Mesmo tendo solicitado o uso do nome social durante a inscrição no certame e este constando em sua documentação, Diana afirma que a banca não permitiu que ela o usasse na heteroidentificação.
Ao Metrópoles, Diana relata uma série de preconceitos vividos durante o processo seletivo para cotas do CNU, tanto em relação à sua identidade de gênero quanto à sua identidade racial. “É muito emblemático estar passando por isso em pleno mês da visibilidade trans. A gente ainda tem muito para avançar”, reflete a jovem.
Placa de identificação
“Desde o primeiro momento, quando eu tento entrar na sala [para o processo de heteroidentificação], eu já não consigo. A pessoa que estava na porta não conseguia achar meu nome. A partir daquele momento eu já soube que ia ser uma manhã desgastante e exaustiva, tendo que lidar com o fato de eu ser uma pessoa trans e os sistemas burocráticos não estarem adaptados para isso”, conta Diana.
Ela diz ter solicitado o uso do nome social durante a inscrição no certame.
Apesar da “confusão”, o nome social da jovem foi encontrado “no cantinho da folha”, ao lado do nome civil, em um tamanho menor, e ela conseguiu entrar na sala.
Ao chegar ao espaço para realizar o processo, Diana percebeu que os candidatos que concorriam a cotas raciais no CNU estavam recebendo uma placa de identificação feita em uma folha A4 branca, que continha o número de inscrição e o nome do participante.
“Quando chegou na minha vez [de receber a placa], a placa que me entregaram estava com o meu nome errado e não tinha nenhum indício do meu nome social. Esse já foi o meu primeiro estranhamento. Eu questionei porque não estava com o meu nome certo e a pessoa só me disse que ‘era assim que estava e era isso que tinha'”.
Diana relembra que se sentiu em um impasse. Mesmo diante das dificuldades e do desrespeito que estava enfrentando, a jovem estava focada em seu objetivo de participar do processo seletivo e não queria que as questões burocráticas e a transfobia a impedissem de tentar.
A candidata foi posicionada em frente a uma câmera, segurando a placa de identificação, para realizar a heteroidentificação.
Coagida a se identificar com o nome civil
Os candidatos tinham que segurar a placa contra o peito em frente a uma câmera, ler o número de inscrição e o nome que estava escrito na folha.
Diana afirma que falou à banca que o nome que estava na placa estava incorreto e que ela usa o nome social por ser uma pessoa trans. Apesar de ter comunicado o nome certo, a banca não reconheceu e não respeitou a sua identidade de gênero, a coagindo a usar o nome civil no vídeo de identificação.
“Eu me senti perdida, mas eu só obedeci porque eu sabia que se eu não gravasse o vídeo eles iam enquadrar o caso como se eu tivesse recusado por outros motivos. Com certeza eles não registrariam que eu recusei por conta da falta do nome social e eu só seria eliminada. Pelo menos esse foi o entendimento que eu tive naquele momento”, explica a jovem.
Diana conta que se identificou com o nome civil, leu o conteúdo da placa e que foi embora do local “porque não aguentava mais estar ali”, sentindo desconforto e preconceito. Ela acreditava que o pior já havia passado. No entanto, a situação tomou um rumo inesperado.
“Não enquadrada”
Cerca de duas semanas depois, Diana descobriu que foi classificada como “não enquadrada” pela banca de heteroidentificação. Isso significa que a banca não a reconheceu como uma pessoa negra, o que a deixou extremamente surpresa e confusa.
“Na minha cabeça daria tudo certo porque sempre me entendi como uma pessoa negra. Em nenhum espaço que frequento e que já frequentei, na minha vida, isso foi duvidado. Nunca deixei de sofrer racismo na escola, ser mal encarada na rua. Várias vezes em estabeleciementos os seguranças me seguiam… O clássico de violências racistas”, afirma Diana.
Segundo a banca, Diana não é preta nem parda. “Uma pessoa branca eu não sou, uma pessoa indígena eu não sou, árabe e asiática muito menos. Estão me heteroidentificando como o quê?”, questiona.
“Não foi um caso isolado”
Por acreditar que seria enquadrada, a jovem acabou perdendo o período de recurso. Foi quando ela encontrou um grupo de pessoas pretas e pardas que também haviam sido “não enquadradas” como pretas e pardas pela banca de heteroidentificação do CNU.
“Não foi um caso isolado. Várias outras pessoas que não são retintas, mas que possuem características que fazem delas pessoas negras, tiveram o processo para cotas negado”, afirma Diana.
Ela ainda questiona a utilidade de ter o nome social no documento se as instituições não o respeitam e não o usam, ficando “à deriva da boa vontade da instituição”. “Do que adianta a conquista de conseguir colocar meu nome social em um documento se as instituições não reconhecessem?”, reflete a jovem.
Após toda a experiência de desrespeito e preconceito, Diana está buscando meios legais para garantir seus direitos como cidadã. Ela conta que quer ser respeitada em sua identidade e poder participar de processos seletivos de forma justa, com seu nome social e identidade racial reconhecidos.
“Nós percebemos claramente uma transfobia. O segundo ponto é a ilegalidade do não enquadramento como pessoa negra”, explica o advogado Emanuel Jorge Fauth de Freitas Junior. “Nosso trabalho agora é comprovar a transfobia.”
Denúncia ao MPF
Além de Diana, Emanuel representa outras 10 pessoas pretas e pardas que tiveram a raça negada pela heteroidentificação do CNU. “Temos diversos casos repercutindo. A situação é bem esdrúxula, até porque [a banca] não justifica o porque a pessoa não é enquadradada como negra ou parda”, afirma Emanuel.
Revelada pelo Metrópoles em reportagem, uma denúncia recebida pelo Ministério Público Federal (MPF) aponta que um membro da cúpula do Ministério da Gestão e Inovação (MGI) teria orientado, de forma deliberada, que as bancas de heteroidentificação excluíssem os candidatos negros não retintos do sistema de cotas no CNU. A medida vai contra a Lei de Cotas.
O ministério, responsável pelo concurso, negou o fato ao Metrópoles e a banca organizadora não se manifestou. O espaço segue aberto.
A denúncia entrou no sistema do MPF na semana passada e foi para o gabinete do procurador da República Nicolao Dino, da área de Direitos do Cidadão. O órgão informou ao Metrópoles que a Cesgranrio, banca organizadora do certame, já foi oficiada, com prazo de cinco dias para dar informações sobre os fatos.
Em relação à lei de políticas afirmativas, pessoas autodeclaradas negras não têm vantagem sobre pessoas autodeclaradas pardas, visto que ambas são consideradas parte da população negra. O Estatuto da Igualdade Racial define a população negra como o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pelo IBGE. Essa definição também é usada na Lei nº 12.990/2014.
Por Madu Toledo
Fonte: metropoles.com