Como na ficção, os ícones aparentemente inofensivos escondem comportamentos violentos, ideais misóginos, discursos nazifascistas e viraram até uma forma visual de gíria para quem se orgulha de cometer pequenos furtos, em comunidades virtuais de cleptomaníacos. Entre os adeptos dos “emoticons do mal” estão também os chamados red pills, defensores de uma proclamada “superioridade masculina”, como o adolescente Jammie Miller, de 13 anos, protagonista da série.
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Os símbolos do mal — Foto: Editoria de Arte |
Para os red pills, os símbolos usados retratam um “homem alfa”. O emoji das estátuas da Ilha de Páscoa (os Moais) é popular por exibir um queixo largo, suposta característica do ideal masculino. Outro ícone frequente é a taça de vinho, para simbolizar um “homem com classe”, além da própria pílula que remete ao “red pill” (veja no quadro ao acima).
Em escolas de São Paulo, estudantes explicam que os emojis ganharam uma “nova encarnação” nos últimos anos. Antes, eram considerados antiquados — ou cringe, na gíria. Recentemente, porém, os ícones ressurgiram nos diálogos da turma, dessa vez carregados de ironia e inversões de significado. O recurso, dizem, perdeu a literalidade — a mesma sutileza que confunde o investigador da série.
— Se mandei um emoji sorrindo, não quer dizer que eu achei engraçado. Às vezes é o contrário. A gente usa com muita ironia. Quem é mais velho, como meu pai, não entende — diz uma aluna de 16 anos de uma escola pública da Zona Oeste da capital paulista.
O músico Amilton Godoy, pai de jovens de 11 e 15 anos, afirma que de fato não reconheceria os significados.
— Eu converso com meus filhos sobre o tema. Eles são minha melhor fonte de informação, tenho que confiar que vão se abrir comigo sobre essas coisas — diz.
Ainda que sejam usados para manter a discrição em contextos particulares (como mascarar um apelido, ou usar o ícone de laço rosa para mencionar uma menina de vestido apertado), os jovens conhecem os significados maliciosos dos ícones.
— A gente sabe o que quer dizer quando vemos a cara de pedra, o vinho, a folhinha que representa a maconha — diz um aluno prestes a completar o ensino médio em um colégio paulistano de classe média alta.
Cleptomaníacas unidas
As pesquisadoras Letícia Oliveira, que monitora a atuação de grupos de ódio na internet brasileira desde 2012, e Tatiana Azevedo, especialista em open source intelligence (Osint), mapearam diversos grupos que praticam crimes e usam códigos para disseminar os conteúdos de forma disfarçada. Um exemplo são as cleptomaníacas. Elas adotaram emojis como o mirtilo (ou blueberry), o rato e a cestinha nos perfis e em posts nos quais exibem os pequenos furtos. As usuárias criaram até o verbo “mirtilar” para os crimes.
— O uso dos emojis serve para se identificarem entre si. Geralmente são meninas e dizem roubar apenas de lojas grandes — diz Letícia.
Outra marca do grupo é o uso da palavra “colheita”. Basta uma busca no X para encontrar fotos de objetos com legendas como “colheita de hoje”. Outras comunidades com presença mais feminina são as que glorificam transtornos alimentares e automutilação, segundo as pesquisadoras. Entre os meninos, predomina o que é chamado de “machoesfera” ou masculinismo, marcados pelos rapazes fieis à cultura red pill.
— O masculinismo são as teorias que colocam a suposta existência de uma dominação feminina no mundo. Isso está na base de várias correntes radicalizadas de extrema direita. É um anzol para pegar o jovem em um momento de vulnerabilidade, valendo-se da dificuldade de um adolescente de se relacionar com garotas — explica o professor de filosofia e doutor em educação Renato Levin-Borges.
Entre os preceitos da ideologia aparece a regra dos 80/20, segundo a qual 80% dos homens nascem como “betas”, com características que seriam indesejadas pelas mulheres, e apenas 20% seriam “alfas” — daí o uso do emoticon “100” para identificar o grupo. A red pill, ou pílula vermelha, é uma referência ao filme Matrix, em que o protagonista pode tomar duas pílulas, a azul, que o deixaria vivendo em um universo ilusório, e a vermelha, para enxergar a realidade.
O uso de emojis relacionados a conteúdos neonazistas foi identificado nas chamadas “panelas” do Discord, rede de comunicação que se popularizou no Brasil na pandemia. São grupos restritos, para compartilhamento de conteúdo violento, onde surgem símbolos como o “copo de leite” e os “dois raios”, referências a movimentos supremacistas brancos e à SS, a organização paramilitar da Alemanha nazista.
— Boa parte dos marcadores sociais desses grupos são a linguagem. Você precisa usar as gírias para ficar evidente que domina aquele meio — diz Leandro Louro, pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) na área de sociologia digital.
Outra particularidade das “panelas” é a venda de pornografia infantil, identificada pelo emoji de um pirulito — ou lolly, em inglês, em referência ao romance Lolita, de Vladimir Nabokov. Por vezes, os usuários são adolescentes vendendo o próprio conteúdo erótico.
Ódio on-line
A circulação de símbolos e discursos de apoio a crimes pode ter resultados graves. A Polícia Civil de Goiás apreendeu ontem o computador e o celular de um adolescente de 16 anos que tinha um canal no Discord onde foi transmitida no mês passado a agressão a um morador de rua do Rio. De acordo com as investigações, o jovem usava a rede social para reunir “investidores financeiros” e pessoas dispostas a praticar crimes violentos.
— A polícia hoje dispõe de mais técnicas investigativas. A internet não é terra sem lei — diz a delegada titular da Delegacia Estadual de Repressão a Crimes Cibernéticos de Goiás, Marcella Orçai, que orienta os pais a manter um diálogo aberto com os filhos sobre conteúdos nocivos.
Em 2023, após episódios violentos em escolas brasileiras, representantes do Discord se dispuseram a colaborar com o Ministério da Justiça e Segurança Pública e até ofereceram treinamento às autoridades sobre o funcionamento da plataforma. Ainda assim, a rede é uma das mais povoadas por grupos extremistas, segundo a delegada Luciana Peixoto, da 4ª Delegacia de Repressão à Pedofilia da Polícia Civil de São Paulo.
— O acesso a grupos que praticam ou incentivam crimes está mais fácil, inclusive atrai um público mais jovem, que entra para essas comunidades cumprindo desafios para ser aceito.
O WhatsApp diz ter tolerância zero com esse tipo de conteúdo e afirma que a empresa está constantemente aprimorando a tecnologia de detecção. O Telegram informou que faz a verificação automática de imagens para extirpar a pornografia infantil do aplicativo e bloqueou quase 170 mil grupos e canais por essa razão somente em 2025.
Em nota, o Discord afirma que tem uma política de “tolerância zero para atividades ilegais, discurso de ódio e violência” e assim que toma conhecimento desse tipo de conteúdo, adota imediatamente as medidas cabíveis, que podem incluir o banimento de usuários e o encerramento de servidores. O X não se manifestou.
Para Silvio Sato, professor de semiótica da ECA-USP, a intenção original do uso dos emojis foi subvertida.
— O mundo dos emojis oficialmente disponibilizado é parcial, higienizado. Você não acha o emoji de pênis. Mas aí se usa a berinjela.
Por Guilherme Queiroz, Matheus de Souza e Nicolas Iory
Fonte: https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2025/03/21/como-em-sucesso-da-netflix-emojis-e-codigos-escondem-misoginia-e-crimes-de-adolescentes-nas-redes-sociais-veja-quais.ghtml