‘STF virou grande tribunal criminal com poder desmedido’, diz presidente eleito da OAB-SP

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Via @estadao | Eleito com votação recorde para presidir a Ordem dos Advogados do Brasil Seccional São Paulo (OAB-SP), a maior do País, o criminalista Leonardo Sica tomará posse em janeiro de 2025 disposto a mexer em alguns vespeiros. O primeiro é pressionar por mudanças na composição e na atuação do Supremo Tribunal Federal (STF).

Sica reclama de poder excessivo da Suprema Corte, considera muito graves as restrições ao uso da palavra nos tribunais e diz que a figura de um juiz universal no caso do 8 de janeiro levará ao risco de anulação do julgamento, da mesma forma que vem ocorrendo com a Lava Jato.

“Há interferência do Judiciário em todas as esferas da vida pública de uma maneira incontida. Isso é ruim. A gente tem que encontrar uma maneira de redefinir os limites do Judiciário. Todos os poderes têm que ter limites”, afirma em entrevista exclusiva à Coluna do Estadão.

Para o futuro presidente da OAB-SP, há ativismo no STF e para enfrentá-lo é preciso estabelecer mandato para os ministros e reduzir o foro privilegiado para o presidente da República e ministros. “O Supremo hoje é um grande tribunal criminal de todas as autoridades do Brasil. Isso dá um poder desmedido. Você tem um desequilíbrio institucional evidente. Há 11 pessoas que julgam todos os deputados, todos os senadores, todos os ministros”, ressalta.

Sica avalia que os processos do 8 de janeiro são “exemplo claro da competência estendida do Supremo” e diz que os réus deveriam estar sendo julgados pelos juízes de primeiro grau. “Os ministros do STF não tinham que estar julgando todo esse monte de gente. Não tem como um juiz ouvir o advogado de 3 mil pessoas”, observa. Uma das consequências disso, complementa, são as limitações à defesa.

“Quando eu vou lá falar no tribunal, eu não estou falando por mim, estou falando por alguém que não pode ir falar por conta própria. Então, essas tentativas, especialmente os tribunais superiores, de limitar a voz dos advogados, pedir para gravar a sustentação oral, tudo isso é muito grave.”

O criminalista diz que a figura de juiz universal adotada no julgamento do 8 de janeiro repete o modelo adotado nos casos do Mensalão (do PT) e depois na Lava Jato, mas com um agravante. “É mais do mesmo. Mas agora com um viés mais politizado”, aponta.

Ele acredita que o caso pode ser anulado futuramente, com mudanças na composição da Corte. “A gente já viu acontecer isso uma vez. No começo da Lava Jato, o Supremo Tribunal Federal estava validando tudo o que acontecia. De repente, houve uma ou outra mudança de composição de turma do próprio Supremo e o Supremo passou a invalidar algo que vinha validando. Então, sim, a gente corre o mesmo risco”, considera.

Nesta entrevista ele também fala de temas áridos à própria OAB, como as queixas de que a Ordem virou uma grande instituição cartorial e perdeu relevância no debate democrático nacional. Também defende eleições diretas para o Conselho Federal da OAB e quarentena para os dirigentes que quiserem entrar na vida política partidária.

Confira os principais trechos da entrevista

Qual deve ser o papel da OAB na sociedade?

A OAB é uma entidade que, na advocacia e fora da advocacia, gera muita expectativa. Muitas vezes se espera que o OAB opine sobre tudo. Isso não!. As questões do sistema de justiça são suficientemente extensas e importantes hoje na sociedade, para a gente tem que focar nisso. Hoje em dia, tudo passa pela justiça desde os exemplos mais banais. A justiça decide tudo, desde se eu vou tomar água de graça no restaurante, se eu posso agitar a bandeira no estádio de futebol, se eu vou votar de uma maneira ou de outra (modelo de votação), quem decide é o judiciário.

Há muitas críticas atualmente ao Judiciário, inclusive entre os advogados. O que a Ordem deveria fazer?

O papel que a OAB tem que fazer é o que falta, que é ser um espaço de moderação do debate público. Eu gosto da expressão ser um centro de entendimento. Hoje ou você acha isso ou você acha aquilo, você está errado ou você está certo, quem está aqui acha que quem está aqui está errado e vice-versa. A OAB é a única entidade do desenho institucional brasileiro que está no meio entre o público e o privado, que é um pouco dos dois. Indica listas para tribunais, nomes para conselhos da administração pública, Conselho de Direitos Humanos, Conselho de Política Criminal, tem assento nesses lugares, regula a profissão. Isso é bastante coisa. E tem a independência de não ter ligação com o poder público, com governos. Então tem um local privilegiado, tem que usar esse local. Esse espaço de entendimento hoje está absolutamente carente.

