Diversos candidatos, no entanto, não foram enquadrados pela banca como pessoas negras e não poderão continuar no certame concorrendo como cotistas.
Se você se autodeclara preto ou pardo e foi um desses candidatos reprovados no procedimento de heteroidentificação, saiba que é possível reverter a sua eliminação por meio de uma ação judicial.
1 – O que é e como funciona o procedimento de heteroidentificação?
O procedimento de heteroidentificação em concursos públicos é um processo utilizado para verificar a autodeclaração de candidatos que se autodenominam pretos ou pardos visando evitar fraudes, assegurando que as vagas reservadas para cotas raciais sejam ocupadas por indivíduos realmente pretos ou pardos.
A Lei n. 12.990/14 (lei de cotas raciais para concursos públicos na esfera federal) estabelece em seu art. 2º que o critério para concorrer às vagas reservadas para pessoas pretas ou pardas é a autodeclaração no momento da inscrição para o concurso público:
Art. 2º Poderão concorrer às vagas reservadas a candidatos negros aqueles que se autodeclararem pretos ou pardos no ato da inscrição no concurso público, conforme o quesito cor ou raça utilizado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE.
Para o IBGE, a regra também é a autodeclaração, ou seja, quando questionada, a pessoa pode se declarar como preta, parda, branca, amarela ou indígena. Assim, oficialmente, a pessoa pertence à raça/cor que diz pertencer.
2 – Presunção de veracidade da autodeclaração
A autodeclaração é presumida verdadeira, a menos que haja dúvida razoável devidamente fundamentada no parecer da comissão de heteroidentificação.
Ocorre que a Fundação Cesgranrio, banca examinadora do concurso, não apresentou qualquer motivação/justificativa aos candidatos reprovados no procedimento de heteroidentificação. Tanto no resultado preliminar quanto no resultado final (após recurso administrativo) a banca apenas apontou se aquele candidato estava ou não enquadrado como pessoa negra.
Essa postura adotada pela banca em não justificar o “não enquadramento” dos candidatos prejudica, inclusive, o exercício do contraditório e da ampla defesa, pois, o candidato que interpôs recurso administrativo o fez “às cegas”, sem saber a razão pela qual não foi enquadrado como candidato negro.
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal já julgou a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC 41) da Lei n. 12.990/2014, que estabelece a reserva de vagas para candidatos negros e pardos em concursos públicos, declarando não apenas a constitucionalidade da referida norma, mas também estabeleceu balizas para a avaliação fenotípica do candidato cotista, vejamos:
“Em segundo lugar, devem ser garantidos os direitos ao contraditório e à ampla defesa, caso se entenda pela exclusão do candidato. Por fim, deve- se ter bastante cautela nos casos que se enquadrem em zonas cinzentas. Nas zonas de certeza positiva e nas zonas de certeza negativa sobre a cor (branca ou negra) do candidato, não haverá maiores problemas. Porém, quando houver dúvida razoável sobre o seu fenótipo, deve prevalecer o critério da autodeclaração da identidade racial.” — (STF – ADC 41 – Min. Rel. Luís Roberto Barroso)
Do trecho acima, podemos extrair que, na avaliação fenotípica:
i) Deve ser respeitado o contraditório e ampla defesa;
ii) Logo, as decisões administrativas devem ser devidamente motivadas;
iii) Para candidatos das zonas cinzentas (pardos) deve haver bastante cautela;
iv) E quando houver dúvida quanto ao fenótipo, deve prevalecer o critério da autodeclaração.
Nota-se que uma das cautelas apresentadas pelo Supremo é quanto à categoria dos pardos “Zona Cinzenta”, justamente pela maior dificuldade de classificação considerando a miscigenação predominante no Brasil, e estabelece que, além da devida fundamentação, havendo dúvidas quanto ao fenótipo deve prevalecer o critério da autodeclaração.
É por isso que, ainda que seja necessária a associação da autodeclaração a mecanismos de heteroidentificação, para fins de concorrência pelas vagas reservadas nos termos Lei n. 12.990/2014, é preciso ter alguns cuidados. Em primeiro lugar, o mecanismo escolhido para controlar fraudes deve sempre ser idealizado e implementado de modo a respeitar a dignidade da pessoa humana dos candidatos. Em segundo lugar, devem ser garantidos os direitos ao contraditório e à ampla defesa, caso se entenda pela exclusão do candidato. Por fim, deve-se ter bastante cautela nos casos que se enquadrem em zonas cinzentas. Nas zonas de certeza positiva e nas zonas de certeza negativa sobre a cor (branca ou parda) do candidato, não haverá maiores problemas. Porém, quando houver dúvida razoável sobre o seu fenótipo, deve prevalecer o critério da autodeclaração da identidade racial.
