Aluna da escola pública, Flávia tentou o vestibular três vezes, primeiro para Psicologia, em universidades públicas. Quando finalmente passou — em segundo lugar, mas numa faculdade particular —, não tinha dinheiro para pagar a mensalidade. Marcou entrevista com o dono da instituição e pediu uma bolsa, já que tinha se saído tão bem na prova. Ouviu dele que "minha faculdade não é para pobre".
"Glória me fez acreditar que era possível ser uma mulher preta bem-sucedida", conta ela, hoje juíza de direito do Tribunal de Justiça de São Paulo e juíza auxiliar no STF. "Ela foi além, muito além", resume.
Na quinta-feira (2), Martins compartilhou essa história em sua palestra do TEDxTalks, "Um corpo negro antecede qualquer fala", e citou a jornalista como uma das suas principais inspirações na vida. Coincidentemente, o vídeo foi ao ar no exato dia em que Glória, uma das maiores repórteres televisivas da história brasileira, morreu em decorrência de um câncer que tratava desde 2019.
"Eu não me lembro da primeira vez que vi a Glória Maria na televisão, porque a impressão é que ela sempre esteve lá", diz Flávia ao TAB, emocionada. "Hoje, saber que ela não vai estar ali é muito doloroso."
Ainda que a magistrada tenha seguido uma área diferente, Flávia é uma das milhares mulheres negras que têm a jornalista da TV Globo como referência de possibilidade e superação.
Além do curso de Comunicação Social e de Direito, que cursou na UERJ, ela é doutoranda em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Nascida no Rio de Janeiro, compõe uma minoria de juízes negros no Poder Judiciário — minoria ainda menor quando se afunila para mulheres negras juízas.
Flávia se tornou uma das principais vozes pela igualdade social e racial em espaços majoritariamente brancos e masculinos, como o Poder Judiciário brasileiro e foi diretora de Promoção da Igualdade Racial da AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros) de 2020 a 2022.
Glória, que também ocupou e se destacou em um espaço majoritariamente brancos e masculino, como o jornalismo brasileiro, é diretamente responsável pelo fato de a área ser hoje um pouco mais democrática. Em mais de quatro décadas cobrindo eventos históricos no mundo inteiro, a jornalista viajou para mais de 100 países, cobriu guerras, entrevistou presidentes e personalidades e nunca abriu mão de se apresentar como figura única, feminina e forte.
Glória levantou também uma importante discussão sobre etarismo e rótulos impostos às mulheres. A jornalista, que nunca quis revelar sua idade, não teve seu desejo respeitado por grande parte dos veículos de comunicação.
A presença de Glória incomodava aos outros. Em uma entrevista, a jornalista contou que por causa de sua postura profissional, o general Figueiredo, o último presidente do período da ditadura militar, não a suportava.
"Quando ele foi indicado, a gente foi fazer a famosa fala dele na Vila Militar, em que ele dizia: 'Para defender a democracia, eu bato, prendo e arrebento'", contou a jornalista em uma entrevista ao "Programa do Bial", na TV Globo. "Isso que o senhor citou não existe mais", rebateu a jornalista, ao vivo. Por causa disso, foi expulsa pelo general: "Tira essa mulher daqui, tira essa mulher daqui."
A partir desse dia, Glória contou que o general da ditadura militar passou a odiá-la e tratá-la com desprezo. "Onde eu chegava, dizia para a segurança: 'Não deixa aquela neguinha chegar perto de mim'."
Momentos como esses, afirma a juíza Flávia Martins, mostram que Gloria deixou mais do que um legado profissional na comunicação — mas um legado nos direitos humanos. "É um legado de defesa da dignidade da pessoa humana e de combate ao racismo", diz.
"Glória não precisava falar [diretamente sobre preconceito]. Só a presença dela, íntegra e digna, era uma forma poderosa de lutar contra o racismo. Ela não precisava abrir a boca para expressar, porque ela sempre soube que seria atacada, seria lida pela lente do racismo como alguém que não deveria estar ali."
Pioneira não apenas na TV brasileira, Glória também teve destaque na luta contra a discriminação racial. Em 1970, a jornalista foi a primeira pessoa a usar a Lei Afonso Arinos, que punia o racismo como contravenção penal.
No Poder Judiciário, a juíza Flávia lida com situações semelhantes às que a jornalista teve de enfrentar, mesmo sendo bem-sucedida. "Quando você está em um espaço de poder e de privilégio, um espaço que não enxerga teu corpo negro como algo pertencente dali, ele vai tentar te expulsar", conta.
"Ascender socialmente não te blinda desses episódios. Mesmo com a potência que o microfone dava a ela de denunciar, não era capaz de evitar esses episódios. Sabe por quê? Porque o racismo não se intimida com isso, ele é muito mais estruturado."
Para a magistrada, o olhar diferencial de Glória se devia às próprias vivências e marcas adquiridas pelo caminho, tanto por conta da discriminação racial quanto pela desigualdade de gênero.
"Glória trazia uma autenticidade própria e era capaz de identificar e perceber nuances que não estavam evidentes. É um senso de percepção do humano acima da média. Ela trazia aquilo que não estava evidente. Não era uma pessoa comum. Mais importante, ela abriu uma porta para a gente e disse que é possível."
Marie Declercq
Do TAB, em São Paulo (SP)
Fonte: tab.uol.com.br