Dia da Mulher Negra: PhD diz que precisou 'embranquecer' para ascender em ambiente acadêmico

Via @portalg1 | "Um lugar de solidão". Professora doutora de saúde coletiva na Unicamp, Débora Santos descortinou memórias para contar que ainda percorre um processo de aprendizagem e de autoperdão ao refletir que precisou "embranquecer" para ascender no ambiente acadêmico até conseguir alcançar o título de livre-docente. Ela decidiu dividir a trajetória de lutas e resistência com a reportagem do g1, nesta segunda-feira (25), para celebrar o Dia Internacional da Mulher Negra, Latina-Americana e Caribenha.

A data foi instituída em 1992, a partir de um primeiro encontro de mulheres negras da América Latina e do Caribe. Durante a reunião, elas entenderam que era necessário reagir diante das opressões sofridas nos grupos, e a data no Brasil também presta uma homenagem para Tereza de Benguela, líder quilombola que esteve à frente da luta e resistência da população negra por duas décadas.

Veja abaixo também os relatos da educadora Andrea Mendes, e da headhunter Gislaine Antonio.

Quebra de 'invisibilidade'

Débora avaliou a data como um momento para destacar as mulheres negras e as lutas delas, por meio da quebra do que ela chama de "invisibilidade" imposta pela sociedade.

“Uma data como essa é muito importante para ter visibilidade para essa mulher negra e para as nossas lutas, que são muitas. A gente olhar para essa mulher e pensar em alternativas, estratégias para que ela seja enxergada em sua complexidade de ser humano, que ela tenha voz!”

Mãe de quatro filhos, ela lembrou de momentos em que se sentiu sozinha em espaços de ensino.

"Eu era a única lá no cursinho pré-vestibular, uma das únicas mulheres negras. Eu era a única, por exemplo, na minha formatura eu fui a oradora. Na formatura de graduação em enfermagem, eu era a única negra. Nós tínhamos uma ou outra, mas que se formaram depois. Agora na Unicamp, a gente tem algumas outras que se consideram pardas, mas quando eu entrei, eu estava ali como a única docente negra também da faculdade. Então, assim, é um lugar de solidão", ponderou.

Débora Santos, livre-docente em saúde coletiva na Unicamp, grávida de Nina — Foto: Letícia Zanotto

Débora, ao tratar do processo de "embranquecimento de ideais" que ela experimentou na academia como um aspecto de sobrevivência, explicou que esta é a realidade de outras negras na universidade.

“O que eu percebo é que para entrar nesse mundo da academia eu precisei em algum ponto me 'embranquecer', sabe? E é louco, porque isso não é falado, é como se a sua negritude fosse invisibilizada. Então eu inconscientemente fui me afastando dessas questões [raciais] e me embranquecendo. A cor da pele continua, mas na maneira de se vestir, nos gostos, na leitura… Algumas de nós [mulheres negras] chegam lá, mas o ambiente é tão hostil, tão sufocante para nossa negritude, que a gente precisa, muitas vezes, se embranquecer para sobreviver.”

A professora frisou que o cenário tem se modificado, mas ainda é um processo em construção.

"Estou em um processo ainda de aprendizagem né. Me perdoo também por esse tempo que eu tive um pouco de adormecimento, digamos assim, eu estava ali tentando sobreviver em um mundo muito hostil da universidade. E talvez agora eu tenha mais força para enfrentar, mesmo ali solitária. A universidade está se reinventando também, ela recebeu outros docentes [negros], então não estou solitária em relação à cor da pele, mas em relação à luta ainda é muito solitário", salientou Débora.

Para ela, o Dia Internacional da Mulher Negra, Latina-Americana e Caribenha também é fundamental para que a história não seja esquecida, e indagações sejam feitas com foco nas gerações futuras.

