As instruções contidas no slide foram repassadas à equipe em outubro do último ano, quando foi feito um registro da apresentação, mas o assunto se tornou uma denúncia no mês passado e, em forma de Notícia de Fato, está disponível no site do MPCE, com o número 01.2023.00011280-2, em análise na 95ª Promotoria de Justiça de Fortaleza.
Além disso, em entrevista ao Diário do Nordeste, na última sexta-feira (5), o Ministério Público do Trabalho (MPT) tomou ciência do caso e também passou a apurar a conduta da empresa. O uso de critérios discriminatórios para a seleção de empregados contraria a Constituição Federal e leis trabalhistas, como contextualiza Melícia Carvalho Mesel, coordenadora Nacional de Promoção da Igualdade de Oportunidades e Eliminação da Discriminação no Trabalho (Coordigualdade) do MPT.
Caso a denúncia seja confirmada pelos órgãos e haja condenação, as punições podem ser a condenação da empresa com o pagamento de dano moral coletivo e a proibição de obter empréstimo em instituições financeiras oficiais, como exemplifica Melícia. As leis 9.029/1995 e 13.467/2017 são algumas das normas que deixam evidentes a ilegalidade das práticas discriminatórias.
• Lei Nº 9.029, de 13 de abril de 1995: indica no Artigo 1º que é proibida a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso à relação de trabalho.
• Lei Nº 13.467, de 2017: inclui na Consolidação das Leis do Trabalho um texto para "assegurar tratamento justo e imparcial aos empregados, impedindo qualquer forma de discriminação por motivo de sexo, idade, religião, opinião política ou atuação sindical".
A reportagem ouviu uma outra pessoa - já que o denunciante é anônimo e tem a identidade preservada pelo MPCE - que trabalha para a Febracis, e não terá a identidade divulgada. Ela chegou a receber a imagem do treinamento com os critérios para a seleção de novos funcionários. Mesmo sem estar na ocasião específica na qual foi realizado o treinamento, a fonte relata que, de forma semelhante ao que há no texto da denúncia, já presenciou diversas outras situações constrangedoras na empresa.
“Quase sempre encontram uma forma de ligar religião à política e não têm filtros em doutrinar isso. Sendo que, na minha opinião, deveriam ser duas coisas que não se misturam”, avalia.
Os colaboradores são conduzidos para orações realizadas, praticamente, todas as manhãs. São ocasiões de desconforto pela forma como são feitas, admitiu ainda a fonte ouvida pela reportagem. “Temos que ouvir e ‘aceitar’ ou estaremos indo contra a cultura da empresa”, acrescentou.
Legenda: Alguns funcionários relatam desconforto em relação à religião e à políticaFoto: Reprodução/Instagram
No período eleitoral de 2022, os funcionários passaram a ouvir com mais intensidade comentários de rejeição ao Partido dos Trabalhadores (PT), conforme a mesma fonte ouvida pela reportagem. “Também já houve momentos em que falaram que quem apoiava o PT, o comunismo, era satanista, contrário a Deus, estava seguindo ao demônio”, descreve.
PROMOTORIA INVESTIGA DENÚNCIA
O Ministério Público do Estado do Ceará informou, por meio de nota, que as peças da Notícia de Fato, demanda dirigida aos órgãos de execução do MPCE, instaurada após a comunicação da ocorrência, estão em análise.
Já a OAB Ceará recebeu a denúncia como uma prática de racismo e injúria racial. Os fatos são apurados por setores internos, como Presidência, Ouvidoria, Procuradoria Jurídica e Comissão de Direitos Humanos. A empresa deve ser notificada para manifestação.
“Caso haja comprovação criminal, informamos que a OAB-CE irá encaminhar providências aos órgãos responsáveis para apuração dos fatos”, acrescenta a nota.
A reportagem do Diário do Nordeste entrou emcontato com a Febracis e questionou à empresa sobre as orientações presentes no treinamento, e que se tornaram motivo de denúncia, além do relato sobre atos de discriminação religiosa e desrespeitos em relação a opções políticas.
A Febracis respondeu aos questionamentos por meio de nota, informando que é “contrária a qualquer tipo de assédio e respeita as pessoas como elas pensam e são bem como suas diferentes ideologias, culturas, religiões e formas de expressão”.
Acrescenta ainda a nota da empresa que “a diversidade faz parte da cultura organizacional e o processo seletivo estruturado com base em competências. A empresa está instaurando um processo interno para a devida apuração dos fatos”.
No entanto, ainda conforme fonte ouvida pela reportagem, e que ainda trabalha na empresa, há uma imposição da visão política da empresa aos funcionários. “Aproveitavam cada oportunidade para dar verdadeiras 'palestras' sobre isso, alegando que o Brasil viraria uma Venezuela se o PT ganhasse”, descreve.