A OAB sempre foi muito firme em seus posicionamentos. Hoje, alguns reclamam que ela calou. Por que e quando chegou nesse ponto?

Acho que tem um fenômeno, que é a explosão da profissão jurídica. Você passa para um milhão e meio de advogados de repente, dois mil cursos jurídicos, e isso massificou muito a profissão. Isso levou a OAB para se burocratizar. Virou um grande cartório de advogados e advogadas, de carimbar coisas, de promover processos éticos, de promover o processo de cidades de advogados. E a gente critica muito. Dirigentes se acomodaram a fazer da OAB um cartório de favores burocráticos, liberar uma coisa ou outra. Houve um segundo movimento que é uma proximidade de muitos dirigentes com partidos políticos. Isso é muito ruim, porque aí isso tira a independência. A OAB tem que criticar e apoiar governos. Apoiar aquilo que parece certo, criticar aquilo que nos parece errado, a partir da nossa perspectiva. Mas no momento que você tem uma proximidade com algum partido, você perde essa independência. Os partidos são essenciais para a vida da democracia. Mas os dirigentes da OAB têm que estar afastados da vida política partidária, porque acho que isso também colabora para a voz enfraquecer.

Há alguma demanda interna para pôr limites nessa ligação partidária?

Nós gostaríamos de propor uma regra de quarentena. Porque proibir que pessoas participem da vida pública também é um contrassenso ruim. A gente tem que incentivar. Mas a gente quer propor uma regra de quarentena para aqueles dirigentes da Ordem que queiram ir ou voltar para a vida política. É bom que dirigentes da OAB sejam candidatos. Mas com uma regra de quarentena. Se amanhã eu quero ser candidato a deputado, claro que eu posso ser, mas se eu quiser voltar para a OAB, depois do meu mandato eu tenho que cumprir uma quarentena, para ter o afastamento necessário.

De quanto tempo seria?

Os mandatos da OAB são trienais, então, seriam três ou seis anos, um ou dois mandatos. Mas isso é uma ideia. Não entrou em campanha, porque é um tema um pouco árido. É preciso promover a discussão de dentro. A gente não entrou na minúcia da quarentena, mas foi muito claro em ter que ter afastamento da política partidária. Pode ser que venham outras ideias. Essa regra tem que ser discutida no Conselho Federal. Vamos levar a discussão. Sabemos que há barreiras, mas representamos o maior Estado do País, temos mais de cem mil votos na bagagem, temos agora a Patrícia Vanzolini (atual presidente da OAB-SP) no Conselho Federal. A hora é essa! A gente tem que aproveitar a força que vem da democracia.

Em relação ao Supremo Tribunal Federal, vocês querem se posicionar? Por exemplo em relação a mandatos para ministros?

Tem duas coisas que a gente acha importante levar para lá, dentro da ideia de abrir um espaço de moderação, que consideramos que podem nos ajudar a conter os excessos do ativismo do Supremo que há. O mandato para ministro do Supremo, a gente já validou essa tese. E a segunda é a redução ao extremo do foro privilegiado. O Supremo hoje é um grande tribunal criminal de todas as autoridades do Brasil. Todos os deputados, todos os senadores, todos os ministros, todo mundo eles julgam. Isso dá um poder desmedido, além de desvirtuar a natureza da corte. Vira um tribunal criminal. O que dá poder excessivo. Enquanto eles puderem julgar todas as autoridades do Brasil, você tem um desequilíbrio institucional evidente. Você tem 11 pessoas que julgam todos os deputados, todos os senadores, todos os ministros. Todas as autoridades têm que ser julgadas como qualquer outro cidadão. Você pode ter regras especiais para proteger o mandato, no processo, claro. Tem que ter uma regra para ter estabilidade. Então vamos levar as propostas adiante para o mandato e a redução do foro de prerrogativa de função para presidente da República e ministro do Estado.

Não houve ainda discussão no Conselho Federal da Ordem sobre a questão do mandato?

O Conselho Federal padece de um problema hoje que está ligado ao modo de eleição. Como a eleição é indireta, você não tem debate. Então, você vai esvaziando as pautas da entidade. Porque, no final, é uma conversa entre poucos que resolve quem vai comandar. O Conselho Federal é um ambiente hoje de discussões muito mornas. Então acreditamos muito na necessidade de ter eleições diretas na OAB.

A OAB nacional já se posicionou em momentos muito importantes da história. Por que agora está assim? Extrapolou?

