Esse argumento ignora a distância abissal que separa o mundo de nossa juventude do mundo da juventude atual. Os estudantes e profissionais de hoje vivem uma era de conexão total, em que os limites de espaço e tempo para o trabalho desapareceram. As horas gastas na faculdade não são mais um momento de distanciamento mental do ambiente profissional. Ao contrário: estudantes assistem às aulas preocupados com o e-mail que chega do escritório ou do cliente; mensagens de WhatsApp exigem providência imediata, sob pena de colocar em mora instantânea seus recipientes. Mesmo a singela troca de ares que antes era propiciada por uma visita ao fórum para ver o andamento de processos foi extinta pela informatização.
Quem pretende equiparar as demandas profissionais de gerações anteriores com as das gerações atuais não deve ignorar essa diferença estrutural das relações de trabalho. O engajamento total, ininterrupto, absoluto, que não cessa nem durante a aula, nem logo na primeira hora do dia, nem nos finais de semana, não existia duas décadas atrás.
O sentido do estágio tampouco é exatamente o mesmo que foi para as gerações anteriores, pelo crescente abandono do tradicional exercício de uma profissão liberal em direção à constituição de estruturas que mimetizam as empresariais. Estagiários muitas vezes não são vistos como colegas em formação, mas como mão de obra qualificada e abundante. A deferência às necessidades da vida universitária, imposta pela Lei do Estágio por restrições de carga horária e dispensa na semana de provas, com frequência não é observada. Após a formatura, jovens advogadas e advogados muitas vezes tornam-se sócios apenas no papel, mas na prática experimentam subordinação absoluta; e não raro, os que são propriamente empregados extrapolam a jornada de trabalho sem a devida compensação. O paradoxo é que estruturas de governança efetivas, capazes de coibir relações de trabalho abusivas e ilegais, nem sempre acompanham o movimento para o escritório-empresa.
Além disso, a educação jurídica não é hoje o que foi antes. Não apenas por mudanças estruturais óbvias, como a exigência dos temidos TCCs, mas também pelo fato de que o exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) tornou-se muito mais difícil do que já foi. Mas principalmente porque a postura das principais faculdades mudou: a crença de que “o estágio é onde se aprende de verdade” não encontra mais tolerância entre professoras e professores. A geração atual de estudantes é submetida a cobranças regulares de leituras de textos complexos, inclusive em língua estrangeira, que antes não havia.
A informatização das ferramentas de ensino facilita distribuir mais material para estudos e torna menos custosa a cobrança de múltiplos trabalhos ao longo do semestre. Do lado da gestão acadêmica, essa mesma tecnologia permite ranquear estudantes para fins de distribuição de oportunidades valiosas, como vagas e bolsas de intercâmbio e assentos em equipes de moot (se você não sabe o que é isso, eis mais um sinal da mudança dos tempos). Professoras e professores sabem bem o quanto meio ponto em um trabalho pode tirar de chances capazes de mudar as vidas de nossas alunas e alunos, por levar suas médias um décimo para lá ou para cá. Nada parecido com essa pressão existiu para gerações anteriores.
Já há alguns anos, como regra para os profissionais da advocacia mais competitiva, a graduação e a aprovação na OAB tornaram-se apenas a primeira infância de uma trajetória de estudos conduzida em paralelo com essa exigência profissional de intensidade total. Hoje, a especialização já não é mais suficiente: a proliferação de mestrados acadêmicos e profissionais estende a vida extenuante, de dupla jornada, por muitos anos além da formatura. E em breve devemos ter aprovados os primeiros doutorados profissionais em direito.
A medida de cobrança do pós-graduando de duas décadas atrás para si mesmo era o universo de materiais impressos a seu acesso; para o de hoje, com a informatização de bibliotecas e bases de dados em todo o planeta, o sarrafo está muitas ordens de grandeza mais alto, levando pesquisadoras e pesquisadores inexperientes a terem de se confrontar com um universo de leituras pertinentes que não teria como ser enfrentado nem com todo tempo de uma vida. Tudo isso com o agravante de que os prazos atualmente esgotam-se na metade do tempo: o doutorado, que já teve oito anos para ser concluído, hoje deve transcorrer, como regra, em não mais do que quatro.
A fantasia do “sempre foi assim” é confortável para quem, tendo já ascendido às posições de destaque em escritórios e na academia, deseja ao mesmo tempo romantizar o seu passado e ignorar a realidade presente diante de sucessivos casos que revelam a precariedade da saúde mental de tantos jovens. Essa ilusão se aproveita da obviedade de que os casos mais graves, muitos dos quais vitimam pessoas que mal saíram da adolescência, acontecem em circunstâncias nas quais isolar causas únicas é impossível. Quem deseja escapar da realidade incômoda poderá sempre dizer que há a família, ou os relacionamentos pessoais, ou a pandemia. Com isso, criamos álibis que cumprem a função de poupar os atores responsáveis pela disseminação de uma cultura de valorização (ou de indiferença) da exaustão física e mental de nossos jovens colegas de enfrentar a questão que nos parece central: em que medida essa cultura, mesmo em um cenário de múltiplas causas, é decisiva para levar aos resultados inaceitáveis que hoje vivenciamos? Frisamos: inaceitáveis, e não apenas excepcionais, porque desumanos em qualquer quantidade.
É urgente que se faça uma discussão ampla, aberta e transparente entre faculdades e empregadores de jovens profissionais do direito, para que revertamos o quadro atual. Essa agenda deve passar não apenas por questões básicas de legalidade, como o efetivo cumprimento das disposições da Lei de Estágio que servem para proteger estudantes de relações profissionais incompatíveis com suas exigências formativas e acadêmicas, mas também pela tentativa sincera e engajada de alteração de um ethos que aprofundou características de nossas relações de trabalho que são deletérias para uma vida saudável. Empregadores e faculdades de direito devem colaborar para implementar estruturas de governança voltadas a identificar e coibir práticas que alimentem essa cultura insalubre, que sejam efetivamente independentes e garantam a segurança de quem deseje reportá-las.
Para esse debate devemos levar não as nossas desculpas e a memória de um passado friamente romantizado, nem o fatalismo de um presente inalterável, mas sim propostas que partam do reconhecimento de que construímos uma máquina, da qual somos todos engrenagens, cujo combustível é a saúde mental debilitada de nossos jovens colegas e estudantes.
Por:
Rafael Mafei – Professor da Faculdade de Direito da USP
Tathiane Piscitelli – Professora da FGV Direito SP e advogada
Mariangela Magalhães Gomes – Professora da Faculdade de Direito da USP
Conrado Hübner Mendes – Professor da Faculdade de Direito da USP
Sheila Neder Cerezetti – Professora da Faculdade de Direito da USP e advogada
Susana Henriques da Costa – Professora da Faculdade de Direito da USP e Promotora de Justiça (MP/SP)
Eloísa Machado – Professora da FGV Direito SP e advogada
Flávio Roberto Batista – Professor da Faculdade de Direito da USP e Procurador Federal
Fonte: jota.info