa afirmação porque a graça, da maneira que foi concedida, além de impessoal caracteriza indevida ingerência na atribuição do Poder Judiciário dado que sua propositura, antes do trânsito em julgado, tem o condão de transformar a graça em uma espécie de Habeas Corpus repressivo cuja função real é o esvaziamento da competência constitucional do STF".

O presidente da República deve agir em conformidade com os princípios da Administração Pública, especialmente a impessoalidade e o zelo pelo interesse da população. Ao perdoar Daniel Silveira, Bolsonaro desrespeitou esses postulados, uma vez que atacou o STF e agiu com motivações político-partidárias, conforme Lenio.

O Supremo já decidiu que o Judiciário não pode reescrever decreto de indulto (ADI 5.874). O que o STF pode fazer é entender que o presidente extrapolou sua competência e declarar a inconstitucionalidade da norma. De qualquer forma, os ministros declararam, no caso, que o indulto tem limites e é sempre passível de análise da Justiça.

"Endossar os ataques, as ofensas e as ameaças de um criminoso imediatamente após sua condenação por parte do Supremo Tribunal parece ser um desses limites. Do contrário, fracassa(re)mos — em uma teoria de precedentes, em uma compreensão sobre prerrogativas presidenciais, fracassamos enquanto república constitucional", afirma Lenio.

Lição da História

Ao comentar a postura de juristas em relação ao nazismo, o jurista alemão Bernd Rüthers afirma, no livro "Die unbegrenzte Auslegung" ("Uma interpretação irrestrita ou não constrangida"), que a discussão sobre interpretação constitucional não pode ser a-histórica e apolitica.

Com base em Rüthers, Michael Stolleis e Christian Joerges, Lenio Streck aponta que o decreto de Bolsonaro não pode ser analisado de forma literal, a-histórica e apoliticamente. Afinal, Daniel Silveira defendeu a ditadura, o Ato Institucional 5 e atos antidemocráticos.

"Daí se mostrar equivocada a defesa — jurídica — do ato presidencial como se não existisse 'a força normativa dos contextos'. Como se o parlamentar não tivesse feito o que fez. Como se isso não tivesse a ver com todo o nosso passado, nosso presente e tenha inexorável projeção para o futuro da democracia no Brasil", opina o jurista.

Decreto inconstitucional

Em artigo publicado na edição desta quarta-feira (27/4) do jornal O Estado de S. Paulo, o criminalista Alberto Zacharias Toron afirmou que, de acordo com a decisão do STF na ADI 5.874, o decreto de indulto não pode ter desvio de finalidade. Ou seja, não pode ter "intenção deliberada, por parte do administrador público, de atingir objetivo vedado pela ordem jurídica ou divorciado do interesse público", como afirmou na ocasião o então ministro Celso de Mello. Em tais situações, cabe controle judicial do decreto, como afirmou o ministro Alexandre de Moraes do julgamento, citou Toron.

Na visão do advogado, o Supremo pode analisar o decreto de graça de Silveira e declarar sua inconstitucionalidade.

"Esse deputado (Daniel Silveira) não foi condenado por mera verborragia. Atacou o STF e ameaçou os ministros. Atentou contra essa instituição democrática. Com a graça, a impunidade está garantida no crime contra os valores republicanos e a ordem democrática. Ora, esse objetivo é vedado pela ordem jurídica constitucional e está divorciado do interesse público. Submete-se, portanto, ao controle e à reprovação judicial. Trata-se da defesa da Constituição", destacou Toron.

Nessa mesma linha, o advogado Fábio Tofic Simantob avaliou, em artigo publicado na edição desta terça (26/4) do jornal Folha de S.Paulo, que deve haver um interesse coletivo a justificar o indulto.

"Peguemos o caso hipotético de um herói nacional, um esportista adorado pela população, que acabacondenado por um crime não infamante — um crime de trânsito, por exemplo, cuja pena terá de cumprir já em estado avançado de um câncer terminal. Parece haver um interesse coletivo e um clamor nacional pelo indulto", exemplificou.

Não é o caso de Silveira, disse Tofic. "O presidente indultou um aliado político que, assim como ele, tem disparado ameaças e incitado a violência contra os poderes constituídos. E, pior, o fez numa tentativa de substituir o julgamento do STF pelo dele".

O criminalista também declarou que não cabe ao presidente dizer se uma conduta é ou não criminosa. "É patente a afronta ao princípio da isonomia. É evidente que o presidente age por capricho pessoal e não por interesse público. Extrapola em muito o poder de indultar e se aproxima da prevaricação".

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Fonte: ConJur

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