É ilegal, portanto, o parecer emitido pela comissão de verificação que, de forma sumária, conclua apenas pelo não enquadramento do candidato, sem qualquer fundamentação e sem levar em consideração a autodeclaração.
Diante da subjetividade que submete à definição do grupo racial de uma pessoa por uma comissão avaliadora e havendo dúvida quanto a isso, tem-se que a presunção de veracidade da autodeclaração deve prevalecer.
Além disso, se o candidato foi reconhecido como pardo a vida toda, tanto por si como pela sociedade, detém ascendência parda e coleciona registros fotográficos que evidenciam seu fenótipo, como a banca examinadora gostaria que ele se declarasse? Se não for considerado pardo, não se encaixará em nenhuma outra etnia, já que evidentemente não é branco. E, caso o “não enquadramento” seja mantido, o candidato terá sua etnia deslegitimada.
Notadamente, o candidato não perdeu traços ou alterou a cor da sua pele ao longo dos anos. A decisão da banca deveria, no mínimo, indicar quais aspectos objetivamente seriam analisados, bem como esclarecer quais o candidato não apresenta e quais ele sim apresenta, para possibilitar o exercício adequado da ampla defesa e do contraditório.
3 – O que fazer para reverter a reprovação na etapa de heteroidentificação?
Se você agiu de boa-fé e considera que realmente é pardo ou preto, há uma grande chance de reverter a sua reprovação.
O primeiro passo seria interpor um recurso administrativo diante do resultado preliminar da heteroidentificação. Como a banca examinadora indeferiu o recurso, mantendo a reprovação sem qualquer motivação, a única forma de reverter passa a ser por meio de uma ação judicial.
Ingressar com uma ação judicial, conduzida por um advogado especialista em casos de cotas raciais permite reunir toda a documentação necessária para comprovar que o candidato é, de fato, preto ou pardo.
Essa documentação pode incluir fotos do candidato e de seus familiares, certidão de nascimento, aprovação em outras seleções públicas como cotista, e qualquer outro documento que evidencie a identificação racial.
Na ação judicial, deve-se detalhar as características como cor e textura do cabelo, cor dos olhos, formato da boca, formato do nariz e tom de pele.
Além disso, caso o candidato possua, um atestado dermatológico com a classificação do seu tom de pele na escala Fitzpatrick e/ou um laudo antropológico, também podem ser utilizados como prova.
Durante o processo, também é possível recorrer à perícia médica judicial, realizada por um dermatologista de confiança do juiz, que emitirá um laudo claro sobre a identificação racial da pessoa.
Portanto, se você agiu de boa-fé e se considera pardo ou preto, é fundamental buscar a orientação de um advogado especializado na área, que poderá indicar o melhor caminho para reverter essa situação e permitir que você volte a concorrer à tão sonhada vaga.
4 – Eliminação por ausência no procedimento de heteroidentificação
O edital do CPNU trouxe no item 3.4.3 a previsão de que o candidato que não comparecesse ao procedimento de heteroidentificação seria eliminado do concurso.
Trata-se, no entanto, de uma eliminação arbitrária e ilegal, uma vez que a Lei n. 12.990/2014 estabelece em seu art. 3º que os candidatos negros concorrerão concomitantemente às vagas reservadas e às vagas destinadas à ampla concorrência, de acordo com a sua classificação no concurso.
Ora, da mesma forma que um candidato que participou do procedimento de heteroidentificação e não foi enquadrado pela banca como pessoa negra pode continuar no certame concorrendo na ampla concorrência, o candidato que não compareceu ao procedimento de heteroidentificação deve continuar no concurso concorrendo na ampla concorrência também, sendo eliminado apenas da lista de candidatos negros.
5 – Conclusão
Se você se considera preto ou pardo e foi reprovado na etapa de heteroidentificação ou se foi eliminado do concurso por não ter comparecido ao procedimento de heteroidentificação, procure um advogado especialista em concursos, ele saberá interpretar o seu caso e apresentar as provas corretas na justiça para, assim, reverter a sua reprovação.