A negativa dos cartórios em expedir registros de união estável para vértices destes triângulos amorosos assumidos é amparada em uma determinação de 2018 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que os impede de reconhecer uniões poliafetivas, por três ou mais pessoas, em escrituras públicas. A justificativa do órgão foi de que o documento implicaria na legitimação de direitos garantidos a casais ligados por casamento ou união estável, e o relacionamento de poliamor não era validado legalmente no país.
As barreiras jurídicas não intimidaram os bancários Denis Ordovás, de 46 anos, Letícia Pires Ordovás, de 52, e a pedagoga Keterlin Kaefer de Oliveira, de 32. Motivados pela chegada do filho Yan Kaefer Ordovás, hoje com 4 meses, eles decidiram oficializar o relacionamento que já durava dez anos e conseguiram, em setembro de 2023, após decisão favorável do Tribunal de Justiça Estadual do Rio de Grande do Sul, expedir o registro de união estável dos três.
— Acho que o que pesou a nosso favor foi o tempo de relacionamento e o fato de o nosso casamento ser público. Não temos pudor de expor nosso amor nas redes sociais, por exemplo. O juiz citou que a sentença era “um novo começo de era” e espero que a decisão sirva de estímulo para que outras famílias formadas por trisais também possam buscar seu reconhecimento legal — torce Denis.
Segundo o presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família, Rodrigo da Cunha Pereira, a falta de uma legislação que proteja esse novo modelo deixa os integrantes de trisais desamparados, principalmente em casos de separação ou de morte, quando há a necessidade de divisão de bens.
— Acaba que tudo tem de ser discutido na Justiça, caso a caso. O Estado não pode se negar a dar proteção jurídica a essas pessoas. Negar essa nova realidade social com argumentos morais é uma hipocrisia — avalia Pereira.
Trisal composto por Priscila Mira, Marcel Mira e Regiane Gabarra, que brigam na justiça para registrarem os três o filho Pierre, de dois anos — Foto: ArquivoRegistro multiparental
O advogado especialista em Direito Civil João Mateus Lopes Monteiro explica que o processo para que o trisal inclua na certidão de nascimento do filho com o nome dos três é facilitado pela jurisprudência que autoriza o registro multiparental. A medida não é específica para famílias formadas por poliamor e pode, por exemplo, ser usada também em casos de adoção, mas só pode ser feita diretamente em cartório em casos que a criança tenha mais de 12 anos.
— Caso o trisal tenha interesse no reconhecimento multiparental de uma criança com menos de 12 anos esse procedimento tem que ser obrigatoriamente feito pela via judicial, contratando um advogado para que seja feita uma ação declaratória de paternidade ou maternidade socioafetiva — explica Monteiro.
O Congresso, entretanto, fez um aceno na direção contrária ao reconhecimento legal do casamento de trisais. Em dezembro de 2023, a Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados, então composta em sua maioria por deputados de direita, aprovou um projeto de lei que proíbe os cartórios de registarem uniões estáveis de trisais. O texto segue agora para a análise da Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial da Casa.
Veja fotos do nascimento do bebê do trisal de Londrina (PR)
O trisal no emocionado com o nascimento de Henrique — Foto: Instagram / ReproduçãoMaria Carolina Rizola, de 30 anos, enfrentou 22 horas horas de trabalho no parto humanizado — Foto: Reprodução / InstagramO projeto pede ainda a “proibição expressa da união poliafetiva na Lei da União Estável, na Lei dos Cartórios e no Código Civil”, e determina que, caso haja comprovada existência de uma sociedade entre mais de duas pessoas e fique demonstrada a contribuição para a aquisição de patrimônio ou parte dele, caberá a partilha proporcional à participação de cada um dos que convivem em mesmo espaço.
Direção contrária
Presidente da Comissão de Previdência no ano passado, o deputado federal Fernando Rodolfo (PL-PE) diz que foi o caso de Denis, Letícia e Keterlin que o fez buscar projetos que tramitavam na Câmara sobre o tema.
— A Comissão é feita de diferentes representatividades e valeu a opinião da maioria, contrária ao reconhecimento legal dessas relações de poliamor. Eu, particularmente, sou contrário também porque me guio por meus valores evangélicos — afirma.
O trisal formado pela administradora Priscila Mira, de 39 anos, o coordenador Marcel Mira, de 40, e a assistente social Regiane Gabarra, de 34, fez o caminho contrário para “oficializar” a união, por conta dos entraves jurídicos impostos às relações de poliamor. Priscila e Marcel, que já eram casados no cartório quando se apaixonaram e passaram a viver com Regiane, decidiram se divorciar para demonstrar que o relacionamento agora era composto pelos três.
— A Regiane se sentia meio que como uma amante. Decidimos nos divorciar para sermos os três iguais — conta Priscila.
A família, mesmo assim, não conseguiu evitar ter que abrir um processo judicial para garantir que o filho deles, Pierre, hoje com 2 anos, seja registrado com o nome dos três.
— É desgastante ter que discutir nossa vida na Justiça, mas eu não desanimo. Anos atrás, quando as uniões homoafetivas não eram reconhecidas, alguém precisou gritar. Essa pessoa pode não ter sequer usufruído quando esse tipo de relação passou a ser juridicamente aceito, mas ela ajudou muitas pessoas — compara Priscila, que pretende, no futuro, também lutar judicialmente para tornar oficial a união estável de seu trisal.
Por Fernanda Alves
Fonte: oglobo.globo.com