Essas obras são da produtora norte-americana Millennium Media, representadas no Brasil para casos de direitos autorais pelo escritório Guerra Advogados Associados, localizado em Porto Alegre (RS).
Um leitor, cuja identidade será preservada, conta que uma carta chegou pelos Correios na sua residência com várias informações pessoais. “Estava viajando no dia que eles alegam ter sido feito o download e não me recordo nem de assistir a esse filme”.
A reportagem do Diário do Nordeste teve acesso a alguns documentos. Neles constam informações sobre a infração bem como dados pessoais do internauta.
Além da descrição jurídica sobre o caso, a notificação aponta os dados de acesso (dia, hora e endereço IP da rede de internet) de quando foi realizado o download e ainda os valores cobrados para quem deseja aceitar a proposta extrajudicial, que chegam a R$ 750.
Documentos da notificação chegam para os usuários via e-mail ou carta / Foto: ReproduçãoPara mais informações, há ainda dados de acesso de login no site aviso.net.br. O domínio, contudo, causou estranheza em quem recebe a notificação. “Primeiro, achei logo que era golpe. É tanta fraude acontecendo que desconfiei, o nome do site é esquisito”, relata o notificado.
Veja os filmes que estão sendo alvo de cobrança
• Jolt: Fúria Fatal
• Até a Morte - Sobreviver é a Melhor Vingança
• Fúria em Alto Mar
• Dupla Explosiva
• Dupla Explosiva 2
• Ava
• Invasão ao Serviço Secreto
• The Outpost
• Rambo: Até o Fim
• After - Depois da Verdade
• Hellboy
• A Profissional
O que diz a legislação brasileira
O advogado e presidente da Comissão Especial de Propriedade Intelectual, Mídias, Entretenimento, Direito e Novas Tecnologias da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-CE), Roberto Reial, explica que a argumentação para a notificação é válida, porém é preciso ponderar outras informações.
"Alguns documentos não vêm uma logomarca, a redação tem algumas falhas jurídicas. Além disso, os valores cobrados são estranhos, já que não existe uma tabela os especificando, nem na Justiça brasileira, nem internacionalmente”. ROBERTO REIAL - advogado
Reial pontua ainda que é preciso saber se as informações que constam no documento são condizentes, se há realmente uma ligação com o provedor e se o download foi, de fato, realizado de forma não autorizada.
O pesquisador do programa de Telecomunicações e Direitos Digitais do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Luã Cruz, corrobora que, quem faz o download, não comete crime no Brasil. A lei dos direitos autorais (nº 9.610/98) prevê somente que a penalidade criminal é para quem tem intuito de lucro.
"A gente entende que não é crime e muito menos ilegal, mas os tribunais brasileiros nunca se pronunciaram no Brasil, isso nunca foi judicializado e a nossa lei é antiga, então esses escritórios se aproveitam dessa brecha que há na jurisprudência e na legislação brasileira”. LUÃ CRUZ - pesquisador do Idec
Copyright trolls
Além disso, o advogado e fundador do Centro independente de estudos e pesquisas sobre Direito e sua relação com a Internet e novas tecnologias (IP.rec), André Fernandes, destaca que esse fenômeno ficou conhecido como copyright trolls, já que, muitas vezes, a cobrança não é legítima.
"A gente tem conhecimento de alguns casos de usuários que sequer fizeram download do conteúdo e tinham como provar que não baixaram, porque no dia estavam viajando e tinham como comprovar, então são dados inconsistentes”. ANDRÉ FERNANDES - advogado
Porém, afirma que a cobrança de direito autoral é legítima. “O problema dos copyrights trolls é que essa prática que é legítima é desvirtuada e, muitas vezes, os usuários sequer cometeram qualquer ato ilícito e estão sendo cobrados de forma até assediadora”, pontua.
Cruz, por sua vez, acrescenta ainda que essas notificações já são feitas em outros países, como Dinamarca e Estados Unidos. “Acontece que, lá fora, os escritórios que levaram para frente essa prática foram condenados por fraude, por agirem de má-fé”.
O que diz a defesa
O advogado Joélcio de Carvalho Tonera, do escritório Guerra, explica que os clientes que representam são titulares de direitos autorais de obras cinematográficas e, com o objetivo de combater a pirataria, rastreiam os conteúdos. Assim, quando um usuário realiza um download sem autorização, como no torrent, a produtora tem acesso ao IP da rede.
