‘Voltei para o ensino médio aos 50 anos e aos 64 passei na prova da OAB’

Via @universa_uol | Uma dona de casa que retomou os estudos aos 50 anos se formou em Direito e conseguiu tirar a OAB aos 64 anos. Marina Neves casou e teve filho antes dos 18 anos. Havia parado na 4ª série primária para cuidar da família e dos filhos. Aos 40, teve netos e passou a cuidar deles também. "Nessa época, minha vida era voltada à minha casa, minha família e a igreja. Não passava pela minha cabeça voltar a trabalhar e estudar pois já estava com a idade avançada", conta Marina, entrevista a Universa.

Tinha o sonho de concluir os estudos, mas aos 40 anos foi avó, e adiou seu sonho novamente em prol da família. Depois de os filhos crescerem voltou a considerar os estudos. "Um dia parando para refletir sobre o tempo ocioso que eu tinha, percebi que poderia fazer algo para movimentar a minha vida mais ainda", conta. Retomou os estudos e, recentemente, formada, ganhou o direito de advogar.

A seguir, Marina conta sua história:

"Voltei a estudar aos 50 anos e hoje sou advogada"

"Nasci na cidade de Bilac, em São Paulo, no dia 1 de agosto de 1958. Quando tinha 4 anos de idade, vim para a cidade de Bauru, onde meu pai trabalhava. Fomos morar na Vila Aimorés, éramos em quatro: minha mãe, meu pai, meu irmão e eu. Quando eu tinha 7 anos, meu pai faleceu. Nessa época, minha mãe trabalhava de doméstica.

Quando terminei a 4ª série, por volta do ano de 1970, por causa das dificuldade financeiras da minha família, fui trabalhar de empregada doméstica na casa da minha professora e ajudava a cuidar do meu irmão mais novo.

Casei aos 16 anos de idade e no ano de 1976 tive meu primeiro filho, Helder, e em 1980, aos 22, tive meu segundo filho, Christian. Criei meus filhos trabalhando na indústria alimentícia e meu marido, Sergio, trabalhava na indústria têxtil. Ambos trabalhávamos em fábricas localizadas no distrito industrial em Bauru. Em 1996, meus filhos já estavam crescidos, inclusive já trabalhavam, então eu parei de trabalhar fora de casa.

Meu filho mais novo se casou em 1999 e, nesse mesmo ano, nasceu a minha primeira neta, Esthefany. Minha segunda neta, Isabely, nasceu em 2002, e meu neto Hyan, em 2005. Durante os anos de 2004 a 2009, meu sogro que já contava com 90 anos de idade e tinha a saúde bem debilitada morou em nossa casa, cuidei dele até o dia de seu falecimento.

Nessa época, minha vida era voltada à minha casa, minha família e a igreja. Não passava pela minha cabeça voltar a trabalhar e estudar pois já estava com a idade avançada. Até que um dia parando para refletir sobre o tempo ocioso que eu tinha, percebi que poderia fazer algo para movimentar a minha vida mais ainda.

"E se eu voltasse a estudar?"

Foi então que, conversando com o meu marido, me lembrei que parei de estudar na 4ª série e perguntei a ele: será que daria certo se eu voltasse a estudar? Ele achou a ideia maravilhosa e me apoiou totalmente.

No meio do ano de 2010, aos 52 anos, depois de pedir orientação para alguns amigos, procurei o EJA de Bauru e me matriculei, pois havia traçado um plano: recuperar todo o tempo que fiquei sem estudar em 15 anos.

De 2010 até o fim de 2012, terminei o fundamental na escola Anibal Difrância, em Bauru. Foram anos de muita alegria pois tinha o incentivo tanto dos meus professores quanto dos funcionários da escola. Me senti muito acolhida.

No início de 2013, comecei meus estudos do ensino médio na escola Doutor Luiz Zuiani e conclui em meados de 2014. Como eu me adaptei e gostei muito de estudar, no meio do ensino médio já comecei a traçar os planos para fazer faculdade.

"Eu era a aluna mais velha da classe"

Como sempre me interessei pela área jurídica, direito era a melhor opção para o meu perfil. Antes de tomar tal decisão, conversei com meu amigo pastor Luciano, realizei testes vocacionais e tive a certeza, pois nos três testes que fiz, os todos deram a opção do direito. E foi aí que no mês de agosto de 2014, me matriculei na faculdade IESB-PREVE, que depois se tornaria UNIESP. Ali cursei os meus cinco anos de faculdade. Não faltava por nada e era uma aluna bem regular.

Os anos foram se passando e consegui fazer estágio na Central de Polícia Judiciaria de Bauru e no Núcleo de Prática da faculdade. Decidi fazer estágio na área de Direito Penal pois sempre foi a área em que eu mais me identifiquei, e consequentemente fiz meu TCC em inquérito Policial. No período em que estava escrevendo meu TCC, eu estava totalmente focada em fazer um ótimo trabalho, então me abdiquei de várias coisas até a conclusão e entrega do projeto.

Tive professores ótimos dos quais nunca esquecerei. Sempre me apoiaram e me incentivaram a nunca desistir. Eu era a aluna mais velha da classe. Mas hoje agradeço muito ao meu professor e orientador doutor José Fernando do Amaral Junior.

No dia 16 de julho de 2019, foi realizada a minha formatura. Contei com a presença de toda a minha família e de pessoas muito importantes para mim. Foi um dia extremamente feliz, pois estava encerrando uma fase muito importante do meu plano em apenas dez anos, ou seja, cinco anos a menos do meu planejado.

Mesmo já conseguindo o que eu queria, não me dei por vencida e decidi fazer a prova da Ordem Advogados do Brasil, mesmo com tantos comentários negativos dizendo o quanto a prova é difícil. Confesso que estudei e me preparei bastante para a 1ª fase da prova da ordem.

Cheguei em casa com esperanças depois da prova, mas na primeira tentativa só consegui 39 pontos e precisava de 40. Conclusão: no mesmo dia me inscrevi para a próxima prova.

Realizei mais estudos por conta própria, sempre buscando cursos, livros e aulas gratuitas na internet. Na segunda vez que prestei a 1ª fase, consegui 49 pontos e passei para a 2ª fase em Direito Penal, mas não tive êxito. E isso aconteceu por mais duas vezes.

E mesmo depois disso, tive a consciência de que precisaria estudar mais ainda. Nesse momento, Deus me enviou pessoas muito importantes na minha caminhada, pois ganhei livros e até um curso particular da 2ª fase da OAB. Então no XXXIII Exame da Ordem, fui muito abençoada e consegui a minha vitória. Passei e estou apta para receber minha carteira.

Tive consciência da minha representatividade quando fui receber a minha carteira. Era a única mulher negra com idade avançada no evento. Conversando com a minha neta Esthefany, que, inclusive, hoje com o meu incentivo, é bacharel em direito também, sobre a representatividade me fez refletir da importância de exemplo de mulheres negras nos dias de hoje.

Quero que minha história seja exemplo para que mais mulheres assim como eu possam chegar aonde eu cheguei. Mesmo com dificuldades e obstáculos que temos nos dias de hoje, é possível.

Mas a história não acaba por aqui, quero realizar minha pós-graduação em Direito Penal, e me especializar na Lei Maria da Penha." Marina Neves, 64 anos, advogada, de Bauru (SP)

Fonte: uol.com.br

Anterior Próxima