A OAB nacional ficou muito com a cara de Brasília. Muito com a cara de corte. E não foi sempre assim. É difícil precisar quando ocorreu isso. Mas a gente acredita que a OAB precisa servir de farol para as mudanças. Como quando fizemos as eleições online. Não é um exemplo para a Justiça Eleitoral?

Alguns advogados dizem ter medo de falar publicamente de críticas a decisões do ministro Alexandre de Moraes...

Eu acho que tem três coisas que a gente precisa enfrentar. O uso de tecnologia na justiça. Isso é muito relevante, porque é impactante na questão do acesso e da distribuição da justiça. A gente precisa ter transparência e clareza, para saber se é um robô ou um juiz que está falando comigo, para saber como isso vai ser usado. A segunda coisa é a judicialização da vida pública. A gente tem que discutir esse envio de todas as questões da sociedade para o Judiciário. E desde o município até o Supremo Tribunal Federal há interferência do Judiciário em todas as esferas da vida pública de uma maneira incontida. Isso é ruim. A gente tem que encontrar uma maneira de redefinir os limites do Judiciário. Todos os poderes têm que ter limites. E a terceira coisa é garantir o livre exercício da advocacia, como baliza do Estado de Direito. Advogados e advogadas atuando sem liberdade é um problema. Por exemplo, as restrições ao uso da palavra nos tribunais superiores são muito graves. Parece uma suscetibilidade do advogado, mas não é. Quando eu vou lá falar no tribunal, eu não estou falando por mim, estou falando por alguém que não pode ir lá falar só por conta própria. Então, essas tentativas, especialmente os tribunais superiores, de limitar a voz dos advogados, pedir para o advogado gravar a sustentação oral, tudo isso é muito grave. A gente vem enfrentando e a gente pretende enfrentar. Todos os advogados de São Paulo que tiveram restrições no Supremo Tribunal Federal, por exemplo, nos julgamentos de 8 de janeiro, nós atuamos. O advogado de São Paulo pedindo ajuda, nós vamos ajudar. Para ter acesso aos autos, para poder despachar com o juiz. Eu defendi uma pessoa no 8 de janeiro e eu não consegui falar com ninguém lá. Eu passei pela mesma coisa. Não consegui ser recebido, não consegui falar. Então volto lá no começo. O 8 de janeiro é um exemplo claro daquilo que falei. Competência estendida do STF. Eles não tinham que estar julgando todo esse monte de gente. Aí é claro, eles vão julgar 3 mil pessoas? Não tem como ouvir todo mundo. Claro que não tem como um juiz ouvir o advogado de 3 mil pessoas. Mas parece que é um argumento meio tautológico. É algo que justifica a própria ação. Essas pessoas tinham que estar se julgando pelos juízes, de primeiro grau, no Brasil afora. Essa é a regra normal de julgamento das pessoas.

E não há sinal de isso mudar?

Não, mas é importante ser dito que esse movimento começa a ter desenhos no Mensalão (do PT), depois na Lava Jato e aqui (8 de Janeiro). É mais do mesmo. Agora com um viés mais politizado, mas é mais do mesmo. No Mensalão se criou um juiz universal, na Lava Jato se criou um juiz universal, só que parece que a gente não aprendeu, porque a gente já viu que deu errado.

E o que vai fazer aprender?

Normalmente a inteligência humana aprende com os erros. Nós estamos anulando toda a Lava Jato, porque se criou um juiz universal. Não é isso que está acontecendo? Sendo que os advogados, desde o começo, apontaram o problema. Não pode ficar tudo aqui. E é ruim para todos, porque é muito descrédito no sistema.

O Sr. acredita que esse caso do 8 de janeiro, como dizem alguns juristas, corre o risco de chegar lá na frente e sofrer um monte de anulação?

A gente já viu acontecer isso uma vez. No começo da Lava Jato, o Supremo Tribunal Federal estava validando tudo o que acontecia. De repente, houve uma ou outra mudança de composição de turma do próprio Supremo e o Supremo passou a invalidar algo que vinha validando. Então, sim, a gente corre o mesmo risco.

Hoje há motivos para o ex-presidente Jair Bolsonaro ser preso?

Hoje, não. Falo como criminalista. Porque a prisão no Brasil se dá em duas hipóteses: por condenação, coisa que ele não tem. Ou uma preventiva que exige um perigo à ordem pública ou processo contemporâneo. Hoje, novembro de 2024, não há fato que justifique a prisão dele.

Por Roseann Kennedy
Fonte: estadao.com.br

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