De acordo com Tonera, o descarregamento não autorizado dessas obras viola a lei brasileira de direitos autorais, que prevê que “somente o titular do direito autoral pode permitir o uso, a distribuição, seja de que tipo for a obra”.
"Nossos clientes detectaram essas infrações aos direitos autorais, tratando-se de infrações cometidas no ambiente da internet, que é um ambiente protegido, nós fomos obrigados a entrar com ação antecipada de produção de provas pra conseguir os dados dos usuários que cometeram a infração”. JOÉLCIO DE CARVALHO TONERA - advogado
Tonera alega que, no momento em que não houve a devida remuneração pelo uso da obra cinematográfica, o cliente foi lesado, por isso, o objetivo é alertar “as pessoas que esse tipo de consumo no âmbito da internet não autorizado é uma ilegalidade e gera consequências graves”.
“O fenômeno da pirataria é complexo, envolve uma cadeia complexa, envolve quem faz uma cópia ilegal, quem disponibiliza essa cópia ilegal e quem consome e todo o combate à pirataria precisa enfrentar toda essa cadeia”, diz.
O advogado confirmou que o domínio aviso.net.br, de fato, é do escritório e que pensam “em como deixar mais clara a origem desse endereço de internet e mudar esse endereço de contato”. Além disso, afirma que a prática do site é para que o usuário “tenha proteção das suas informações”.
Como é feita a detecção?
O advogado da defesa explica que a detecção do IP dos usuários é feita por meio de um sistema de rastreamento que constam nas mídias produzidas pelo estúdio. Ainda que esse conteúdo seja deturpado ou sofra ruptura, ou que não seja integralmente copiada, o acesso é detectado.
"Esse IP que é detectado se dá no âmbito que consta no provedor da internet, não temos acessos às máquinas dos infratores, temos acesso ao caminho, por isso, nós somos obrigados a obter a informação junto às operadoras de internet", detalha.
Contudo, a prática é questionada pelo pesquisador do Idec, que acredita ser uma violação à privacidade dos dados pessoais. "Ainda não foi possível comprovar que conseguem esses IPs de maneira legal, então, para a gente, tem esse grande problema que é prévio à discussão de direitos autorais"
"Outro agravante é que as operadoras de internet entregam os dados sem contestar a Justiça e não avisam aos usuários que as informações serão compartilhadas, você não sabe por onde vão circular", alerta.
Cálculo do valor do acordo
As propostas de adesão dos acordos extrajudiciais pelas notificações emitidas pelo Guerra chegam a R$ 750, porém são concedidos descontos. Para quem pagar nos primeiros 30 dias da notificação, o valor fica em R$ 250.
Após 15 dias, o valor aumenta em 50% para R$ 375 e, passados mais de 15 dias, o preço cobrado volta a ser integral. Contudo, Tonera afirma que isso é negociável e, caso o usuário queira aderir ao acordo, pode entrar em contato com o escritório.
"Se nós levássemos essa questão ao poder judiciário certamente arbitraria danos morais ao nosso cliente, então existe um critério discricionário, mas temos alguns balizadores. O poder judiciário tem gravitado em valores que podem chegar em R$ 40 mil", alega.
Conforme o advogado do Guerra, as ações, quando iniciadas no Brasil (e não de autoria do referido escritório) chegavam a R$ 3,5 mil. Para desonerar e aumentar o número de adesão às propostas de acordo, o valor caiu para R$ 750.
Porém, Tonera revela que muitas pessoas não estão aderindo ao acordo e o próximo passo deve ser de judicializar a ação.
Como funciona o sistema do torrent
O cientista pesquisador em ciências cibernéticas do Morphus Labs, Antonio Horta, relata que a ferramenta torrent funciona pelo sistema peer to peer (em português, ponto a ponto, também conhecido como P2P).
"Elas trabalham com sementes, ou seja, as pessoas que querem divulgar esse arquivo colocam semente nessa ferramenta de forma que faça a transferência distribuída. Quando você solicita o arquivo, você faz o download e ainda compartilha em pedaços, de forma que você só tenha o arquivo completo ao final do processo".
Logo, ao mesmo tempo em que o usuário faz o download das partes, também compartilha o conteúdo. "Nesse momento, as suas informações de IP ficam disponíveis".
Além disso, o pesquisador afirma que o P2P não é uma ferramenta proibida. "Tem um cunho lícito para compartilhar de forma distribuída os arquivos, mas, como toda tecnologia, pode ser utilizada para fins ilícitos", conclui.
Fonte: Diário do Nordeste