Segundo o processo judicial, ao chegar ao hospital o estado de saúde do menino era excelente e ele foi submetido a diversos exames. Os resultados indicavam que não havia qualquer outro problema de saúde fora a doença de base. Ele foi então submetido a quimioterapia, cujo objetivo era destruir a medula óssea doente para abrir espaço para a entrada nova, além de evitar rejeição.
As sessões de quimioterapia durariam oito dias, mas já no primeiro dia do procedimento o bebê passou a sentir fortes dores abdominais e teve vômitos. De acordo com o prontuário, a médica responsável foi acionada às 20h15m, às 21h50m, às 23h30 e 1h45m devido à piora dos sinais clínicos do paciente como fortes dores, vômitos e gemidos. Foi prescrito inicialmente dipirona e, no último chamado, morfina.
Durante seis horas, porém, período em que a criança sofreu com fortes dores, a orientação dos médicos teria sido dada para a equipe de enfermagem apenas por telefone e ela não foi examinada por nenhum médico. A médica responsável pelo caso só teria se deslocado ao hospital quando houve parada cardiorrespiratória.
Segundo descrito no processo, o bebê se contorcia de dor e estava com o abdômen distendido e rígido. Às 02h52 a mãe solicitou aos prantos avaliação médica presencial, já que a criança estava com choro mais fraco, palizez intensa e rush no tronco e dorso. Uma enfermeira se prontificou a chamar o médico plantonista da UTI pediátrica, mas não houve tempo. Um minuto depois o bebê sofreu a primeira parada cardiorrespiratória, revertida pela equipe médica intensivista. Às 3h55h teria ocorrido uma segunda parada e ele foi novamente reanimado.
Mesmo assim, permaneceu no leito à espera de vaga na UTI e foi transferido apenas às 5h18, quando foi solicitada ultrassonografia de abdômen e avaliação da cirurgia pediátrica. A médica responsável teria chegado, mas não há informação sobre a hora exata em que ela compareceu ao hospital.
O bebê teve ainda uma terceira parada cardiorrespiratória e sangramento pela boca, sendo reanimado mais uma vez, mas faleceu às 7h07
"É estarrecedora a conduta da médica diante dos sintomas apresentados pelo menor, principalmente considerando queo procedimento pelo qual a criança estava sendo submetida era delicado, bem como o fato de que a doença de base, por si só, já aumentava as chances de dano intestinal", afirmou a desembargadora Hertha Oliveira, relatora do processo.
Na avaliação da Justiça, a indicação de opióide (morfina) para um paciente com dor abdominal aguda, sem histórico de dor anterior, sem submeter a um exame físico e aventar possibilidades diagnósticas, não é compatível com a boa prática da medicina.”
No relatório, a desembargadora afirma que a descrição do quadro durante as seis horas de sofrimento da criança "é de partir o coração".
Horas de tortura
Na sentença de primeira instância, proferida em 2022, a juíza Thania Cardin afirmou que os pais suportaram um quadro de dor inigualável: "A ninguém se deseja assistir ao sofrimento do filho. Incontáveis são os adjetivos para o que experienciaram os pais durante tais horas de tortura."
Segundo documento de perícia anexado ao processo, a doença do bebê não causa dores, o que ocorre apenas diante de inflamação ou infecção intestinal. De acordo com o Serviço de Verificação de Óbito, a criança teria sofrido síndrome hemorrágica devido a uma perfuração no intestino grosso.
Os pais foram à Justiça e acusaram dois médicos e o hospital de negligência, imprudência e imperícia, por deixarem de prestar a atenção devida e socorro em tempo hábil. O hospital e os médicos contestaram e alegaram que a criança morreu em decorrência da grave doença crônica que sofria e que, nos momentos que antecederam a morte, agiram com "escorreita prestação de serviços" e o paciente foi assistido por médicos e pela equipe de enfermagem do hospital o tempo todo.
O hospital argumentou ainda que, conforme autorização do Conselho Federal de medicina, a equipe médica atende os pacientes no período diurno e fica disponível por telefone à noite, retornando se necessário. No período noturno os pacientes têm assistência da equipe multidisciplinar, que aciona os médicos caso necessário.
O Sírio-Libanês afirmou ainda no processo que os pais foram alertados sobre os riscos do procedimento e de que não haveria garantia de sucesso e que a médica responsável ficou disponível em tempo integral por telefone.
Embora o caso tenha ocorrido em 2018, entre as alegações que constam no processo está a permissão para exercício da telemedicina, que foi adotada a partir da pandemia de Covid-19, em 2020.
Os médicos argumentaram que a aplicação do mesmo quimioterápico foi feita 1.517 vezes desde 2014 em 125 pacientes com o mesmo protocolo adotado para o bebê e que não havia, até então, nenhuma morte. Para eles, a perícia teve entendimento equivocado dos procedimentos médicos e a conduta ocorreu "dentro da normalidade de tratamento". Ressaltam ainda que a reclamação sobre o mesmo caso, apresentada ao Conselho Regional de Medicina (Cremesp), foi arquivada.
Para a Justiça, porém, devido ao quadro de dor e enfermidade grave, era necessária visita médica presencial e houve negligência, caracterizando que foi perdida a chance de evitar a morte do bebê.
"Houve perda de uma chance, de ser atendido enquanto houvesse possibilidade desobrevida", diz a Justiça, afirmando que se fosse identificada a tempo a perfuração do intestino haveria possibilidade de cirurgia de emergência ou tentativa de socorro.
Em nota, o Hospital Sírio-Libanês afirmou que "expressa votos de pesar e se solidariza com a família de Pedro Assis Cândido. Uma vez que o caso segue tramitando na Justiça, em respeito a todos os envolvidos e ao rito processual, o hospital não comentará sobre seu andamento".
Por Cleide Carvalho
Fonte: oglobo.globo.com