"Temos vários de casos de assédios morais de líderes e colegas, pessoas afastadas com problemas psiquiátricos, nível de ansiedade muito alto, pessoas sobrecarregadas, casos de burnout" FUNCIONÁRIO (A) FEBRACIS
Os líderes dizem ter visões e conversas com Deus e coagem os funcionários a participar de eventos religiosos, ainda conforme a fonte ouvida. “Já chamaram pessoas de satanistas só porque iam de encontro ao que eles pensam ou agem”, completa.
CULTURA FEBRACIS
A empresa Febracis, criada pelo coach Paulo Vieira, se descreve no site oficial como a maior instituição de educação empresarial da América Latina, e diz ter impactado mais de 70 milhões de pessoas ao longo de sua trajetória, desde 1998.
Entre os valores destacados pela empresa na descrição na página oficial estão a integridade e ética e os princípios judaico-cristãos, amor ao próximo e a si mesmo, entrega extraordinária, lucro extraordinário, entre outros.
Na instituição é usado o método do Coaching Integral Sistêmico (CIS) para uma alta performance pessoal e profissional "sem comprometer nenhuma área da vida. Saúde, família, conjugal, financeiro, social, entre outras áreas, são trabalhadas no processo", acrescenta.
Legenda: É usado o método do Coaching Integral Sistêmico para uma alta performance pessoal e profissionalFoto: Reprodução/Instagram
Segundo o site, “são 1.300 funcionários em mais de 40 cidades brasileiras, com atuação em 5 países. No último ano, foram treinadas mais de 380 mil pessoas".
DISCRIMINAÇÃO NO TRABALHO
Questionada sobre a postura da empresa, conforme as denúncias, a procuradora do MPT e titular da Coordigualdade, Melícia Carvalho Mesel, declarou, em entrevista ao Diário do Nordeste, que no recrutamento de funcionários as empresas podem usar apenas critérios relacionados à competência e qualificação dos candidatos a vagas de emprego.
“Não pode haver a utilização de nenhum critério discriminatório por orientação política, religiosa, idade, sexo, origem, convicção filosófica, nem para a contratação, nem para a ascensão profissional”, ressalta Melícia.
"Temos de ser categóricos: não pode haver a seleção e contratação de trabalhadores baseado em critérios discriminatórios. Para se contratar alguém, o que precisa é qualificação técnica" MELÍCIA CARVALHO MESEL - Procuradora do MPT
Quando uma empresa orienta a escolha de pessoas com uma boa escrita, por exemplo, se cria um critério técnico – com relação à competência para executar determinada função. Isso está entre os filtros adequados, como avalia a procuradora.
“O empreendedor tem liberdade de dirigir o seu negócio, a prestação de serviço, mas tem limites impostos pelas leis. Dentre os limites está a utilização desses critérios para contratação”, completa Melícia.
Legenda: As empresas podem usar apenas critérios em relação à competência e qualificação dos candidatos a vagas de empregoFoto: Shutterstock
No cotidiano de trabalho, a procuradora lida com diversas denúncias do tipo e os casos foram mais recorrentes no último pleito eleitoral. No Ceará, foram pelo menos 40 denúncias e 36 empresas investigadas por assédio eleitoral em 2022.
“Infelizmente, nós temos várias denúncias de discriminações por esses critérios, nós tivemos muitos casos de assédio eleitoral praticado contra pessoas que têm uma orientação política diferente”, contextualiza.
OUTRA DENÚNCIA EM 2022
Em outubro de 2022, a consultora comercial Tainara Moura, 26 anos, que, na época, morava na cidade de Vitória, relatou nas redes sociais ter sido demitida de uma filial da empresa Febracis no Espírito Santo. As informações foram publicadas no g1.
Ela denunciou a ocorrência de assédio eleitoral, pois, segundo relatou, na campanha eleitoral, a empresa pressionou os funcionários a apoiar o então candidato à reeleição Jair Bolsonaro (PL) e ela não seguia essa orientação.
Na época, Tainara contou que uma diretora da Febracis enviava mensagens no Whatsapp com conteúdos políticos e religiosos favoráveis a Bolsonaro. Além disso, ela destacou que discursos no mesmo sentido eram proferidos dentro da empresa. À época, ela indicou que denunciou o caso ao MPT e registrou um Boletim de Ocorrência.
A assessoria jurídica da Febracis no Ceará, na época, informou que desconhecia o fato, pois a empresa onde teria ocorrido o caso é uma franquia independente, com administração própria. Disse ainda que preza "pela liberdade de orientação política e demais formas de expressão".
Escrito por Lucas Falconery, lucas.falconery@svm.com.br
Fonte: diariodonordeste.verdesmares.com.br