Nascida em São Paulo, Valentina se mudou para Madri com apenas 8 anos, levada à Europa pelo trabalho da mãe. Sempre próxima dos números e das artes, a jovem chegou a se formar em engenharia e cinema na faculdade, mas se desiludiu e hoje trabalha em um dos maiores escritórios jurídicos da capital inglesa, com mais de 40 filiais pelo mundo.
Como estudante de cinema virou advogada
A formação de Valentina no ensino superior tem uma série de elementos estranhos aos estudantes brasileiros.
Ela fez uma faculdade de apenas três anos — um padrão comum no Reino Unido — e saiu formada em Artes e Ciências, com foco em engenharia e cinema. A brasileira explica que o ensino britânico incentiva a união de matérias "opostas", para que só depois o estudante se especialize.
"Eu conheço executivos que são formados em japonês. As faculdades na Inglaterra, em geral, dão uma ênfase às habilidades mais pessoais. Como você interage com pessoas, como fala com clientes. Eles pensam que para saber as leis, por exemplo, é só consultar um livro de direito. Com essas outras características, não é assim."
O esquema flexível facilitou a vida de Valentina, uma apaixonada por matemática que se aventura até hoje cantando em shows amadores.
"Eu me formei na University College London em 2019 e por lá eles disponibilizam muitas matérias interdisciplinares, em que misturam física e música, ciência e religião. É um curso maravilhoso, mas a questão é que quando me formei, eu fiquei muito perdida, porque gostava muito de números, mas também adorava arte e cinema".
Apesar de estar dividida entre os dois mundos, a estudante chegou a se inscrever em um mestrado de cinema, sendo surpreendida por um intervalo de três meses até o início das aulas.
Para preencher a rotina, ela decidiu arrumar um trabalho temporário — o grande responsável pela reviravolta em sua vida.
"Eu decidi trabalhar em uma startup. Nela, a gente fazia de tudo um pouco e quando fui para o setor de marketing, trabalhei com muitas pessoas criativas. Aquilo me irritava de um jeito que eu não consigo explicar. Nessa hora eu falei: 'isso não é pra mim, de jeito nenhum'. Por que as ideias não eram baseadas em nenhum dado concreto e se eu já estava me estressando com publicidade, que é um vídeo de um minuto, imagina com cinema?", justifica.
50 vagas, 5 mil candidatos
Perdida após a desilusão com as artes, Valentina recorreu à internet para pesquisar sobre novas carreiras. Entre as buscas, ela acabou encontrando um "curso de conversão" que permitia a qualquer pessoa, formada em outros cursos ou em faculdades fora do Reino Unido, uma formação em direito em apenas sete meses.
"Eu vi que as maiores empresas de advocacia daqui têm programas em que eles pagam para você fazer esses cursos — que são caros — só depois de formada você trabalhar dois anos com eles, obrigatoriamente. São tipo 5 mil candidatos para 50 bolsas."
O curso de conversão custa em média 16 mil libras (R$ 97 mil). Depois, o estudante ainda passa por uma prova e só depois da aprovação pode ser promovido a trainee, com salário médio de 43 mil libras ao ano (R$ 262 mil) para funcionários de escritórios em Londres.
Valentina detalha que há um ano o esquema para se tornar advogado no Reino Unido ficou mais simplificado: o curso de sete meses não é mais obrigatório e o candidato a advogado tem que fazer "apenas" duas provas, SQE1 e SQE2. A primeira prova custa cerca de £1,558 (R$ 9,5 mil). Já a segunda, £2,422 (R$ 14,8 mil).
"Quem fez direito no Reino Unido faz apenas uma das provas antes de começar a trabalhar, mas se você estudou qualquer coisa fora daqui, mesmo que seja direito, tem que fazer as duas", explica a brasileira, detalhando que a prova cobra informações específicas da área, mas que os estudantes podem estudar as leis sozinhos, se preferirem.
Para ser aprovado, precisa ser bom em humanas?
Nos dois últimos anos de formação no ensino médio, ainda em uma escola britânica em Madri, Valentina pode escolher apenas quatro matérias para cursar, acrescentando matemática, matemática avançada, física e artes ao seu currículo. Ela confessa que o distanciamento das humanas chegou a fazê-la duvidar que conseguiria a bolsa.
"Eu sabia que as chances eram super baixas. São vários dias de provas e você tem que fazer entrevista no escritório em que quer trabalhar. Os entrevistadores me falaram: 'a gente te dá uma resposta até o final da semana que vem. Esperei segunda, terça, quarta...e nada. Na sexta decidi ir para a academia para desestressar. Quando estava no banho pós-treino eles me ligaram. Atendi toda molhada mesmo e eles disseram que eu tinha conseguido.
"Fiquei feliz e aliviada. Eles pagaram pelo meu curso, pela minha prova e também bancaram meu aluguel durante os estudos. Agora eu estou há seis meses trabalhando e depois do contrato posso escolher livremente o que quero fazer, inclusive se preferir sair da empresa"
Do que um brasileiro precisa para ser advogado em Londres?
Apesar de dividir sua vida nas redes sociais, Valentina faz questão de destacar que sua situação é cercada de privilégio.
Brasileiros que queiram seguir o exemplo da advogada têm que estar preparados para um processo que demanda inglês nativo, permanência de longo prazo na Europa e uma base financeira.
"Acho que a parte mais importante é o inglês. Para um brasileiro fazer o que eu fiz, tem que ter um inglês perfeito, muito fluente. Especialmente no direito, em você tem que escrever documentos com um mega vocabulário. Desde que saí do Brasil, o inglês virou minha língua materna, porque eu usava para falar com a minha irmã e assistir à TV, já que não gostava de assistir dublado em espanhol.
Enquanto morava em Madri, a advogada também sempre frequentou uma escola britânica, o que facilitou sua ida à Inglaterra — apoiada também por um passaporte português. O financiamento de 35 mil libras que pagou sua faculdade, por exemplo, é acessível somente a cidadãos europeus.
"Além disso, eu me mudei antes de o Reino Unido deixar a União Europeia. Então, não quero dar esperança pra todo mundo, porque eu tive a sorte de ter esse passaporte e ter vindo antes do Brexit. Agora, as coisas ficaram mais difíceis em geral", afirma.
A vida em Londres
Em seus dois anos de treinamento, Valentina deve passar por quatro áreas diferentes do direito corporativo. Entre os pontos altos de seu novo trabalho, ela destaca a possibilidade de se conectar com outros estrangeiros — uma das coisas que a brasileira mais gosta em Londres.
"Todo mundo tem um sotaque, um jeito diferente de falar, é muito internacional. Não penso em ficar em Londres para o resto da minha vida porque não é uma cidade ótima pra ter filhos, não tem tranquilidade. Mas hoje, que tenho 24 anos, eu adoro, apesar do clima sempre ruim", conta.
A advogada também não faz questão de prever o que fará no seu futuro profissional. Caso continue no direito, ela aposta que trocará os dias de reuniões pela presença nos tribunais — mas, com o sucesso nas redes, outras possibilidades estão na mesa.
"Eu ainda não me apaixonei por nada, e eu quero me apaixonar por o que eu faço. E o sucesso no Tiktok abre novas possibilidades também, quem sabe o que pode acontecer? Eu vou pagar o empréstimo que o governo me deu para a faculdade, mas o resto é muito cedo pra saber, estou indo passo a passo."
Por Pietra Carvalho
Fonte: noticias.uol.com.br