“Eu acho que é um dia bacana para refletir, comemorar, entender, conhecer histórias de mulheres negras. Fiquei pensando na Nina [filha de 2 meses]. Qual vai ser o Brasil que ela vai encontrar quando ela for para escola? Quando ela estiver na adolescência? Como que vai ser para Nina Simone, uma menina negra, e depois uma jovem mulher negra?”, falou a docente de Campinas.

Criar 'incômodos'

Foi justamente por se sentir sozinha nos espaços de arte da metrópole que a educadora Andrea Mendes, também curadora e artista visual, começou a trabalhar em projetos e fundou a "PretaAção". A iniciativa é descrita como uma empresa de produção cultural que tem como objetivo dar visibilidade e permitir que artistas emergentes, principalmente mulheres pretas, tenham acesso a novos locais.

"Eu vi que não era só sobre mim e sobre artistas, era sobre o público que também não se via contemplado dentro dos espaços de arte. Então foi uma tríade: minha realização pessoal em estar em coletividade, poder proporcionar para artistas visibilidade, e para o público um acesso a formação cultural, onde eles se reconhecessem ali também", ressaltou.

Para Andrea, 25 de julho é sinônimo de luta e representa a necessidade de mulheres negras ocuparem espaços ativos de liderança, como atuou Benguela, sobretudo em cidades como Campinas.

A metrópole é considerada por historiadores como a última cidade brasileira a abolir, na prática, a escravidão da população negra.

Andrea Mendes, idealizadora do projeto 'PretaAção' — Foto: Fabiana Ribeiro

“Nós ainda somos vozes 'semi-mudas'. Somos questionadas ou silenciadas. Graças aos movimentos de mulheres negras, nós já conseguimos criar alguns 'incômodos', não a partir de um enfrentamento de violência, mas a partir da insistência, a partir da vontade de ocupar aqueles lugares com práticas ativas, e aí isso passa pela academia e pelos lugares políticos.”

Busca por equidade

A headhunter e bacharel em direito Gislaine Antonio desenvolve desde 2017 um projeto com base em trabalho acadêmico para inserir pessoas negras em multinacionais. Ela também é de Campinas

O projeto "Inserção de negros e negras no mercado de trabalho para multinacionais" surgiu, segundo ela, para que de fato a população preta tenha um processo seletivo justo e inclusivo. As mulheres em especial, avaliou Gislaine, enfrentam desigualdades e muitas vezes assumem subempregos.

"Quando a gente olha para pirâmide social, a mulher negra está em último, literalmente. E ela continua. Tanto que, onde que a gente vê uma massa de mulheres negras? Em subempregos. E essa parcela de mulheres inclusive, são mulheres com os seus diplomas, mas não tiveram a oportunidade de serem inseridas no mercado de trabalho", criticou.

Gislaine Antonio atua para garantir inclusão etnico-racial — Foto: Luciana Antonio

Ela lamentou que vários recortes possam influenciar no momento em que uma mulher negra está em busca de colocação profissional, mesmo que seja qualificada para o cargo pretendido. Por isso, a headhunter atua com consultoria em diversidade e atua para permitir inclusão étnico-racial.

"Tem todo um contexto, o tom de pele obviamente, a questão dos traços. O currículo vai chegar, ela vai fazer a entrevista e aí vai vir 'Ah, o seu perfil não se adequa' ou então 'Vamos te ligar' e não ligam."

Sobre a data celebrada nesta segunda-feira, Gislaine destacou a inspiração de Tereza de Benguela e fez um paralelo entre as iniciativas da líder quilombola e o trabalho dela durante a rotina profissional.

"Ela fez política dentro do quilombo. Quando eu olho para essa mulher, e me vejo fazendo todas essas conexões que eu faço para que de fato tenhamos um patamar de equidade no mercado de trabalho, eu acabo me espelhando, e entendendo que é essa nossa ligação ancestral que faz com que a gente entenda, não é sobre mim, mas é sobre nós."

Por Larissa Pereira*, g1 Campinas e Região

*Sob supervisão de Fernando Pacífico.

Fonte: g1

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