Além de ter se formado aos 71 anos, algo não muito comum de se ver, o tema do TCC de Domingos causa certa estranheza, afinal não é todo dia que se encontra um homem, idoso, heterossexual, criado em uma época onde os direitos da comunidade LGBTQIA+ nem existiam, interessado em estudar e defender o reconhecimento legal de famílias homoafetivas. O preconceito na vida do bacharel em Direito, no entanto, não cria raízes.
“Todo ser humano tem o direito de ser feliz e fazer suas próprias escolhas, seja na sua sexualidade ou para estudar, mesmo enfrentando desafios. Nós temos o direito de ser felizes”, afirma.
A caminhada durante o curso não foi fácil e daí veio o interesse em escrever sobre um tema que também gera diversos preconceitos. “Eu enxergo o preconceito da família homoafetiva da mesma forma que enxergo o preconceito que enfrentei quando decidi estudar. Na minha vida eu dei uma resposta para todos que não acreditaram em mim graduando em 2022 em bacharelado em Direito. Então meu tema me lembra o preconceito que enfrentei das pessoas da minha cidade que diziam que lavador de panela não se formava em Direito, hoje estou graduado. Sou trabalhador rural, trabalho na roça e, graças a Deus, hoje, sou formado”, conta Domingos.
Seu Domingos veste paletó e gravata cedidos por colegas (Foto: Vicente Aloisio/ Divulgação)“Eu não tive contato com nenhuma família homoafetiva que me fez despertar o interesse pelo tema, mas eu via o sofrimento de cada um deles quando fazia minhas pesquisas, quando buscava pelas notícias sobre isso na internet. O STF [Supremo Tribunal Federal] votou por unanimidade a favor dessas famílias. O afeto, o amor e o carinho vêm de dentro, o amor que vi me marcou muito, muitos casamentos de homem e mulher não têm o amor que eu vi, o amor que fez tudo isso acontecer”, desabafa Domingos.
Dificuldades
Domingos fez as provas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) duas vezes, mas não atingiu a média necessária para entrar na faculdade. Em seguida, ele realizou a prova do vestibular da faculdade Ages, conseguiu ser aprovado e passou a pagar todos os meses a mensalidade para se manter na instituição.
O professor orientador do seu TCC, Marcelo Oliveira, relembra que o trabalhador rural, além dos problemas financeiros, também enfrentou muitas dificuldades para se adaptar à dinâmica universitária. "Ele foi melhorando muito ao longo do curso, aprendeu a se comunicar com os professores, pedia ajuda quando não entendia algum assunto, sempre discutia quando tirava uma nota baixa e assim foi até o final do curso. Ele teve muitas dificuldades, enfrentou muito preconceito, tem uma origem muito humilde, mas conseguiu. A gente precisa acreditar que a educação é um verdadeiro mecanismo de transformação social", relata o professor.
Marcelo Oliveira conta que a turma não entendeu e até fez brincadeiras quando Domingos falou do tema escolhido para o TCC. "Ele [Domingos] disse: 'professor, eu escolhi esse tema pelas pessoas discriminadas, para mostrar que o direito é para todos e que não há distinção entre as pessoas'. Eu fiquei parado quando ouvi isso, porque uma pessoa do interior escolher um tema desse e defendê-lo dessa forma não é comum. Eu disse para ele que eu faria o que estivesse ao meu alcance para ajudá-lo", detalha o orientador.
Para ter dinheiro durante a faculdade e conseguir comprar os materiais que precisava, Domingos começou a trabalhar na produção de merenda em uma escola de Ribeira do Amparo, lavando panelas: “Eu sou funcionário público, trabalho na merenda escolar. Meus colegas e conhecidos aqui da cidade diziam que eu só sabia lavar panela, eles diziam ‘Eu nunca vi lavador de panela de formar em Direito’ e eu dizia ‘Apois eu vou’. E consegui, me formei em Direito lavando panela para ter meu dinheirinho”.
“A maioria dos conhecidos na minha cidade dizia que eu não passava nas provas da faculdade e eu passei sem bater na trave, tirei notas boas. Hoje eles falam que eu não vou conseguir passar na OAB, mas eu vou dar a resposta, se Deus quiser, passando e pegando minha carteirinha vermelhinha”, deseja o bacharel, emocionado.
Sonho
O bacharel decidiu fazer Direito para realizar um sonho de criança. Ele conta que quando tinha apenas 12 anos viu um advogado todo arrumado e perguntou para onde ele estava indo. O homem respondeu: “Estou indo para uma audiência”. A partir daí, Domingos começou a se perguntar: “O que é audiência? O que é um tribunal, um juiz ou Justiça?”. “Comecei a pesquisar, andei por São Paulo, estudei lá, andei por todos os cantos, fiquei cego de um olho e nunca desisti”, destaca.
Durante a faculdade, Domingos diz que foi bem recebido e contou com apoio dos professores e dos colegas de classe, além da família, amigos próximos e, claro, da sua "gatona", que é como ele mesmo chama sua esposa. Uma de suas filhas que o ajudava a usar o computador para acessar aulas e materiais de estudo. Ele também contou com doações para se manter no curso: “Esse computador que eu tenho foi o pessoal da faculdade que fez uma vaquinha para comprar para mim. Lembro que não tinha nem calça para ir no meu primeiro dia de aula, um colega me deu uma. Assim foi indo, com muita ajuda e muita persistência”.
Os colegas de curso também reuniram dinheiro e compraram para Domingos um terno e uma gravata. Ele conta que até com isso as pessoas já tentaram ofendê-lo: “Uma vez uma mulher gritou dizendo que eu parecia um pinguim, de uma forma maldosa, e meu professor respondeu: ‘É pinguim, pedindo ajuda a uns e outros que ele está formado’. Fiquei muito feliz, sou muito grato por todo esse apoio”.
Os pais de Domingos também eram produtores rurais e ele conseguiu ir para escola na sua infância, mas admite que não gostava de estudar e passava a maior parte do tempo brigando com os colegas. Já mais velho, ele foi para São Paulo e lá concluiu os estudos. Ao ser entrevistado, o bacharel não esconde a emoção em relembrar toda sua caminhada.
“Eu estou chorando com essa reportagem, relembrar tudo que vivi é muito emocionante, foi muito bonita a minha caminhada. Tenho que agradecer a Deus pela oportunidade de poder fazer tudo isso e a todos que me ajudaram. Quero passar na OAB, advogar e defender as pessoas pobres, os que são prejudicados. Vou vestir o paletó e lutar pelo direito no Brasil”, finaliza.
Maria José Pinheiro de Souza, 63, esposa de Domingos, que também é trabalhadora rural e trabalha ombro a ombro com o marido na roça, ressaltou sua felicidade em ver as conquistas do bacharel em Direito. “Eu acho gratificante pela idade que ele começou, vencendo os preconceitos, as críticas e as brincadeiras destrutivas. Ele ter conseguido se graduar é para mim um orgulho imenso, eu agradeço muito por estar ao lado desse idoso com espírito de jovem e que mais jovens se inspirem nele”, diz.
Por Laiz Menezes*
* Com supervisão da chefe de reportagem Perla Ribeiro
Fonte: correio24horas.com.br